Do Cosmicismo à Co(s)micidade:
horror & borogodó
Este artigo foi originalmente publicado no livro “Veredas da imaginação”, Editora Sulina (Porto Alegre), 2024, organizado por Erick Felinto e Cíntia Sanmartin Fernandes.
A civilização está errada, desde sua raiz, filho. Você vai dizer que é possível analisar o problema e juntos procurar uma saída. Talvez. Se não fosse tão tarde! É tarde demais… Deus, como eu estou cansado disso tudo! “Palavras, palavras, palavras…”, finalmente, entendi o que Hamlet quis dizer. Ele estava cheio até o pescoço com esse palavreado vazio. Eu também, porque eu sempre falo, falo. Se alguém parasse de tagarelar e, em vez disso, fizesse alguma coisa! —Tarkovski, “O sacrifício”
Este artigo (ou grito) pode ser lido, na pior das hipóteses, enquanto uma carta pós-moderna malcriada para o ocidente, mas a epígrafe do grande cineasta russo acima serve melhor para sintetizar o diagnóstico que faremos aqui, sendo que a proposta mais relevante é, de um lado, uma crítica e, de outro, um drible, junto com o cultivo de algo novo.
As ciências sociais sofreram um abalo sísmico com a publicação de “O despertar de tudo” dos Davids, Graeber e Wengrow (2021). Mostra-se ali que a humanidade foi, em grande parte da sua história, igualitária, inclusive havendo a coexistência de sociedades matriarcais caçadoras-coletoras e patriarcais agricultoras por quase um milênio. Os autores provocam o cânone ideológico das ciências sociais dizendo que o que se chama tradicionalmente de “pré-história” seria uma espécie de achatamento pelas ciências sociais de algo muito rico e profícuo, e, como dissemos, com várias experiências bem-sucedidas e portanto, duráveis, de sociedades igualitárias e caridosas. Podemos inferir que aquilo que normalmente se entende por uma noção de história orientada pela “luta de classes”, posta essa larga experiência histórica de igualdade, fica também em cheque. Ou seja, estamos trazendo uma conceituação que habita um campo que exclui tanto um discurso de direita que ainda abusa de certo darwinismo social, e de uma esquerda “dialética”, desgastada por insistir em pressupostos datados, oriundos do século XIX.
Cabe, então, a questão de compreender quando as sociedades começaram a se tornar majoritariamente desiguais. Para nós, parece ser muito importante identificar uma estratégia tão insidiosa quanto genial: a invenção da noção de“transcendência” e de “dualismo”, ou seja, a ideia de que os devires cósmicos são apartados de algo superior, imutável, intangível, eterno e que não é da ordem do sensível. Tal estratégia se confunde com o próprio processo civilizacional e o caso do Egito Antigo nos parece ser um exemplo notável.
Na passagem do Império Antigo para o Império Novo do Egito Antigo, em torno de 1550 AEC, houve um aumento significativo do poder dos faraós, conjuntamente com uma mudança não-linear no estatuto cósmico do cidadão egípcio, que deixara de ser uma extensão imanente dos deuses para se tornar um indivíduo imanente, inferior a eles, agora transcendentes. Portanto, os deuses supostamente se ligavam à imanência “inferior” somente por meio dos faraós, o que legitimaria o poder desses últimos (Carrera, 1994). Estavam lançadas as bases de um projeto de invenção da transcendência e sua relação inequívoca com o poder. Isso migrou para o platonismo grego e seu Mundo das Ideias, e para toda a institucionalização do cristianismo, sobretudo a partir do Concílio de Calcedônia em 451 E.C., onde se operou definitivamente a “helenização do sagrado”, com o estabelecimento das duas naturezas do Cristo, de modo que o Cristo puramente imanente foi gradativamente apagado do imaginar(io) (Vasconcelos e Hurtado, 2016). Os desdobramentos disso foram o dualismo cartesiano (com o corpo de natureza imanente e a mente de natureza transcendente) e a filosofia kantiana, cujos momentos mais radicais, e que fizeram mais eco, decretavam a inacessibilidade à coisa em si. Lapidou-se, assim, a base dualista do pensamento ocidental e a ubiquidade do desamparo cósmico da humanidade, que, ao perder seu estatuto imanente cosmodivino, tornou-se um ser cujo imaginar(io) foi povoado pelas noções de que ele, humano, é radicalmente parcial, desconectado do cosmos e que apenas convive com representações e fantasmas faltantes, o que foi corroborado e galvanizado, de modo geral, pela psicanálise e seus desdobramentos.
As psicologias estabelecem modelos de aparelhos psíquicos que orbitam em níveis variados em torno do kantismo, cada uma com seus devidos fetiches em paixões tristes, os freudianos com a falta, os lacanianos com a angústia, os existencialistas com a náusea, os junguianos com o clichê ontológico (arquétipo), os cognitivo-comportamentais em sua visão de humanidade destituída de poética etc. Mesmo os esquizoanalistas — que habitam uma ontologia do que seria a mente, imanente ao corpo, mais consistente e guiados por uma Ética spinozista — por vício do meio clínico, ficam, na maioria das vezes, também à mercê dos “dramas burgueses”. Se, de um lado, radicalizarmos a proposta de Hume (2000) em seu Tratado da natureza humana, que, a partir da crítica da causa e efeito, afirma ser o sujeito desprovido de substancialidade e que “o guia da vida não é a razão, mas o hábito”, todos os modelos de aparelho psíquico ruirão. Além disso, se trocarmos os congressos de psicologia, por uma conversa de bar entre delegados, prostitutas, advogados — principalmente os de família e os criminais —, agiotas e os grandes escritores, teremos muito mais consistência acerca do que se passa na alma da humana.
Com a produção de ilusão de transcendência e sua relação inequívoca com o poder, legitimou-se o direito divino dos reis e outros assentamentos patriarcais. Um deles, a “democracia”, lançada na excludente sociedade grega que ainda é nosso modelo civilizacional, vai usar uma estratégia recorrente: a de trazer um aprisionamento como uma boa-nova, assim como a noção de “direito ao trabalho” — cuja palavra “trabalho” é etimologicamente ligada às ideias de cambalear por carregar muito peso, tortura e castigo de escravos etc. (Grupo Krisis, 1999) — e ao voto. Em outras palavras, a ilusão de transcendência e seu correlato, o autoritarismo, foi retirando do imaginar(io) a responsabilização em desobedecer quem se colocava contra as espontaneidades cósmicas enquanto auto-organização, ou seja, o poder, estimulando a desresponsabilização individual enquanto obediência: triste sina do “sujeito”.
Kafka nos dará uma compreensão mais apurada desse processo, em seu conto “Sobre a Questão das Leis”: as leis são apreendidas enquanto uma espécie de segredo vazio que simplesmente diz que a elite pode fazer o que quiser, evidenciando sua violência constituinte. De um lado, a direita exibe o fato de que o poder está sempre fora da lei e a esquerda se coloca como “ordem sacerdotal” para protegê-la (Tarì, 2022). Está estabelecida a “dupla pinça” do poder: direita e esquerda enquanto cismogênese estimulada artificialmente, dividindo as populações em dois campos opostos que se digladiam, preservando a cúpula de poder, (Leirner, 2020), que não é nem ambidestra nem ideológica, escondendo-se atrás do conflito que ela mesma gera, fazendo qualquer coisa por controle.
O que chamamos de “poder” foi desenvolvido em nosso artigo “Adeus ao Controle” (Job, 2022): transduzindo a Ética de Spinoza numa estética vibracional, apreendemos a liberdade enquanto a capacidade cada vez mais ampla de modulação de vibrações (potência) e o poder como a capacidade em restringir tais modulações. Os atratores que são expressões do poder se instalam nele em graus variáveis, sendo que a cúpula de poder se instaura nele de forma reincidente. Historicamente, isso se manifesta em uma relação não-linear dos impérios que hoje se constitui como uma cúpula muito reduzida, conjugando de forma levemente instável tanto o ocidente, quanto o oriente, sendo que tal cúpula não opera em noções de direita e esquerda, logo, nem de capitalismo e socialismo, estimulando essa “dialética” no imaginar(io) para turvar o possível interesse que a parcela mais engajada da população pudesse ter por ele. O próprio termo “dialética” é estimulado para turvar as relações mais complexas e dinâmicas, como as rizomáticas.
Tal modus operandi do poder vai constituir uma drástica consequência na assim chamada “saúde mental”: o fato do capitalismo estimular e promover a sociopatia (Boddy, 2017). Líderes de todos os tipos — políticos, CEOs, banqueiros etc. — que são mais desprovidos de simpatia, a capacidade de estar, de fato, com o outro, gerando, assim, um campo relacional, são os que mais rapidamente crescem em suas carreiras, ganham os maiores bônus, muitas vezes sendo considerados mais “eficazes”, ainda que isso gere o paradoxo cada vez mais evidente que são péssimos líderes, gerando baixa produtividade na equipe. Existem mais sociopatas nas lideranças de empresas e partidos políticos do que nos presídios. Desses estudos, podemos inferir que o poder e o controle mundiais estão histórica e majoritariamente nas mãos de sociopatas.
As reverberações dualistas reincidentes no ocidente fazem com que a linguagem seja a mediação largamente privilegiada com o mundo, o que é majorado pela ciência, que representa o mundo por equações, gráficos etc. Se, de um lado, a ciência se torna insensível aos devires mais sutis para reforçar a eficácia do método científico, baseado na repetição, as inúmeras interpretações da mecânica quântica mostram que o caos das assim chamadas “partículas elementares” é parcialmente identificado, mas não é entendido (Job, 2013). A dita eficácia da ciência se reifica mais por seus experimentos controlados por laboratório — leia-se: onde a Natureza está devidamente domesticada — e pela intuição dos grandes cientistas, que sabem driblar os limites de sua linguagem matemática.
A relação dos nossos tópicos anteriores mostra que o modo como o processo civilizacional se deu no ocidente, e que contamina continuamente o oriente, tende a certa sociopatia e ao fascismo[1], e que o fascismo instituído historicamente é apenas um de seus aspectos, tendo em seus ícones suas expressões mais caricatas, quase burlescas. Em outras palavras, em termos da cismogênese criada ao longo do processo civilizatório, fascismo e “antifascismo”, ou, de modo mais amplo, poder e anti-poder, tendem a ser a mesma força em graus diferentes. A nossa proposta perante tal problema será desenvolvida adiante. Aqui é usada a lógica “não pense no elefante”: ao ouvir isso, a “pessoa”[2] tende a pensar em um elefante, suprimi-lo, ou seja, a negação passa sempre por um processo de soma, primeiro instaura-se o que se quer suprimir e depois o suprime. O filósofo imanentista Henri Bergson (2005) trabalha muito bem essa questão ao dizer que a negação é uma afirmação em segundo grau.
A questão de uma civilização construída em bases sociopatas pode gerar um estranhamento inicial, mas a história traz elementos claros disso. O nazismo alemão foi uma estratégia anti-Rússia, onde uma parte significativa de orçamento e fornecimento de material bélico e logístico foi feito por grandes empresas norte-americanas (Black, 2018), bem como grande parte da expertise nazista migrou para os EUA (Graziano, 2005), seu American way of life e sua galvanização enquanto atlanticismo: belicismo, intervencionismo, o cinema como propaganda, a manipulação de símbolos que se desdobrou em teorias de marketing, o uso de drogas lícitas ou ilícitas para “melhorar a performance” (Ohler, 2017) etc. Hitler e os demais avatares caricatos do fascismo servem para turvar a identificação de outros fascistas menos caricatos, que abundam em todo lugar em que há um líder — sociopata — obstinado na manutenção de tal condição, com sua legião de bajuladores, seja ela política, religiosa, financeira, militar, jurídica, educacional etc., muitas vezes pregando valores praticamente contrários às suas crenças.
Pelo que trazemos aqui, evidencia-se o problema das análises de “ascensão da extrema direita e neofascismo” nos dias de hoje. Não existem “causas” recentes, pois as “causas” são as bases do pensamento ocidental, assim como não há neofascismos, mas apenas novos avatares com seus aspectos caricaturais variáveis, sintomas do mesmo e profundo problema, muitas vezes localizado de modo impreciso em questões econômicas como “causas”, que turvam a apreensão ampla do problema. Pensar uma política, uma concepção sociológica, uma clínica, um conceito que venha a trazer luz ao problema da influência do poder a partir das bases do pensamento ocidental nunca vão tratar com a devida eficácia o problema, mas apenas reifica-lo de forma turva, combatendo seu algoz com elementos daquilo que o alimenta. O grande exemplo disso é um fato corriqueiro que vemos hoje: numa manifestação “antirracista”, com atratores de pele escura e claras, onde o primeiro condena o segundo de racismo, tirando dele o direito de se manifestar contra o racismo. A luta contra o racismo hoje reifica o conceito desqualificado de raça e a reifica nas supostas vítimas a própria prática do racismo, que nem sequer possui mais base biológica, ainda que seja, infelizmente, o principal eixo do raciocínio antirracista. Praticamente não se realizam movimentos de pluralidade, convivência e de legitimação étnica, mas movimentos antirracistas. Trata-se das novas facetas do poder de segundo grau se multiplicando.
Queremos trazer a noção imanente de que a postura ética mais adequada diante do poder, independente de sua faceta, seja ela expressa por fascismo, sociopatia etc., é –—desdobrando tópicos foucaultianos e deleuzianos acerca da noção muitas vezes confusa de “resistência” — não ir contra eles, mas afirmar potências desviantes, posto que, caso nos coloquemos contra, apenas estimularíamos mais lutas, dualismos, opressões, ou seja, multiplicaremos a influência do poder[3] (Job, 2022).
Mas se o arcabouço ocidental está corroído pela ubiquidade da influência do poder e se seus ecos estão pelo oriente, o que fazer? Vejamos o caso do escritor norte-americano H. P. Lovecraft.
Lovecraft foi um escritor norte-americano de horror cósmico, muito associado ao cosmicismo, ou seja, a indiferença do universo e de seus seres mais antigos à humanidade. Em sua erudição, o cidadão mais popular de Providence, estava ciente das mudanças que o Momento 1900 estava causando: novas lógicas, geometrias, teorias físicas, psicanálise, vanguardas artísticas etc. Crítico à psicanálise, Lovecraft escreveu acerca de inúmeras criaturas que habitavam uma geometria não-euclidiana, funcionando em uma mecânica quântica, ou seja, novidades que o conservador Lovecraft expressava em sua obra pelo mais puro horror (Romandini, 2013).
Em seu emblemático conto “Através dos Portais da Chave de Prata”, escrito com E. Hoffmann Price, Lovecraft (2017), por meio de seu provável alter-ego, Randolph Carter, passa por vários portais que o faz cada vez mais se libertar das amarras humanas, animais, materiais e cósmicas, chegando num limite total da desreferencialização e liberdade absolutas. Mas eis que o ego ocidental não suporta tamanha liberdade, de modo que, na derradeira etapa de desreferencialização, ele tem o desejo de retornar, mas não sem se desfigurar e acaba precisando usar um disfarce de swami, um sábio espiritual indiano.
Nesse conto, está fractalizada toda a tragédia ocidental: diante da liberdade incomensurável para além das amarras ocidentais, o ego Carter(siano) prefere voltar para sua zona (dualista) de conforto.
A despeito da enorme influência de Lovecraft no cânone do horror ocidental, as grandes produções do imaginar(io), estão longe de apontar a problemática do ego cartesiano atomizado, ao contrário, ele é reificado ao extremo. Se observarmos as cem maiores bilheterias do cinema[4], veremos que todas passam necessariamente pelo “monomito” ou “jornada do herói”, estratégia dos grandes estúdios — que vêm sendo fagocitados pela Disney, principal galvanizadora atual do monomito — para engajar seu público, tornando este previsível, com seu imaginar(io) preenchido com variações da mesma história. (Job, 2019).
Vejamos as dez maiores bilheterias: todas são da Disney e seus estúdios associados. Quatro são de filmes da franquia “Marvel”, sendo que três são da série “Vingadores”, cujo líder é o Homem de Ferro, bilionário que constrói uma armadura para combater supervilões. Isso serve para ajudar a construir a imagem de que existem bilionários que querem “ajudar a humanidade” e não sociopatas que são funcionários de um poder que não revela seu rosto, como por exemplo Elon Musk, “visionário”, que não bolou nenhuma das ideias principais das empresas que ele é considerado “dono”, apesar de cultivar a imagem do contrário, além de criar a falsa ideia de que vai trazer mais “liberdade” às redes sociais, ao “adquirir” o Twitter.
O imaginar(io) ocidental, em seus inumeráveis filmes, séries e livros policiais, tende a reificar a imagem do sociopata enquanto serial killer, quase sempre obcecado com garotas de vinte anos, obscurecendo o fato de que a maior incidência de sociopatas não está compondo o campo policial-criminal, mas está por trás da grande estrutura das empresas que elaboram e transmitem tais histórias de serial killers. Claro que tanto os audiovisuais da Disney quanto os policiais, vão alimentar a todo custo a ideia do “ir contra”, seja contra o supervilão ou o serial killer, seja neste universo ou mesmo no “metaverso”, pois até mesmo a concepção de imaginar outros universos já está alocada, nesse sistema, dentro de um padrão de consumo e sempre à luz do monomito.
Voltando a Lovecraft, se ele mostra os limites do pensamento ocidental, o que podemos apreender a partir de seus portais? Por exemplo, qual a dificuldade em lidar com as sabedorias orientais, que teoricamente nos libertariam do ego ocidental? Porque nossa apreensão dessas sabedorias é digerida como pastiche e afins, como o disfarce de Carter no referido conto?
As sabedorias orientais tendem a ser traduzidas pelo ocidente de forma enviesada pela doutrina das filosofias dualistas cartesianas e kantianas, onipresentes no imaginar(io) de seus tradutores e “comentadores” ocidentais, sobretudo em suas primeiras traduções, que eram ainda mais tendenciosas (Dorje, 2015). Tais imprecisões nas traduções são parcialmente compreensíveis porque algumas tradições orientais são devocionais e por isso, dualistas. No entanto, muitas tradições são críticas ao dualismo, de modo que, se compararmos suas concepções com algo mais compatível no ocidente, elas se aproximariam mais de uma ontologia spinozista, devidamente não-dualista e imanente (Om e Job, 2017). No entanto, Spinoza não nos ofereceu uma prática espiritual conjugada à sua obra, como o Advaita Vedanta indiano, por exemplo, que oferece a autoinquirição. Então, como conseguir apreender práticas espirituais de culturas tão díspares?
No contexto latino-americano, dado à levadas calientes, tais práticas espirituais soam um tanto assépticas. Para se adentrar em seus ensinamentos, é preciso muitas vezes fabular, ou mesmo delirar a respeito do que seria uma experiência de sagrado no âmbito oriental, processo em que os equívocos são quase inevitáveis, a maioria deles sem que o atrator tenha consciência. O que nos leva a apreender a atmosfera em que vivemos com mais atenção. Se, de um lado, o pensamento ocidental está eivado de dualismos e seus fascismos correlatos e o oriental está muito distante de nosso horizonte de experiências, como proceder?
Antes do próximo passo, é preciso estabelecer diferenças. Nossa crítica ao pensamento ocidental não se dirige à totalidade das obras de autores como Platão, Aristóteles, Descartes e Kant, mas ao uso de suas obras por parte do poder, estabelecendo ênfases e privilegiando determinadas interpretações.
Nossa crítica às bases do pensamento ocidental não ressoa em nada com o assim chamado “Tradicionalismo”, posto que ele é de tom extremamente conservador e faz um amálgama pitoresco ou mesmo impreciso de pensamento ocidental e oriental (Sedwick, 2020), mantendo, ao nosso a ver, o equívoco profundo da helenização do sagrado, além de se colocar “contra” o mundo moderno, o que, como dissemos acima, é uma estratégia falha. Tampouco queremos nos relacionar com o “anarcoprimitivismo”, que, com críticas ao processo civilizatório, quer realizar um — impossível — retorno ao mundo pré-civilizatório (Zerzan, 2007).
No entanto, ao que nos parece, estamos na melhor posição e momento para afirmar uma saída desse imbróglio milenar. Sem negar os aparatos ocidental e oriental, mas realizando uma crítica, vamos nos alimentar do que ocidente e oriente oferecem ao co-criarmos um campo relacional. Alguns autores que conseguem tergiversar as bases do pensamento ocidental são os estoicos, os místicos do Hermetismo, Spinoza, Leibniz, Hume, Bergson, Deleuze e Guattari, Tim Ingold etc. Segundo François Jullien, essa linha de pensadores do devir vai ressoar com o pensamento chinês, ou seja, o tao enquanto caminho ou processo: ambos são não-lineares, não-dialéticos e produzem um campo relacional em que coexistem o um e o múltiplo (Job, 2013).
As obras dos autores citados acima são cultivadas em território latino-americano, bem como os de matriz africana, mas em que escolas de pensamento alemão, franceses, chineses, russos, africanos etc. podem, de fato, nos ajudar? Apenas servindo como trampolim para mergulharmos em nós mesmos, para realizar uma operação muito mais trabalhosa: driblarmos as marras do pensamento ocidental e criarmos a partir de nós mesmos meios de nos autoafirmamos enquanto singularidade cósmica.
Como eixo para o processo de habitarmos o nosso aqui e agora, consideremos como mais potente e profícuo o assim chamado borogodó, que possui uma instabilidade semântica, pois não tem etimologia conhecida e possui várias definições diferentes, além da expressão ó do borogodó parecer significar quase o contrário ou, às vezes, ênfase. Nesse sentido, confluem-se charme, sexualidade, bagunça etc. (Job, no prelo).
Se nossa academia tem dificuldade em apresentar uma “filosofia brasileira”, e trabalha apenas autores locais que comentam temas brasileiros baseados em conceitos de fora, podemos colocar como motivos, de um lado, o processo de colonização do imaginar(io), que apenas permite legitimar um pensamento local desde que seja com a chancela do pensamento ocidental, e de outro, que o borogodó naturalmente se expressa de modo mais autêntico, ao forçar a intuição a se emancipar da academia, logo, do pensamento puramente racional.
Assim, evitamos de pensar uma ontologia ou epistemologia em que o borogodó esteja inserido e deixamos que o borogodó borogodeie seus modos de expressão. O borogodó não apenas “pensa” ou “conhece”, mas intui, não só com a mente, mas com a imanência do corpomente e suas ressonâncias, logo, desvia-se de uma “epistemologia”. Além disso, o borogodó não “é” dada sua instabilidade semântica que se desdobra em instabilidades mais cosmicamente coextensivas: não opera por “ser” ou “essências”, mas por uma natureza pulsante, mutante, que muda a si mesmo a partir de si mesmo, em devires imanente aoscorpos e atmosferas, logo, não é da ordem de uma “ontologia”.
Não se trata de abandonar ou negar as bases do pensamento ocidental, de onde surgem as noções de ontologia e epistemologia, mas de utilizar-se seus aspectos mais pulsantes quando necessário, desviando-se ou driblando criativamente, em profunda ressonância com o modo com que os devires operam em nós, de seus aspectos mais coercitivos. O que fazemos é usar os conceitos ocidentais e orientais como prancha na pororoca, ou seja, usar a confluência de ocidente com oriente para surfar no aqui e agora, que se apresenta rumo ao (até então) impensável (Job, 2021b). Desse encarar o abismo de nossa ninguendade, a boa-nova que trazemos, outrora impensável, é a borogodança (Job, 2024). A borogodança é, então, o campo intuitivo em devir, instável e pulsante, em que a partir de agora “conceituamos” — sabendo ser o “conceito” algo imanente ao que ele se refere — enquanto um empréstimo do pensamento ocidental, que usaremos como prancha e depois abandonaremos, ao fim do surfar.
Ao apreender, na atmosfera da borogodança, o pensamento ocidental, descobrimos que seus grandes esplendores no século XX já pouco se tratava de filosofia pura, mas até mesmo por ressoar com a borogodança, já faziam outras coisas: Dion Fortune, Erwin Schrödinger, Muddy Waters, Samuel Beckett, Andy Warhol, Ingmar Bergman, Philip K. Dick, Miles Davis, David Bowie, Pina Bausch, Kraftwerk… Nesse sentido, Bergson, Heidegger e Deleuze já eram restos de uma era, ao conceituarem para além da filosofia e se depararem com os impensáveis que se apresentavam em cada problema.
Cabe agora averiguar como fica o cosmicismo de Lovecraft à luz da borogodança. Se não estamos mais falando de egos cartesianos, mas de atratores em níveis variáveis de permeabilidades cósmicas, podemos dançar diante dos limiares cósmicos sem temer e até desejando nos tornar outra coisa: nossa ninguendade já nos forneceu instabilidades o suficiente para suportar isso. Podemos nos apropriar das autoinquirições do oriente e estados vibracionais do ocidente para conjurar infinitas modulações, de modo que o cosmicismo, indiferente aos egos, se transduza em uma co(s)micidade em que o cósmico seja imanente ao cômico, e que ressoe tanto com o Buda que Ri quanto com as alegrias spinozistas e bergsonianas, de modo que a borogodança transduza tais alegrias em uma gargalhada cósmica.
Não que a borogodança seja desprovida de horrores; a Mula sem Cabeça, a Cuca e o Zé do Caixão formam uma falange muito peculiar: um horror carnavalesco, por isso, instável, tanto que Zé do Caixão é um personagem que se funde ao seu criador e instaura um metacinema no terror brasileiro.
Aqui e agora, nosso grito convida e conjura à uma dança cósmica cujas instabilidades dão um estranho compasso para a criação: nem nova “civilização”, nem caos, nem paz. Estamos na prancha de remendos ocidentais e orientais rumo às modulações impensáveis, porque intuitivas, em ritmos estranhos, pois não cabemos em métricas a priori. Façamos uma jam session, experimentemos, podemos cair da prancha ou surfar na pororoca: se não temos mais garantias, improvisaremos gingas inauditas para, com precisão e proficiência, dançarmos nas modulações infinitas do cosmos.
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[1] Não é nossa proposta se estender acerca da conceituação do fascismo neste artigo. No entanto, devido ao uso indiscriminado do termo nos dias de hoje, vamos nos refugiar provisoriamente no texto “Fascismo Eterno” de Umberto Eco (2018), ao afirmar que o nazismo não ganha um estatuto mais geral, como é o caso do fascismo, por ter características muito específicas. Já o fascismo possui uma conceituação confusa, de modo a se adaptar melhor às generalizações. Segundo Eco, mesmo esse “fascismo eterno”, para além do que ocorreu na Itália, possui características que podem ser consideradas gerais, como o culto à tradição, a recusa da modernidade, a ação pela ação (dada a certa irracionalidade), a incapacidade em aceitar críticas (de modo que o desacordo é considerado traição), é racista e machista, possui grande apelo às classes médias frustradas, além de obsessão pela conspiração, considera os inimigos fortes e fracos ao mesmo tempo, rejeita o pacifismo e cultiva um tom heroico.
[2] Não nos sentimos confortáveis com o termo “pessoa”, muito menos “indivíduo”. Preferimos, à luz dos nossos conceitos, substituir ambos os termos por atrator, que seria um atrator de vibrações, que substitui também o termo “objeto”. (Job, 2021).
[3] As recentes experiências com algoritmos nas redes sociais mostram isso claramente, como o movimento “ele não” em 2018, que gerou efeito contrário ao desejado. A situação atual do Brasil nos parece ainda estar baseada em campo estabelecido pelo Gal. Golbery ao final da Ditadura: na ala conservadora, seus líderes estratégicos nacionais e obedientes às forças estrangeiras são os jovens que durante a Ditadura eram subordinados aos líderes da caserna contrários a Golbery e na ala dita “progressista”, preserva-se a quem o general deu visibilidade, com o objetivo de minimizar uma esquerda mais radical. Glauber Rocha, que um dia chamou Golbery de “um dos gênios da raça”, ainda tem em seu “Terra em Transe” (Brasil, 1967) um retrato fiel do pais: os intelectuais perdidos, a esquerda presa a conchavos e a direita se associando ao capital internacional, sempre disposta a dar um novo golpe, se assim houver condição.
[4] Podem ser verificadas no link: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_filmes_de_maior_bilheteria.