Os sonâmbulos
O jornalista Arthur Koestler, em seu belo livro “Os sonâmbulos”, sobre Kepler, interpreta o pensamento dos primeiros astrônomos que fundaram a ciência moderna como se eles fossem caminhantes erráticos, vivendo um sonho e conseguindo a proeza de transfigurar um pesadelo em uma história fascinante do universo.
A renovação da atividade científica do século 21, que repousa sobre as mudanças na física que os cosmólogos estão articulando (e cuja tarefa se identifica com a refundação da física) parece se afastar das práticas desenvolvidas nos últimos cinco séculos e se aproximar daquela dos pais fundadores da ciência moderna.
Como os cientistas não estão acostumados a empreender, mesmo que superficialmente, uma autocrítica de sua atividade, essa concepção pode lhes parecer inaplicável ou mesmo inadequada. E, no entanto, uma análise do modo pelo qual a atividade científica é realizada hoje sustenta e dá sentido a essa argumentação. Um comentário breve pode ser esclarecedor.
No começo de 1980, durante uma pequena reunião informal, alguns cientistas da antiga União Soviética produziram um documento sobre dez grandes questões da física que o cientista russo V. Ginzburg explicitou em um livro. De tempos em tempos uma tal atividade – quando ocorre de modo não-oficial, desvinculada de compromissos governamentais – tem consequência bastante salutar. Entretanto, quando ela se institucionaliza, sua função se transforma e ela adquire a forma de um processo de controle da atividade cientifica, integrando-se perfeitamente no atual sistema capitalista globalizante e único.
Ao consultar aquele texto, descubro que a maior parte daquelas questões não foi resolvida. Ademais, essas soluções parecem depender da análise de caminhos alternativos ao establishment envolvendo processos que requerem mudanças profundas na orientação da investigação científica.
Dez anos depois, Ginzburg retomou essa mesma tarefa e elaborou uma nova lista com várias mudanças. Poder-se-ia imaginar que as questões que não reapareceram haviam sido resolvidas. Infelizmente, não. Elas foram simplesmente postas de lado, como se não fossem mais relevantes ou se houvéssemos abdicado de resolvê-las. Em geral, as duas coisas aconteciam.
Hoje, quando a atividade científica se midiatizou, a produção de uma semelhante lista passou a ser uma atração e se institucionalizou através de sua associação a entidades corporativistas como as sociedades científicas. Na elaboração dessas questões e na produção dos caminhos empreendidos para resolvê-las se estruturou um modo de pensar único, cuja função social consiste em domesticar a imaginação, afastando o pensamento para territórios longínquos da atividade central do jovem cientista, rotulando-o o mais das vezes como caminhos que não levam a lugar algum.
Essa restrição do devaneio, de controle da imaginação, de limitação do ato de pensar só é possível graças ao status atual dos cientistas – em sua maioria, funcionários de agências governamentais ou de empresas privadas de alta tecnologia – que produziu uma estrutura de poder totalmente distinta dos tempos de sua origem, há 400 anos. Pode-se, então, perceber que o que se ganhou em eficiência, perdeu-se em transcendência.
Os sonâmbulos de Koestler eram movidos por projetos individuais que se organizavam aleatoriamente. Nós, cientistas, somos ainda sonâmbulos procurando pelo despertar de um sonho que permita produzir uma história completa do universo. E, tal como eles, ainda hoje tateamos no escuro.
Devemos, no entanto, reconhecer que há em verdade uma grande distinção entre os sonâmbulos de Koestler e os sonâmbulos contemporâneos. Kepler e seus colegas estavam buscando o sentido do universo através de um caminho do qual se originou a ciência moderna e que produziu uma nova e maravilhosa visão do cosmos.
Hoje, o predomínio da tecnologia serve para sustentar o modo capitalista de forma cada vez mais abrangente e dogmático. Perdida a transcendência, o que resta? Perdido o significado maior da ciência, o que sobra? Como diria Huxley, os macacos escolhem os fins; só os meios são dos homens.
No século 20, o afastamento entre ciência e filosofia resultou em uma orientação tecnológica que se fecha para a reflexão humana. Os mecanismos de financiamento das pesquisas inibem o surgimento daquele tipo de encantamento cósmico da era de Kepler. Em verdade, o principal interesse, hoje, se concentra no desenvolvimento das técnicas que permitem formatar a sociedade.
Os efeitos nocivos de tal situação podem ser sintetizados na metáfora contida na frase “não importa a cor do gato, desde que ele cace ratos”, pronunciada por Deng Xiaoping, na década de 1970, síntese do pragmatismo que transformou a China numa potência econômica no século 21, e que conduz a uma situação-limite onde esse competente gato pode se transformar num felino selvagem que irá nos devorar.