Desculpem, mas não tenho boas notícias
(sobre os limites da fabulação digital)[1]
Publicado originalmente na Revista Carbono.
Há uma conhecida frase, atribuída a Fredric Jameson e Slavoj Zizek em contexto de crítica ao pós-modernismo, que nos diz que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Mark Fisher, ao comentar essa frase em 2009, afirmou que ela traduzia precisamente o que ele entendia por “realismo capitalista”, ou seja, “o sentimento disseminado de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar uma alternativa a ele”[2]. Em seu esforço crítico, imaginativo de alternativas a essa estrutura ideológica e burocrática, Fisher, que faleceria em 2017, não deixou de frisar que o realismo em questão não é de um tipo particular: “é o realismo em si”[3], escreveu ele; isto é, trata-se do realismo do fim da história e do cancelamento do futuro, com o qual utopias políticas e crenças religiosas, práticas coletivas e ritos são condensados em signos vazios e consumidos num presente contínuo, entorpecido e sem memória.
Agora, esse mesmo “senso de exaustão e esterilidade política” retomado Fisher[4] serve a Jonathan Crary para uma análise do capitalismo na sua era digital ou virtual. Em 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, de 2013, e Terra arrasada, de 2022, o argumento ideológico contestado pelo autor é praticamente o mesmo: o que ele recusa, nesses trabalhos, é a ideia de que o complexo internético seja inevitável e irreversível, quer dizer, que o realismo capitalista tenha se imposto sobre o mundo de forma permanente, sem alternativas, com os protocolos da vida on-line. Para Crary, não se trata de reformar a internet ou de liberá-la da exploração, já que o capitalismo tardio e o mundo digital são inseparáveis. “Se for possível um mundo habitável e partilhado em nosso planeta”, escreve o autor de maneira talhante, “será um futuro off-line, desvinculado dos sistemas destruidores de mundo e das operações do capitalismo 24/7”[5].
O que gostaria de apresentar aqui, nos poucos minutos que tenho e no contexto deste evento que celebra as “fabulações digitais”, são alguns comentários, muito iniciais, sobre essa proposição de Crary, com a qual, já adianto, estou de acordo em suas linhas gerais. Seguindo de perto o pensamento do autor, me interessa destacar a profunda contradição que existe entre vivermos, de fato, uma vida em comum, e o que nos é imposto pelo mundo virtual ou digital. Não é nada realista imaginarmos um futuro coletivo segundo os protocolos da internet, das redes sociais, das inteligências artificiais, embora tentem nos fazer acreditar que esse futuro é inquestionável e que, na verdade, ele já se realizou, sendo mesmo impossível uma vida fora das redes. Quero então afirmar que é justamente pela imaginação desse impossível suprimido que deveríamos pautar nosso trabalho crítico e criativo, até que venha a ser a nossa realidade a vida em um mundo off-line habitável e partilhado em igualdade e cuidado. Daí que me desculpem os “fabuladores digitais”, mas não tenho boas notícias.
As origens da internet já nos mostram que sua invenção não foi obra de um avanço científico livre de condicionamentos políticos ou ideológicos: a fábula de um contínuo processo de modernização tecnológica que, por seu próprio desenvolvimento, culminaria nas redes é, no mínimo, ingênua ou dissimulada. Tampouco sua invenção foi resultante de uma dadivosa aposta esclarecida, feita por gênios individuais, na potência emancipadora e democratizante de uma humanidade virtualmente conectada, em torno de um mundo sem distâncias e sem fronteiras. Ao contrário dessas narrativas que encorpam, afinal, as defesas neoliberais das benesses da era digital, também no caso da criação da internet a cultura e a barbárie não se dissociam, uma vez que seu complexo sem centro, distribuído em rede, é em grande medida um produto da militarização do mundo durante a Guerra Fria, integrando os planos de aniquilação em massa conduzidos por instituições, com seus cientistas e tecnocratas. A meta estadunidense era manter uma operação nuclear em funcionamento, com capacidade de retaliação por mísseis de largo alcance, mesmo que, em caso de ataque total, parte de sua rede fosse destruída pelo inimigo. Claro está que, em tal contexto, já se considerava o controle de um sistema artificial autorreplicante, nas condições de um mundo em que a humanidade, ou parte significativa dela, não mais precisaria existir[6].
O final da Guerra Fria teria animado a imaginação dos mais otimistas sobre os desdobramentos da nova hegemonia global. Expectativas de que os enormes investimentos no campo militar poderiam ser deslocados para outros fins, mais criativos do que destrutivos, pareciam ser um horizonte amplamente compartilhado. No entanto, o que se viu desde a década de 1990 foi a inexorável globalização do capitalismo sob a lógica neoliberal do livre mercado, da autonomia administrativa e do oportunismo empreendedor, para a qual a disponibilidade de uma rede mundial de computadores foi sem dúvida decisiva, acelerando o desenraizamento das trocas simbólicas e das experiências comunitárias com os fluxos abstratos das finanças e das informações. Nesse avanço da ocidentalização do mundo, Estados tornaram-se, de modo geral, meros avatares das aplicações e dos dividendos de um mercado nômade e extremamente impessoal, mas cada vez mais concentrado em torno de bilionários cujas fortunas dependem diretamente da mídia online, do engajamento de usuários nas redes sociais, em apps, enfim, dependem do processamento de big data. E assim como a ostensiva militarização do cotidiano, as guerras, obviamente, não cessaram; mas sendo cada vez mais conduzidas por dispositivos high-tech e mediadas por telas, elas ampliaram, ao mesmo tempo, a destruição indiferente causada à distância, a segregação da alteridade e a insensibilização social: no início dos anos 1990, imagens da intervenção norte-americana no Golfo e imagens de videogames já não eram, em termos estéticos, tão diferentes assim[7].
Por essas estreitas relações entre violência, segregação e informação, que permeiam todas as camadas da chamada era digital e suas rotinas, vemos que a nuvem não é, de fato, imaterial: embora as especulações e os atuais dispositivos financeiros operem de forma desterritorializada e sem lastro real, a própria manutenção da internet como rede mundial constantemente conectada está condicionada à materialidade da terra, na medida em que é a exploração hiperbólica da natureza que a sustenta. Águas e solos depauperados, drenados de sua vitalidade desde que transformados em “recurso”, são a base, por assim dizer, da desmaterialização do mundo na era digital[8]. Jonathan Crary salienta esse vínculo ao destacar a atividade de mineração a céu aberto e sua expansão global. “A mina de Grasberg, na província indonésia de Papua, uma das maiores e mais lucrativas do mundo, é um bom exemplo”, escreve o autor:
[…] a cratera escavada mede cerca de 30 km², e mais de 700 mil toneladas de rejeitos são despejadas nos rios locais a cada semana. Sozinha, emprega 23 mil trabalhadores que ganham menos de dez reais por hora. Desde os anos 1990, vários milhares de rebeldes separatistas papuanos, mineiros grevistas e ambientalistas foram assassinados por seguranças particulares. A maior parte das amplas regiões de planalto e de floresta tropical da área foi contaminada de modo irreversível pelo escoamento de substâncias tóxicas. E tudo isso para atender às demandas de cobre dos fabricantes de eletrônicos, sobretudo para a produção dos componentes-chave do Green New Deal – painéis solares, turbinas eólicas e veículos elétricos –, mas também dos chips utilizados em supercomputadores e da fiação de casas “inteligentes” movidas pela Internet das Coisas (IoT). Fios de cobre ainda são o condutor preferido para a geração e transmissão de energia elétrica em escala industrial e para a maior parte das telecomunicações. A proprietária da mina de Grasberg, a empresa Freeport-McMoRan, administra dezenas de minas similarmente destrutivas ao redor mundo, como no Peru, no Chile, na Bolívia, na Mauritânia, na África do Sul, na Zâmbia e no Novo México[9].
Além do cobre, como sabemos, há ainda necessidade de lítio, de neodímio, de níquel, de molibdênio e outros elementos componentes de uma série de eletrônicos, de data centers e servidores. No Sul Global, os níveis dessa atividade extratora são incomensuráveis, diz Crary. “No Peru, uma companhia chinesa se dedica a um processo de décadas que tem como objetivo literalmente desmontar o monte Toromocho, de 4.500 metros de altitude, a fim de recuperar vários bilhões de toneladas de minérios”[10] necessários ao prolongamento da era digital.
Como não se trata de tentar contar aqui a brevíssima história materialista das redes, aliás uma história já bem detalhada e analisada em nuances por autores com mais competência no assunto do que eu, não me estenderei nesses desdobramentos. Também porque entendo que, nesta ocasião, mais vale discutirmos o impacto da vida online em nossas percepções do mundo, em nossas memórias afetivas e nas rememorações da história, em nossas imaginações do futuro, ou em uma palavra, nos modos como podemos elaborar uma experiência vivida, de fato, em comum. Se a crise ou ainda a pobreza da experiência foi, na modernidade, uma cifra da cultura ocidental e seu titanismo técnico, como equacionar o que ocorre comos sujeitos que têm, hoje, suas vidas não apenas “conectadas” com dispositivos digitais, mas cada vez mais padronizadas pela programação das redes?[11]
Por uma série de razões, poderíamos dizer que o que acontece na vida online é, na verdade, o contrário da experiência. Façamos, por exemplo, o exercício de tentar narrar o que pensamos, como agimos e o que criamos nas muitíssimas horas de conexão com as redes sociais, apps, serviços sob demanda e sites de busca. Provavelmente, essa narrativa não será muito mais do que uma série inarticulada de impressões fugazes e desconexas, ligadas à sensação desconcertante de que, realmente, estivemos alheios durante um bom tempo, absortos em relação ao mundo ao redor, e que parece não haver nada para contar. Talvez, em nossa tentativa embrionária de relato, surja a lembrança de textos e vídeos curtíssimos, eles mesmos imediatos, sem estrutura narrativa; ou de uma notícia de caráter viral, replicada infinitamente e provavelmente relacionada a alguma catástrofe (política, ecológica, sanitária etc.), a algum pet encantador, ou à vida particular da celebridade do instante e suas platitudes; ou ainda, quem sabe, venha à lembrança o leve, o entorpecido bem-estar ligado a uma “curtida”, logo suplantado pela sensação ansiosa, pelos cliques nervosos, como resposta reflexa a uma vaga impressão de tédio e vazio. Talvez, sim… Talvez tenhamos pedido um lanche ao final[12].
Esse hipotético mas importante exercício, afinal nada distante das rotinas online, nos mostraria, portanto, que na dinâmica da vida nas redes o aparente excesso de conteúdos restringe-se, de fato, a fluxos informacionais padronizados e extremamente pobres; fluxos que não só observamos, mas principalmente alimentamos e “monetizamos”, de maneira isolada, com nossos dados, hábitos e respostas individuais; fluxos que finalmente resistem, em seu teor e sua forma, ao encadeamento criativo da memória e ao caráter coletivo da experiência. Não há nada aí que contenha uma experiência transmissível de boca em boca[13]. Ao redor dessas “paixões tristes” [14], sem ancoragem no passado e sem abertura para o futuro, nossa anamnese gira em falso, e qualquer ethos situado na materialidade do mundo e em modos cooperados de existência parece dispersar-se no circuito fechado dos particularismos reativos, que “confirmam, ao invés de desafiar, os pressupostos e preconceitos de cada um”[15], como escreveu Fisher, e que desse modo tornam-se muito eficientes para o fortalecimento de grupos reacionários e de “progressismos” neoliberais.
Em tais condições, não deve causar estranhamento a centralidade da noção de “experiência” para empresas que se dedicam, por exemplo, a rastrear nossos movimentos oculares e nosso tempo de resposta online, de acordo com a lógica da economia da atenção, para a qual a aquisição exponencial de dados é imprescindível. Se retomarmos um argumento caro a Benjamin, poderíamos reafirmar que o que está em jogo não é da ordem da reforma ou da renovação: ao contrário, trata-se justamente de uma galvanização da miséria da experiência que nos assedia rotineiramente no complexo da internet[16]. Neste ponto, creio que a exposição de Crary pode ser mais uma vez elucidativa:
A análise de movimentos oculares é importante sobretudo para a crescente indústria do design de experiência do usuário, conhecido como design de UX (user experience). Esse setor econômico em rápida expansão é responsável por muito daquilo que vemos on-line e pelos limitados modelos de atenção que estão na base de seus trabalhos de design. Uma empresa conta a seus clientes potenciais que está em busca da “criação de conexões emocionais no design de sites de declaração de impostos e de finanças pessoais. Se você consegue criar uma experiência de conexão com o usuário em um nível emocional, seu objetivo foi atingido”. Assim como na maioria das grandes corporações, todo o design de UX da IBM é feito por funcionários próprios. Em sua divisão de “e-commerce cognitivo”, a meta declarada é construir “um engajamento humano mais profundo […]. Ao saber o que nossos clientes desejam antes que eles mesmos saibam, ao entender nuances de tom, sentimentos e condições ambientais, conseguimos manter os usuários engajados em um nível humano e oferecer a experiência adequada no momento perfeito para inspirar uma lealdade vitalícia”. Outra empresa prestadora de serviços de design de UX anuncia ter produzido “experiências de pagamento mágicas e significativas” para sites de compras. O objetivo mais frequente do design de UX é a criação de interfaces “sem fricção, que não demandem esforços e sejam fáceis de usar”, mas que gerem consumidores zelosos e complacentes. Aqui, “sem fricção” é sinônimo para a ausência de reflexão, pensamento ou dúvida[17].
Ora, tais empresas – que pretendem saber mais sobre os nossos desejos do que nós mesmos – anunciam esse novo mundo da “experiência” online como o ápice da inteligência, que como sabemos já não se manifesta como elaboração de um pensamento ou como expressão singular de um sujeito, sempre irredutível e complexo, entramado entre conhecimentos, sonhos, imaginações, desejos, emoções, aptidões, gestos, decisões etc. Ao invés disso, está em jogo, hoje, uma inteligência que equivale ao cúmulo da abstração, da despersonalização e do artificialismo programado. Nesse sentido, algoritmos e sobretudo as formas da IA (Inteligência Artificial) manifestam, na contemporaneidade, o caráter finalmente descartável daquilo que caracterizou, em ampla medida, ao longo do tempo, a vida sensível e sensata, ou seja, a própria vida humana, em contato com o outro e com o mundo ao redor[18].
Há 25 anos, Peter Pál Pelbart já escrevia que, nas condições do trabalho imaterial, com o qual produzimos e consumimos informações, é ainda assim a vida mesma que está em questão. Através desses fluxos digitais com os quais formatamos e padronizamos nossos gostos e condutas, sonhos e opiniões, nossos afetos, somos ao mesmo tempo, portanto, produtores, consumidores e produto. Assim produzimos e consumimos subjetividades, quer dizer, “maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, ou seja, formas de vida”[19]. Neste ponto, talvez já não seja preciso insistir que, em razão do próprio funcionamento do mundo online, essas formas de vida são formas de atomização dos sujeitos e conduzem à rarefação e à deterioração da experiência em comum. São em suma formas patológicas de vida, em que o adoecimento – individual e coletivo – é condicionado pela própria estrutura.
Não são poucas as vozes críticas que apontam para essa relação entre redes digitais, adoecimento e esvaziamento comunitário. Para além da ansiedade, da apatia e do comprometimento da memória, aqui já apontados, a vida online também parece ser inseparável da multiplicação de diagnósticos e tratamentos para os diversos tipos de divergência, transtorno, desequilíbrio, enfim, para as várias formas do sofrimento psicológico, hoje disseminadas. São dois problemas conjugados, portanto: por um lado, a naturalização do adoecimento social, que entretanto é visto como um problema sempre individual, da ordem da vida privada (neuroquímica, hereditária etc.), o que requer uma administração particular da doença, sob responsabilidade do próprio indivíduo; por outro, a vantagem que essa privatização da enfermidade coletiva traz ao capitalismo neoliberal, com lucros exorbitantes para as multinacionais farmacêuticas e reiterados estímulos para a fuga dos sujeitos em sofrimento, que tendem a buscar uma satisfação qualquer no próprio sintoma, isto é, nos entorpecimentos leves, solitários e sempre acessíveis dos paraísos artificiais online[20].
Essa renúncia doentia dos sujeitos na contemporaneidade não é uma renúncia qualquer. Antes de tudo, ela declina o comprometimento dos sujeitos com a via do desejo; mas também está fundamentalmente associada ao achatamento da experiência temporal e ao não reconhecimento do espaço público como lugar de posicionamento ético-político e de construção de relações. De maneira geral, somos acossados pelo mandato de “aproveitar a vida”, um imperativo estéril e paralisante, desde que “a ideia de ‘aproveitamento’ alia-se à lógica da produção, da acumulação e do consumo”, como frisou Maria Rita Kehl ao analisar a atualidade das depressões e suas condições sociais. “A obsolescência programada do passado e da memória produz um sujeito permanentemente disponível”, escreve a autora, “pronto a se desfazer de suas referências em troca das novidades em oferta”. Sem o “frágil fio que ata o presente à experiência passada”, e projetado pelas demandas de um futuro impreciso, “com medo de ser deixado para trás”, o “consumidor” (não o cidadão), afirma Kehl, sofre com o “encurtamento da duração”. “Assim se desvalorizam o tempo vivido e o saber que sustenta os atos significativos da existência” [21].
Se “o esconderijo protegido do depressivo é por definição fora do espaço público”, essa estratégia cobra o preço “do abatimento e da inapetência para os desafios que a vida lhe apresentará”[22]. Claro, o “espaço público põe à prova a potência do sujeito, seja qual for a maneira como ela se manifeste; o espaço público solicita alguma potência”. E essa potência, escreve Maria Rita Kehl, “tem a ver com o corpo, sim, enquanto imagem que se mantém de pé diante do olhar do outro (o semelhante)”[23]. Ora, o impossível suprimido pelas fabulações digitais impostas pelo neoliberalismo é esse mundo público off-line: mundo das culturas materiais e simbólicas, onde sempre se atualizaram, ao longo do tempo e em termos coletivos, os enfrentamentos e as negociações para uma experiência de vida em comum. Qualquer saída para os impasses contemporâneos deveria então retomar a imaginação desse impossível, como forma de apontar que tais impasses e o limite em questão só existem no quadro da miséria capitalista vigente. Ou seja, o que nos cabe, agora, contra a vigência do realismo capitalista, seria uma “afirmação inaceitável”: a afirmaçãode que há um fora, uma alternativa; “a afirmação de que o impossível existe”[24]. Eis, afinal, a boa notícia[25].
[1] Texto apresentado na mesa de encerramento da XV Semana de Letras da UFSC: “Fabulações Digitais”, em dezembro de 2024.
[2] Fisher, Mark. Realismo capitalista. Trad. Rodrigo Gonsalves, Jorge Adeodato, Maikel da Silveira. São Paulo: Autonomia Literária, 2023, p. 10.
[3] Ibidem, p. 13.
[4] Ibidem, p. 16.
[5] Crary, Jonathan. Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. Trad. Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2023, p. 13.
[6] Como já dito, sigo de perto os argumentos de Crary: “Como é bem conhecido, a Arpanet [Rede da Agência de Pesquisas em Projetos Avançados] foi projetada nos anos 1960 como um comando e uma rede de controle ‘distribuídos’ e pensados para sobreviver a um ataque nuclear total. Mesmo que boa parte da rede fosse destruída – junto com a maioria da vida no planeta –, suas estruturas continuariam operacionais graças a uma redundância inerente de rotas e à ausência de comutadores centralizados. A meta era ‘manter um controle das forças nucleares estadunidenses passível de sobreviver’, de modo que a rede manteria sua capacidade retaliatória de lançamento dos mísseis que pudessem ter permanecido intactos. Assim, o que está em discussão é um sistema cuja funcionalidade, além de estar divorciada de todo e qualquer contexto humano, é expressamente projetada para circunstâncias em que a sociedade e seus membros já não existiriam de forma significativa. Apesar da metade de século que se passou desde a implementação da Arpanet, e apesar de todos os aparatos anexos, é impossível exorcizar o terror da realocação em massa da vida social para uma arquitetura de rede originalmente concebida para a abstração final do espaço, para a tabula rasa definitiva”. Ibidem, p. 75-76.
[7] Cf. Ibidem, p. 90-91.
[8] “Como muitos já observaram, as fabulações da ‘era digital’ foram inculcadas com tal sucesso que, apesar de evidências diretas em sentido contrário, ainda há um imaginário generalizado sobre a condição desmaterializada das tecnologias digitais. Realidades materiais e ambientais são convenientemente ocultadas pela miniaturização, pela aparente intangibilidade das redes sem fio, pela desvinculação de dados em relação a locais e por termos como ‘virtual’ e ‘nuvem’. Um dos vários fenômenos que refutam essas ilusões consiste na construção incessante de novos data centers e fazendas de servidores dedicados ao aumento maciço na produção de dados. Essas estruturas térreas que se alastram cada vez mais exigem quantidades desconcertantes de energia e geram níveis de calor prejudiciais aos microcircuitos, que devem então ser resfriados com o uso de milhões de litros de água por unidade todos os dias. No atual ritmo de crescimento exponencial de dados, o número necessário de fazendas de servidores daqui a cinquenta anos cobriria amplas áreas da superfície dos Estados Unidos continentais e de outras regiões. As mitologias de uma economia da informação pós-industrial também eclipsam a persistência de modos anteriores de produção no interior da atual corrida por recursos essenciais para os arsenais de alta tecnologia, para as redes de comunicação, para os produtos eletrônicos de consumo, para os sistemas de energia solar e eólica e muito mais. Como tem sido por séculos e séculos, é a violência contra povos e contra suas terras que define essas operações imperiais e neocoloniais. A possibilidade mesma de uma ‘era digital’ exige a expansão dessas práticas industriais destrutivas rumo a extremos de subjugação do planeta”. Ibidem, p. 49-50.
[9] Ibidem, p. 52-53.
[10] Ibidem, p. 53.
[11] O diagnóstico crítico da cultura ou da experiência em crise como marca da modernidade ocidental foi compartilhado por inúmeros intérpretes, como sabemos. Caso alguém tenha necessidade de balizar o panorama, poderíamos citar, entre muitos outros: Marx e Engels, “Manifesto do Partido Comunista”; Nietzsche, Segunda consideração extemporânea e Crepúsculo dos ídolos; Simmel, “As cidades e a vida do espírito” e “Conceito e tragédia da cultura”; Freud, “Para além do princípio do prazer” e O mal-estar na cultura; Benjamin, “Experiência e pobreza” e “O narrador”; Husserl, “A crise da humanidade européia e a filosofia”; Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento etc.
[12] Fisher recorre a sua experiência docente para dar contorno ao problema: “A consequência de estar capturado na matriz de entretenimento é uma interpassividade ansiosa e agitada; uma inabilidade em concentrar-se ou manter o foco. A incapacidade dos alunos em ligar a falta de foco, no presente, com maus resultados no futuro, a incapacidade de sintetizar o tempo em qualquer tipo de narrativa coerente é sintomático de algo mais do que mera desmotivação – na verdade, lembra assustadoramente a análise de Jameson em Pós-modernismo e sociedade de consumo. Jameson observou que a teoria lacaniana acerca da esquizofrenia oferece um ‘modelo estético sugestivo’ para compreender a fragmentação da subjetividade em face à emergência do complexo da indústria do entretenimento. ‘Com o colapso da cadeia significante’, Jameson resume, ‘o esquizofrênico lacaniano é reduzido a uma experiência da materialidade pura dos significantes, ou, em outras palavras, a uma série de presentes atemporais, puros e desconectados’. Jameson escreveu isso nos anos 1980 – ou seja, na época em que a maioria dos meus alunos estava nascendo. O que vemos hoje em sala de aula é uma geração que já nasceu nesta cultura pontilhada, a-histórica e anti-mnemônica – uma geração para a qual o tempo, desde sempre, veio cortado e embalado em micro fatias digitais”. Fisher, Mark, op. cit., p. 47-48.
[13] Cf. Benjamin, Walter. Experiência e pobreza [1933]. In: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio P. Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114-119.
[14] A expressão é utilizada por Fisher, a partir de sua leitura de Espinosa (Cf. p. 123). Crary também escreve sobre esse mesmo pathos: “Esse é um traço decisivo da era do vício tecnológico: podemos voltar repetidas vezes a um vácuo neutro de baixa intensidade afetiva”; e mais adiante: “Mesmo em repetições habituais, porém, permanece um fio de esperança – uma esperança sabidamente falsa – de que um clique a mais possa dar acesso a algo que nos libertaria da monotonia insuportável em que estamos imersos. Uma das formas de incapacitação em ambientes 24/7 é a perda da faculdade de sonhar acordado ou de qualquer tipo de introspecção distraída que costumava ocorrer nos interregnos de horas lentas ou vazias”. Crary, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. Trad. Joaquin Toledo Jr. São Paulo: Ubu, 2016, p. 96-97.
[15] Fisher, Mark, op. cit., p. 126.
[16] Reponho aqui a argumentação de Benjamin a respeito da miséria da experiência na modernidade, extremada no contexto da Primeira Guerra Mundial. Cf. “Experiência e pobreza”, op. cit., p. 115.
[17] Crary, Jonathan. Terra arrasada, op. cit., p. 145-146.
[18] Tenho em mente, nessa passagem, a definição de estética (aisthesis) tal como retomada por Susan Buck-Morss. Cf. Buck-Morss, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin. Em: CAPISTRANO, T. (org.). Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Trad. Marijane Lisboa e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 173-222.
[19] Desse modo, segue o autor, “a condição do trabalho imaterial é a produção de subjetividade, o conteúdo do trabalho imaterial é a produção de subjetividade, o resultado do trabalho imaterial é a produção de subjetividade. Ou seja, a produção de subjetividade atravessa tanto o processo do trabalho quanto o seu produto. Mas é preciso insistir: a subjetividade não é algo abstrato, trata-se da vida, mais precisamente, das formas de vida, das maneiras de sentir, de amar, de perceber, de imaginar, de sonhar, de fazer, mas também de habitar, de vestir-se, de se embelezar, de fruir etc. Se é um fato que a produção de subjetividade está no cerne do trabalho contemporâneo, é a vida que aí está em jogo. O trabalho precisa da vida como nunca, e seu produto afeta a vida numa escala sem precedentes”. Pelbart, Peter Pál. A vertigem por um fio. Políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000, p. 36-37.
[20] Cf. Fisher, Mark, op. cit., p. 37, 66-67.
[21] Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 159.
[22] Ibidem, p. 269.
[23] Ibidem, p. 270.
[24] Badiou, Alain. Em busca do real perdido. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 34.
[25] Quanto à teoria, seria preciso desenvolver a aproximação entre essa digitalização da vida, aqui criticada, e os protocolos de leitura cristalizados com o fim da Guerra Fria, baseados em operadores conceituais como “rede”, “disseminação”, “diferença”, “singularidade”, “desterritorialização”, “nomadismo”, “pós-autonomia” etc. A pergunta, no caso, poderia ser esboçada da seguinte maneira: como a nossa forma de ler/consumir, amparada por essas teorias, afinal confina com a progressiva fragmentação da experiência, da historicidade e da capacidade subjetiva de nos situarmos numa cartografia mundial?