Papeizinhos rasgados
CONTO /
Sérgio Sant’Anna* //
O escritor brasileiro Sérgio Sant’Anna oferece à Cosmos & Contexto um conto inédito.
– – – – –
O que o movia era um desejo de beleza, pela qual seria amado e se amaria, mas rabiscando no papel ele percebeu que fracassava, então pegou as duas folhas de caderno, rasgou-as em pedacinhos e jogou-os da janela do apartamento de décimo andar em Copacabana, e ao ver os papeizinhos picados flutuando ao vento dessa noite, era como se fizesse voar o que não alçara vôo:
o som de uma caixa de música com uma bailarina de louça rodopiando; o garoto que ele fora na roda-gigante do parque de diversões; o cheiro vivo da maresia penetrando nas ruas do bairro; o peixe bizarro em águas profundas; uma vela queimando no castiçal da capela do internato; a jovem Clarice vestida com uma combinação; o instante de exaltação da mendiga fumando crack; o quadro com a mulher nua no porão do museu; a ressaca do mar batendo na antiga amurada da praia do Flamengo; o pai, o doce pai, no caixão no velório; o riso solto da netinha; o gato absorto lambendo a pata; o barulho da bola estufando a rede numa falta cobrada por Didi no treino em Laranjeiras; o cavalo majestoso cruzando o disco de chegada;
a poesia dos tísicos; uma ponte de ornamentos sobre um rio nublado; o coro das maritacas e os macaquinhos nas árvores da cidade imensa; o silêncio imediatamente após o fim da sinfonia; o bramido das ondas no rochedo; Allen Ginsberg e seu olho vítreo; Miles Davis tocando trompete baixinho no ouvido da moça debruçada no palco; um adeus no aeroporto; o bordado das estrelas; as frutas geométricas pintadas numa fruteira; a caravela séculos atrás na tempestade; o vazio de Deus; o desespero da oração; o demônio de cada um; eu queria ser feliz; o limo no cais; o despertar do sonho mau e a alegria da realidade; a borboleta na flor; o besouro arremetendo contra a vidraça; as mariposas voando em torno do lampião; a orquestra no circo; a trapezista e o palhaço.
Sílabas, letras, frases e palavras partidas, misturando-se ao lixo na rua, vocábulos que ninguém lê e, no entanto, escritos. Um pouco mais tarde a chuva caiu lavando a tinta e levando alguns pedacinhos de papel na corrente, como barquinhos que ele houvesse lançado como no tempo em que era menino. Num desses papeizinhos a própria palavra barc, cortada, que depois entraria na galeria de águas fluviais no fluxo para o oceano.
– – – – –
*Sérgio Sant’Anna nasceu em 1941, no Rio de Janeiro, e iniciou sua carreira de escritor em 1969 com os contos de O sobrevivente, livro que o levou a participar do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Vencedor de diversos prêmios, entre eles, quatro prêmios Jabuti por seus livros O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (contos, 1982), Amazona (novela, 1986), Um crime delicado (romance, 1997) e O vôo da madrugada (contos, 2003), com obras traduzidas para o italiano e alemão, tem suas obras publicadas pela Companhia das Letras e acaba de lançar seu novo livro Páginas sem glória.