Atualidade de Giordano Bruno
“Em cada homem, em cada indivíduo,
contempla-se um mundo, um universo…”GB
Nos últimos anos a revista-e CosmoseContexto organizou várias conferências sobre Giordano Bruno. Alguns especialistas famosos vieram dar palestras e até mesmo um curso foi realizado no Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas (CBPF). Da Itália veio o escritor e filósofo Nuccio Ordine; de Minas Gerais veio o professor Newton Bignotto; do Rio Grande do Sul veio o professor Luiz Carlos Bombassaro, entre outros.
As pessoas que não conhecem o quanto Giordano Bruno foi e é importante para a compreensão da evolução de nossas ideias sobre o universo podem se perguntar “por que esse interesse?” Vou tentar de modo simples e conciso responder a essa pergunta.
Embora Giordano estivesse interessado em conciliar seus argumentos de natureza científicos e sua relação com a Igreja, em compreender a relação entre o um e o múltiplo, entre Deus e a matéria, o que chama a atenção nos dias de hoje é sua concepção extremamente ousada à época, sobre a infinitude do universo. Bertrand Levergeois, na introdução ao livro “L´infini, l`Univers et les Mondes”, mostra como Giordano fez um importante passo capaz de abrir as portas sobre o mundo supralunar para Kepler, Newton e outros astrônomos.
Sua atualidade aparece quando analisamos seu conceito de solidariedade cósmica, capaz de produzir uma versão compreensível da coerência das leis que controlam o universo. Desse conceito, extrai ele a orientação que funciona como ponte entre sua visão do cosmos e a sociedade humana.
Com efeito, Giordano Bruno, no início da ciência moderna, alertava que o convívio social, a interação entre os homens, o ideal de sociedade, deveria ser consequência natural e necessária da intimidade humana com o universo. Assim, diz ele, o que importa, antes de tudo é reformar o céu, nossa visão do céu, e compreender a união indissolúvel entre a humanidade, nosso comportamento social e o infinito universo.
Talvez não exista uma maior expressão nos dias de hoje desse ideal de Bruno, do que a formulação da cosmologia contemporânea ao explicitar a transformação permanente do universo, não somente em suas configurações observáveis, mas em suas próprias leis. Dentre essas, talvez a mais fundamental seja a solidariedade entre suas partes. O termo solidariedade está aqui a ser aplicado como extensão de coerência, compatibilidade entre suas partes e é uma necessidade imprescindível da estabilidade do universo.
Com efeito, consideremos, por exemplo, o primeiro cenário cosmológico do século 20 idealizado por Einstein. Esse modelo, por ser estático, sem pressão, sem interação entre suas partes, isto é, sem solidariedade, tem um tempo exíguo de existência. Qualquer forma de perturbação, por menor que seja, que ocorra em algum lugar desse modelo cosmológico de Einstein, gera uma catástrofe fazendo com que esse universo mergulhe no não-ser.
Ou seja, esse modelo não pode se identificar com o universo em que vivemos. E qual a principal causa dessa limitada duração? Seu caráter estático, a ausência de dinâmica e de interação, inexistência de solidariedade, de compatibilidade entre propriedades local e global.
A frase “tudo está em transformação, nada estável perdura por muito tempo” que Marx utilizou para se referir à sociedade humana em sua crítica ao capitalismo, se aplica ipsis litteris ao universo. Com efeito, uma leitura atenta das investigações de fronteira da cosmologia ao longo das últimas décadas aponta a evidência dessa afirmação.
E se tudo no universo está em transformação, se a posição estática (pensada muitas vezes como um cenário de estabilidade duradoura) não se adequa à realidade, se as próprias leis físicas estendidas da Terra ao universo são afetadas pela disposição no espaço-tempo, onde vamos encontrar a origem desse movimento cósmico, dessa variabilidade do real?
Essa evolução, que não possui uma orientação, que não deve ser atribuída a uma causa teleológica, aparece explicitamente na bem-sucedida união empreendida ao longo do século 20, entre o micro e o macrocosmo, entre a física das partículas elementares e o estudo das propriedades do universo, entre o local e o global, finalmente unificados como ensinava e se esforçava por mostrar o matemático-filósofo francês Albert Lautman.
Aparece então a questão: onde podemos exibir essa mudança continua, essa permanente variação?
Exemplos simples e inequívocos de dependência cósmica das leis físicas com o tempo cósmico são a questão causal e o desbalanceamento matéria-antimatéria no universo. Como essas características são pouco conhecidas por aqueles que não estão acostumados com questões cosmológicas, precisamos falar delas, comentá-las, explicá-las, mesmo que brevemente.
A causalidade, no século 20 foi determinada a partir do reconhecimento de que nada, nenhum corpo material pode se movimentar com velocidade igual ou superior à da luz. Desse modo, todo observador, todo corpo material se movimenta dentro de um cone do espaço-tempo cujos limites são caminhos dos fótons, os grãos elementares da luz. Isso determina, sem nenhuma ambiguidade, passado e futuro para qualquer corpo material no interior desse cone. Aqui intervém a propriedade notável de que a gravitação, a interação que domina o cenário cosmológico, é universal. Isso significa que tudo, matéria ou radiação, sofre a ação gravitacional. Assim, em situações especiais (que não são as que ocorrem na Terra e em suas vizinhanças) a trajetória dos fótons pode ser encurvada de tal modo que em seu interior existam caminhos que conduzem ao passado. Isso ocorre, por exemplo, no cenário cosmológico descoberto pelo matemático austríaco Kurt Gödel em 1949. Ou seja, causalidade local não implica causalidade global. A relação causal pode depender da situação espaço-temporal, ou, para ser preciso, das propriedades do campo gravitacional.
No laboratório terrestre observa-se que nas diferentes reações entre partículas elementares (como o eletron e o próton, entre outros) há certas leis de conservação que são interpretadas como se esses processos tivessem simetria perfeita entre o mundo das partículas e das antipartículas. No entanto, essa lei não é observada no universo profundo. Nosso cosmos é formado de matéria e não de antimatéria. O físico Andrey Sakharov na antiga União Soviética propôs entender essa ausência global de antimatéria por efeitos gravitacionais que teriam ocorrido em uma fase extremamente condensada do universo, mostrando a dependência cósmica das interações entre os constituintes elementares da matéria.
Finalmente, é importante notar que contrariamente ao que nas últimas décadas se tem propagado, o universo não possui um tempo de existência finito, que levaria a questão dessa origem para fora do território da ciência. A união entre o mundo quântico e a universalidade da interação gravitacional leva a concluir que o universo é eterno. Mais ainda, que ele possui ciclos de expansão global de seu volume espacial seguido de fase de colapso que se repetem continuamente. Como esse processo, descrito pela teoria da Relatividade Geral, é não-linear, não há necessidade de um agente externo para que ele ocorra.
Mesmo um universo sem nenhuma forma de matéria ou radiação não pode permanecer como tal. Isso é consequência direta de que o estado do vazio quântico, uma cooperação entre o quantum e o cosmos, é instável (corroborando os antigos que pretendiam que a natureza tem horror ao vácuo). O espaço-tempo se estrutura gerando um processo de auto evolução, típico da gravitação e de seus mecanismos não-lineares. Somos assim levados inevitavelmente à conclusão de que o universo estava condenado a existir.
Ao reconhecermos essa dinâmica do cosmos, a afirmação do filósofo Karl Marx de que a sociedade humana não permanece congelada e submissa a uma só estrutura social, adquire um alcance maior, absoluto e geral, pois a sentença fundamental desse filósofo de que tudo está em contínua transformação, se aplica naturalmente na cosmologia contemporânea. Mais do que isso, ela deve ser entendida como a síntese do conhecimento científico.
Ou seja, somos levados a aceitar a afirmação de Marx de que a verdadeira ciência é histórica, refletindo de modo preciso nosso conhecimento atual do universo.
Isso nos leva ao seguinte comentário. No começo do século 20 os físicos se envolveram a retalhar o mundo. Com o sucesso da tabela de Mendeleiv, erigiu-se o conceito de que a totalidade se estrutura a partir de quantidades elementares, como átomos e, mais tarde, quarks e leptons.
Com o crescimento da cosmologia ao longo deste século uma posição oposta ascendeu no imaginário científico: a ordem estruturada a partir da totalidade, os elementos mínimos sendo organizações controladas pela grandiosidade do cosmos.
Essa acirrada disputa entre a predominância quer do local sobre o global, quer do global sobre o local só conseguiu ser pacificada com a entrada em cena de Lautman. Ele propôs conciliar a tradicional batalha envolvendo a dicotomia local versus global a partir do conceito de solidariedade cósmica, introduzindo, nos tempos modernos, a aplicação da noção de solidariedade ao universo. Entendemos então que um conceito jurídico, usado por semelhança na biologia e nas ciências sociais, pode ser empregado nas ciências da natureza, na física ou, de forma mais abrangente, na cosmologia, na caracterização de cenários cosmológicos de descrição do universo.
A solidariedade cósmica – condição de compatibilidade entre processos locais e globais – sugerida nos primeiros anos de 1930 por Lautman, deveria induzir à reunificação do indivíduo com a sociedade, perdida ao longo da história humana com as divisões em castas e classes, separadas por questões econômicas e religiosas. Dessa forma, com a solidariedade humana, estaria sendo mudada radicalmente a sociedade, como imaginava Giordano Bruno.
Isso nos leva de volta a Giordano Bruno que acreditava que exibindo as maravilhas celestes – o que hoje reconhecemos como as centenas de bilhões de galáxias contendo cada uma delas centenas de bilhões de estrelas – e o modo como o universo parece solidário, os homens se tornariam melhores. As sociedades deixariam de lado as ilusões que as dividem e aceitariam nossa imersão na grandiosidade do cosmos como a expressão que nos faz grandes e significantes.
Essa característica comum de descrição da sociedade humana e do universo, permitiria então entender a intuição magistral de Giordano Bruno de que o ordenamento social deve se espelhar nas propriedades solidárias do cosmos.
As catástrofes cósmicas, a fusão de galáxias, a variação das leis físicas com o tempo global, a eternidade do universo, sua definitiva autocriação, deveriam ser interpretadas como harmonia celeste na qual nosso eu, cada um de nós, pode se identificar.
Essa eternidade reconquistada no cosmos deveria ser a estrada principal que levaria a sociedade humana a uma unidade coerentemente heterogênea em sua múltipla diversidade. E, mais importante, sem a necessidade de sermos guiados por sacerdotes ou por cientistas.
Giordano acreditava que tinha o poder de usar essa crença em um mundo de comunhão com a natureza, para além da batalha darwiniana da sobrevivência, levando à solidariedade humana, refletindo assim a solidariedade cósmica.
Em 17 de fevereiro de 1600, em Roma, no Campo dei Fiori, Giordano Bruno foi queimado. Mostraram a ele quem efetivamente tinha o poder.
E, no entanto, aqui estamos nós, quatro séculos depois, enaltecendo seus pensamentos e sua grandiosidade.
Referências
Giordano Bruno: Línfini, l´univers et les mondes. Ed. Berg international (2006, original de 1548)
cosmosecontexto.org.br/um-olhar-sobre-giordano-bruno-e-sua-utopia-ou-para-iniciarmos-um-novo-ano-2/
https://cosmosecontexto.org.br/uma-noite-com-giordano-bruno/
https://cosmosecontexto.org.br/giordano-bruno/
https://cosmosecontexto.org.br/3214/
https://cosmosecontexto.org.br/solidariedade-cosmica-solidariedade-social/
Apêndice
Acrescento abaixo alguns trechos esclarecedores do curso sobre Giordano que o professor de filosofia Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS) realizou no CBPF.
No contexto histórico e intelectual que costumamos designar como revolução copernicana, o filósofo Giordano Bruno (1548-1600) oferece argumentos decisivos para a transformação conceitual da cosmologia na Renascença.. Suas posições representam uma crítica radical ao pensamento cosmológico aristotélico-ptolomaico, ainda vigente na segunda metade do século XVI.
Associada às observações e aos cálculos astronômicos de Ptolomeu e Manílio, a cosmologia de Aristóteles estava, também do ponto de vista conceitual, firmemente ancorada nas ideias da imobilidade e centralidade da terra, da heterogeneidade e da hierarquia entre o mundo sublunar (terrestre) e supralunar (celeste), bem como da esfericidade e da finitude do cosmos.
É a partir de uma perspectiva de interpretação metafísica e cosmológica completamente diversa que havia se estabelecido desde a Antiguidade e se mantido hegemônica durante toda a Idade Média, que o filósofo Giordano Bruno desenvolveu suas reflexões sobre a unidade, a infinitude e a eternidade do universo, propondo assim a substituição daquele modelo de mundo fechado pela concepção de um universo infinito.
A filosofia bruniana é construída a partir da pressuposição sobre uma íntima conexão entre cosmologia e filosofia moral, entre natureza e ética. Nesse sentido, opera também no campo da ética e da moral aquele mesmo princípio que havia permitido a Bruno superar os limites da cosmologia aristotélico-ptolomaica e estabelecer a tese da infinitude do universo.
Nota: Esse artigo foi preparado para a revista Cadernos de Astronomia da Universidade Federal de Espirito Santo e reproduzido pela CosmoseContexto por gentileza do editor Júlio Fabris.