O retrato oval de Poe e a matéria aquática
I – A nova crítica literária de Gaston Bachelard
Baseando-se em uma filosofia do não – uma geometria não euclidiana, uma epistemologia não cartesiana, uma razão não kantiana e uma física não newtoniana –, Gaston Bachelard propõe uma revolução no âmbito científico.
É inaugurado, então, o Novo Espírito Científico, orientado pela inversão epistemológica de dois princípios da física atômica. O primeiro consiste no princípio da complementaridade, conforme o qual a unidade substancial é convertida em unidade relacional. Já o segundo diz respeito ao princípio de definição operatória dos observáveis, de acordo com o qual não se observa para saber, mas, antes, sabe-se para observar.
Nesse sentido, é inspirado no Novo Espírito Científico que surge o NovoEspírito Literário. Bachelard transpõe a revolução epistemológica instaurada na ciência para a literatura, rejeitando o positivismo crítico e o cartesianismo literário. Seguir essas correntes seria simplificar a arte, reduzindo-a a modelos fixos e preconcebidos de análise. Entende-se que esse ortodoxismo literário, baseado na estética clássica, absolutamente metodológica, é insuficiente para enquadrar obras de criatividade muito aguda.
A obra de arte autêntica não se deixa enquadrar em categorias preconcebidas de interpretação, mas dita as suas próprias regras. Far-se-ia necessária, então, a renovação dos estudos literários de forma a fazer com que a originalidade da obra fosse reconhecida dentro de seu próprio sistema criativo.
Nesse sentido, a poética de Bachelard, baseada em eixos teórico-científicos, revelar-se-á preocupada com a singularidade de cada obra. A Nova Crítica Literária apresenta-se criativa e hermeneuticamente concriativa, delineando o recurso metódico segundo a peculiaridade da obra. O filósofo entende que a crítica literária deve ser um incessante exercício de reflexão e sensibilidade. O novo espírito será, assim, uma doutrina surrealista – de criação além da realidade manifesta – da ambivalência das imagens, que converte as antíteses lógicas em ambiguidades ontológicas.
A estética bachelardiana conta, então, com algumas noções básicas. A partir da ‘metafísica concreta’ da ciência moderna, de acordo com a qual a energia é o ser e o ser é energia, é proposta a Estética Concreta. Esta, por sua vez, diz respeito a uma nova concepção estética da obra de arte, fundamentada pela noção de matéria – água, ar, terra e fogo – como um plexo de pulsões energéticas.
A dialética ontológica da matéria e da energia propicia uma arqueologia do imaginário, instituindo a Imaginação Material ou Dinâmica. Esse novo conceito consiste na substituição da concepção inerte e estática de imaginação formal e abstrata, característica do classicismo artístico, a fim de apreender e descrever o funcionamento dialético da imaginação.
Desenvolve-se, também, a noção de Ritmanálise, como um método dialético de exegese literária, capaz de corresponder à ambivalência e à descontinuidade da literatura contemporânea. Nessa perspectiva, o fenômeno mais concreto passa a ser a imagem poética. As imagens verdadeiramente autênticas são produtos puros do imaginário, sem antecedentes, e, por esse motivo, são chamadas “Imagens-princeps” (Imagem-princípio). O objetivo, então, é rastrear seus desdobramentos na composição do enredo das obras. Para isso, faz-se necessário retraçar concriativamente a atividade plasmadora da imaginação material e dinâmica, elucidando ritmanaliticamente a dualidade das imagens poéticas. Tem-se, dessa forma, o procedimento chamado de Lei da Isomorfia das Imagens.
Torna-se evidente, portanto, que, por trás do Novo Espírito Científico e da Nova Crítica Literária, está a grande tese bachelardiana acerca da interação dialética e complementar dos contrários. Ademais, a nova crítica, no que tange à literatura, visa a acompanhar a tendência contemporânea de criação simultânea das leis de composição e das regras de interpretação. É inserida, então, na linguagem poética da obra, a metalinguagem crítica que a explicita.
Nota-se, pois, que, diante do Novo Espírito Literário, a contemplação passiva dá lugar à comparticipação ativa da obra, em que o leitor, passionalmente envolvido, joga seu destino no ato de interpretar e assume, poeticamente, os textos artísticos. Nessa perspectiva, artista e intérprete transformam-se existencialmente ao longo da obra.
II – Interpretação do conto “O retrato oval”, de Edgar Allan Poe
“Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?”
(Ferreira Gullar)
Bachelard, em seu estudo, analisa os diferentes tipos de imaginação pelo signo dos elementos materiais que inspiraram as antigas cosmologias e as filosofias tradicionais. Nesse sentido,define a Lei dos quatro elementos para classificar as diversas imaginações materiais de acordo com a forma como elas se associam aos elementos naturais – fogo, ar, água e terra.
A partir disso, é possível vislumbrar a obra de Edgar Allan Poe como sendo essencialmente ligada ao elemento água. Sob as imagens superficiais da água, há uma infinidade de imagens cada vez mais profundas. A água funciona como um tipo de destino que metamorfoseia, incessantemente, a substância do ser. A água, tal qual o ser, é o elemento transitório, efêmero, que segue o mobilismo de Heráclito de Éfeso: não se pode mergulhar duas vezes no mesmo rio. Bem como o homem se transmuta à passagem das horas, o rio se transmuda no curso das águas.
A poética aquática é, pois, a poética do ser deveniente, cuja essência consiste em deformar-se constantemente. O ser voltado à água é um ser em vertigem, que morre a cada instante, que tem parte de sua substância perdida continuamente. A morte da água é a morte cotidiana. Falar de vida, na poética da água, já é falar de morte. O rio sempre corre, a chuva sempre cai e a água acaba sempre em sua morte horizontal: o sofrimento da água é infinito.
Em Poe, a água será pesada, profunda e morta mais do que qualquer outra. As imagens da água seguem o destino do principal devaneio do poeta que é o devaneio da morte. A água recebe a morte em sua intimidade, como essência, como uma vida abafada. Nessa perspectiva, toda água clara deve escurecer, toda água viva deve morrer. A água fornece a Poe o símbolo de uma vida que deseja morrer.
Para o artista, a água imaginária realiza o ideal de um devaneio criador porque possui o que se poderia chamar de absoluto reflexo. O reflexo, em sua obra, é mais real do que o próprio real. A imagem reflexa desrealiza a realidade imperfeita a fim de realizar a idealidade perfeita. O lago, ao refletir o céu, imobiliza-o, criando um céu em seu seio. A água do lago é um céu invertido em que os astros adquirem uma nova vida. Nessa articulação, a água assume o céu. A água atua eliminando o vigor do mundo real e conferindo ao mundo reflexo um primor fantástico, uma solenidade platônica. O mundo adquire um caráter pessoal, visto que, no espelho puro da água, o mundo é a visão de quem o olha. Quem vê sente-se autor do que está, sozinho, a ver, do que vê de seu ponto de vista. As águas espelhantes representam a visão pura e solitária de seu contemplador.
Na obra poesca, cabe ressaltar ainda, a presença de um tríptico sinistro e complementar: beleza, morte e água. Só a água pode dormir conservando sua beleza e só a água pode morrer, imóvel, conservando seus reflexos. A beleza só é possível mediante a morte, e a morte só é bela mediante a água.
Em “O retrato oval”, ainda que não haja rio, lago, lágrima ou qualquer imagem explícita de água, faz-se clara a influência do elemento no desenrolar do conto. Eis a prova de que a água é mais que uma simples imagem. A água é um destino e se apresenta entranhada no percurso da obra.
O brotar da água aparece já no início da narrativa. A descrição interna do castelo em que se passa a estória é feita de forma a refletir a forma externa, como um lago reflete o céu. Por fora, é apresentado um castelo grandioso e sombrio, que se ergue carrancudo entre montes italianos e aparenta ter sido “temporária e recentemente abandonado”. Como espelho do abandono externo, o interior é pintado dividido em salas, com decorações “ricas, embora estragadas e antigas”, “pesados postigos” e “franjadas cortinas de veludo preto”. Há, ainda, algo muito peculiar: o castelo era tomado por quadros não só nas paredes, mas até nos “numerosos ângulos que a esquisita arquitetura do castelo formava”.
Além disso, todos os ambientes descritos são sombrios, sempre profundamente escuros, contando apenas com uma luz como iluminação. A luz vem sempre de um único ponto e só ilumina um objeto de cada vez: “no escuro e alto quarto do torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva tela”. Até mesmo a técnica usada na pintura do quadro, Vignette, está ligada à noção de foco voltado para o centro do quadro, conseguida através do enquadramento do objeto principal com esmaecimento das bordas da obra, que ficariam mais desfocadas, mergulhadas em sombra ou luz. No caso do retrato oval, a imagem central da mulher é mergulhada em sombras: “Os braços, o colo, e mesmo as pontas do cabelo luminoso perdiam-se imperceptivelmente na vaga porém profunda sombra formada pelo fundo do conjunto”.
É nítido, no conto, o predomínio da treva em relação à luz. A substância e a sombra não se separam: o limite entre elas perde-se “imperceptivelmente”.
Quando, então, o narrador, por acidente, ilumina o retrato oval, seu primeiro impulso é fechar os olhos. Ele é tomado por uma “comoção tão súbita e tão intensa”, que não pôde, em um primeiro momento, suportar a visão do quadro. O quadro não impressionava por sua magnífica execução ou por sua beleza. Consta, pois, que “o encanto do retrato estava na expressão de uma absoluta aparência de vida”. É evidente que o objetivo de se fazer um retrato é captar a imagem de uma pessoa. Todavia, no retrato oval, o que havia sido captado era muito maior do que, meramente, a imagem da jovem moça. O quadro captara a própria vida.
Nota-se, também, a linguagem líquida com que o conto é desenvolvido. No trecho “Rápida e esplendidamente as horas se escoaram e a profunda meia-noite chegou”, é muito forte a presença da água. Na sinonímia pertencente ao universo aquático, o tempo, no caso, as horas, equivale ao curso do rio. As horas, por sua vez, correm com destino a mais profunda escuridão que ocorre, justamente, à meia-noite.
No que tange à descrição dos personagens, é possível identificar o percurso macabro das obras de Poe. A mulher pintada no retrato oval, inicialmente, era uma donzela “da mais rara beleza”, “não só amável como cheia de alegria” e “toda luz e sorrisos”, que tinha apenas a arte como sua inimiga, por ser o outro amor de seu marido. É relatado como “maldita foi a hora” o momento em que ela se apaixonou pelo pintor. A hora foi maldita porque o ato de amor é um rapto de si mesmo. O ato de amor é uma morte e a jovem, experimentando-o, inicia sua lenta e progressiva morte. No decorrer da obra, a vida, a alegria e a beleza da jovem darão lugar à tristeza e à morte.
Ele, o pintor, é descrito de forma muito interessante. “Ele era apaixonado, estudioso, austero e já tinha na Arte a sua desposada”. Era capaz de ser arrebatado, mas, ao mesmo tempo, era austero, rígido, sóbrio. Enquanto construía sua obra de arte, regozijava-se e “era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia perdido em devaneios”. O artista era o próprio retrato da convivência harmônica dos contrários. Era austero, sóbrio, sem enfeites ou ornamentos, mas era também extravagante, vivia perdido em devaneios – estado de semiconsciente – e trabalhava com “ardente e fervoroso prazer”. Quanto mais perto ele chegava do fim de sua obra, mais se aflorava sua duplicidade – “o pintor se tornara rude no ardor de seu trabalho” –, mais sua aspereza se mesclava à vivacidade, à paixão. O artista amava a mulher e a arte, como amava, complementariamente, a vida e a morte, o calor e o frio de sua essência dual.
Além disso, “raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o semblante de sua esposa”. O retrato adquirira caráter pessoal a tal ponto que o artista sentia-se autor do que via de seu ponto de vista. Diante da água profunda, é possível escolher o que se vai ver, o fundo ou a superfície, o reflexo. A visão das águas espelhantes é pura e solitária. O pintor escolhe ver o reflexo.
À medida que o pintor delineava o retrato oval de sua mulher, ela murchava em saúde e vivacidade. “A luz que caía tão lívida naquele torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos para ele”. A luz que dá vida à flor é a mesma luz que a faz definhar. A mulher perdia, gradualmente, seu vigor, sua alegria, sua luz, ao passo que o quadro ganhava vida. “Ela se tornava cada vez mais triste e fraca”, o seu ser se esvaía gradualmente, como o correr de um rio.
Na poética de Edgar Poe, tudo que é belo deve morrer, e a jovem paga com a morte por sua beleza. Os processos de criação da obra e de definhamento da mulher são simultâneos, porque são o mesmo. O real dá lugar ao seu reflexo, e o quadro era o reflexo absolutamente perfeito da mulher. O quadro é a água inerte, o espelho absoluto. A mulher bela torna-se um quadro de morte e a morte, então, é posta em uma luz especial. A morte é maquiada com as cores da vida da jovem. O pintor pintava com as tintas da dor de sua esposa. A tinta era a própria matéria da melancolia: “as tintas espalhadas sobre a tela eram tiradas das faces daquela que se sentava ao seu lado”. As tintas davam vida ao quadro e dissolviam, em morte gradual, a jovem. A morte na água é a morte por dissolução. Eis o tríptico sinistro em que se relacionam beleza, morte e água.
Quando o retrato chega perto de seu fim, Poe transita entre a água e o fogo para descrever o ânimo da mulher. “A alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma lâmpada”. Ela amava o marido e tudo que diz respeito ao amor vai de encontro ao fogo. O desafio da mulher, descrito pela imagem primordial do universo ígneo – a chama –, era impor-se frente à horizontalidade da vida, travando uma luta entre treva e luz.
Por fim, seguindo o destino mortal do elemento aquático em Poe, a treva vence a luz. As trevas tomam conta da alma e do coração da mulher, que viu seu marido trocá-la por seu retrato-reflexo, não havia mais alegria. A luz da alegria cede lugar à tristeza da escuridão. Ela foi toda tomada de tristeza e melancolia. A obra de arte, então, pesada de desgostos, inicia sua vida. A vida dá lugar à morte, como expressa a última exclamação do pintor – “Isto é a própria vida” –, que logo em seguida verifica a morte de sua mulher. A imagem ideal celebra a morte do objeto real. Esse quadro, essa água de tantos reflexos de tristeza, de tantas sombras, é uma água pesada. A mais pesada de todas as águas, o mais real de todos os retratos.
Faz-se claro, portanto, que vida e morte complementam-se de forma macabra no conto. No início, havia uma “alva tela”, uma tela morta, e uma mulher viva. Ao final, tem-se a tela viva e a mulher morta. Concomitantemente ao início da pintura do retrato, inicia-se a morte da mulher. É preciso que o real morra para que reine o ideal. O título “O retrato oval” e a descrição do castelo como tendo sido “temporária e muito recentemente abandonado” indicam o processo cíclico do nascer e morrer necessário à criação da obra – da morte como uma forma de vida. O círculo-oval indica, pois, a posição de maior intimidade e repouso, em que vida e morte se encontram. Assim, o que é vivo morre, e cede lugar ao que é morto. Nesse movimento, o que é morto ganha vida. Eis o nascer e morrer que, em Poe, destina-se sempre à obscuridade. A vida morre para que a morte, vivendo, reine.
III – Conto: “O retrato oval”, de Edgar Allan Poe
“O castelo cuja entrada meu criado se aventurara a forçar para não deixar que eu passasse a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses monumentos ao mesmo tempo grandiosos e sombrios que por tanto tempo se ergueram carrancudos entre os Apeninos, tanto na realidade como na imaginação da Sra. Radcliffe. Segundo todas as aparências, tinha sido temporária e muito recentemente abandonado.
Aboletamo-nos em uma das salas menores e menos suntuosamente mobiliadas, localizada num afastado torreão do edifício. Eram ricas, embora estragadas e antigas suas decorações. Tapeçarias pendiam das paredes, adornadas com vários e multiformes troféus de armas, de mistura com um número insólito de quadros de estilo bem moderno
em molduras de ricos arabescos de ouro. Por esses quadros, que enchiam não só todas as paredes, mas ainda os numerosos ângulos que a esquisita arquitetura do castelo formava, meu delírio incipiente me fizera talvez tomar profundo interesse. Assim é que mandei Pedro fechar os pesados postigos da sala, pois já era noite, acender as velas de um enorme candelabro que se achava à cabeceira de minha cama e abrir completamente as franjadas cortinas de veludo preto que envolviam o leito. Desejei que tudo isso fosse feito, a fim de que pudesse abandonar-me senão ao sono, pelo menos, alternativamente, à contemplação desses quadros e à leitura de um livrinho que encontrara sobre o travesseiro e que continha a critica e a descrição das pinturas. Li, li durante muito tempo e longamente contemplei aqueles quadros.
Rápida e esplendidamente as horas se escoaram e a profunda meia-noite chegou. A posição do candelabro me desagradava e, estendendo a mão, com dificuldade, para não perturbar o sono do criado, coloquei-o de modo a lançar seus raios de luz em cheio sobre o livro.
Esse gesto, porém, produziu um efeito totalmente inesperado. Os raios das numerosas velas (pois havia muitas) caíam agora dentro de um nicho da sala que ate então estivera mergulhado na intensa sombra lançada por uma das colunas da cama. E assim vi, plena luz, um retrato até então despercebido. Era o retrato de uma jovem no alvorecer da feminilidade. Olhei rapidamente para o retrato e depois fechei os olhos. Por que isso fizera, eu mesmo não o percebi a principio. Mas, enquanto minhas pálpebras permaneciam fechadas, revolvi na mente a razão de assim ter feito. Era um movimento impulsivo, para ganhar tempo de pensar, para certificar-me de que minha vista não me iludira, para acalmar e dominar a fantasia, forçando-a a uma contemplação mais serena e mais segura.
Logo depois, olhei de novo, fixamente para o quadro.
Do que então vi claramente não poderia nem deveria duvidar. Porque o primeiro clarão das velas sobre aquele quadro como que dissipou o sonolento torpor que furtivamente se apossava de meus sentidos e sem demora me pôs completamente desperto.
O retrato, como já disse, era o de uma jovem. Apenas a cabeça e os ombros, feitos na maneira tecnicamente chamada vignette, e bastante no estilo das cabeças favoritas de Sully.
Os braços, o colo, e mesmo as pontas do cabelo luminoso perdiam-se imperceptivelmente na vaga porém profunda sombra formada pelo fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à mourisca. Como obra de arte, nada podia ser mais admirável do que a própria pintura. Mas aquela comoção tão súbita e tão intensa não me viera nem da execução da obra nem da imortal beleza do semblante. Menos do que tudo poderia ter sido minha imaginação que despertada de seu semi torpor, teria tomado aquela cabeça pela de uma pessoa viva. Vi imediatamente que as peculiaridades do desenho, do trabalho do vinhetista e da moldura deviam ter de pronto dissipado tal idéia, impedido mesmo seu momentâneo aparecimento. Permaneci quase talvez uma hora semierguido, semi-inclinado, a pensar intensamente sobre tais pormenores, com a vista fixada no retrato. Por fim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, deixei-me cair na cama. Descobrira que o encanto do retrato estava na expressão de uma absoluta aparência de vida que a princípio me espantou para afinal confundir-me, dominar-me e aterrar-me.
Com profundo e reverente temor, tornei a pôr o candelabro em sua primitiva posição. Afastada assim de minha vista a causa de minha aguda agitação, busquei avidamente o volume que descrevia as pinturas e sua história. Procurando a página que se referia ao retrato oval , li as imprecisas e fantásticas palavras que se seguem:
Era uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria. E maldita foi a hora em que ela viu, amou e desposou o pintor. Ele era apaixonado, estudioso, austero e já tinha na Arte a sua desposada. Ela, uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria, toda luz e sorrisos, travessa como uma jovem corça; amando com carinho todas as coisas; odiando somente a Arte, que era sua rival; temendo apenas a paleta, os pincéis e os outros sinistros instrumentos que a privavam da contemplação do seu amado. Era pois terrível coisa para essa mulher ouvir o pintor exprimir o desejo de pintar o próprio retrato de sua jovem esposa. Ela era, porém, humilde e obediente, e sentava-se submissa durante horas no escuro e alto quarto do torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva tela.
Mas ele, o pintor, se regozijava com sua obra, que continuava de hora em hora, de dia em dia, e era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia perdido em devaneios; assim não percebia que a luz que caía tão lívida naquele torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos para ele. Contudo, ela continuava ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que o pintor (que tinha alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava, dia e noite, por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada vez mais triste e fraca.
E, na verdade, alguns que viram o retrato falavam em voz baixa de sua semelhança como de uma extraordinária maravilha, prova não só da mestria como de seu intenso amor por aquela a quem pintava de modo tão exímio. Mas afinal, ao chegar o trabalho quase a seu termo, ninguém mais foi admitido no torreão, porque o pintor se tornara rude no ardor de seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o semblante de sua esposa. E não percebia que as tintas que espalhava sobre a tela eram tiradas das faces daquela que se sentava a seu lado. E quando já se haviam passado várias semanas e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre a boca e um colorido nos olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma lâmpada. E então foi dada a pincelada e completado o colorido. E durante um instante o pintor ficou extasiado diante da obra que tinha realizado mas em seguida, enquanto ainda contemplava, pôs-se a tremer e, pálido, horrorizado, exclamou em voz alta: “Isto é na verdade a própria vida!”, voltou-se, subitamente, para ver a sua bem-amada… Estava morta!”
– – – – –
*Thaís Seabra é mestranda em Letras Português-Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com ênfase em ficção brasileira contemporânea.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico (tradução Antonio José Pinto Ribeiro). Lisboa: Edições 70, 1996.
_____. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
POE, Edgar Allan. O retrato oval. In: Contos de terror, de mistério e de morte. (tradução Oscar Mendes). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.