Solidariedade cósmica, solidariedade social
Tudo está em transformação
nada estável perdura por muito tempo
Karl Marx
Giordano Bruno, no início da ciência moderna, alertava que o convívio social, a interação entre os homens, o ideal de sociedade, deveria ser consequência natural e necessária da intimidade humana com o universo.
Bertrand Levergeois comentando o livro L´infini, l´univers et les mondes mostra como Giordano não aceitava a visão progressista de Campanella (A cidade do Sol) ou reacionária de More (A ilha de Utopia) sobre uma possível reforma da sociedade. O que importa, diz ele, é, antes, reformar o céu e compreender a união indissolúvel entre a nossa humanidade, nosso comportamento social e o infinito universo.
Talvez não exista uma maior expressão nos dias de hoje desse ideal de Bruno, do que a formulação da cosmologia contemporânea ao explicitar a transformação permanente do universo, não somente em suas configurações observáveis, mas em suas próprias leis. Dentre essas, talvez a mais fundamental seja a solidariedade entre suas partes. O termo solidariedade está aqui a ser aplicado como extensão de coerência, compatibilidade entre suas partes e é uma necessidade imprescindível no universo.
Com efeito, consideremos, por exemplo, o primeiro cenário cosmológico do século 20 idealizado por Einstein. Esse modelo, por ser estático e sem interação entre suas partes, isto é, sem solidariedade entre suas partes, tem um tempo exíguo de existência. Qualquer forma de perturbação, por menor que seja, que ocorra em algum lugar desse modelo cosmológico de Einstein gera uma catástrofe fazendo com que esse universo mergulhe no não-ser.
Ou seja, esse modelo não pode se identificar com o universo em que vivemos. E qual a principal causa dessa limitada duração? Seu caráter estático, a ausência de dinâmica e de interação, inexistência de solidariedade, de compatibilidade entre propriedades local e global.
A frase “tudo está em transformação, nada estável perdura por muito tempo” que Marx utilizou para se referir à sociedade humana em sua crítica ao capitalismo, se aplica ipsis litteris ao universo. Com efeito, uma leitura atenta das investigações de fronteira da cosmologia ao longo das últimas décadas aponta a evidência dessa afirmação.
E se tudo no universo está em transformação, se a posição estática (pensada muitas vezes como um cenário de estabilidade duradoura) não se adequa à realidade, se as próprias leis físicas estendidas da Terra ao universo são afetadas pela disposição no espaço-tempo, onde vamos encontrar a origem desse movimento cósmico, dessa variabilidade do real? Onde sua explicação?
E mesmo antes de procurar essa explicação, onde podemos exibir essa mudança continua, essa permanente variação?
Essa evolução, que não possui uma orientação, que não deve ser atribuída a uma causa teleológica, aparece explicitamente na bem-sucedida união empreendida ao longo do século 20, entre o micro e o macrocosmo, entre a física das partículas elementares e o estudo das propriedades do universo, entre o local e o global, finalmente unificados como ensinava e se esforçava por mostrar o matemático francês Albert Lautman.
Exemplos simples e inequívocos de dependência cósmica das leis físicas com o tempo cósmico são a questão causal e o desbalanceamento matéria-antimatéria no universo. Como essas características são pouco conhecidas por aqueles que não estão acostumados com questões cosmológicas, precisamos falar delas, comentá-las, explicá-las, mesmo que brevemente.
A causalidade, no século 20 foi determinada a partir do reconhecimento de que nada, nenhum corpo material pode se movimentar com velocidade igual ou superior à da luz. Desse modo, todo observador, todo corpo material se movimenta dentro de um cone do espaço-tempo cujos limites são caminhos dos fótons, os grãos elementares da luz. Isso determina, sem nenhuma ambiguidade, passado e futuro para qualquer corpo material no interior desse cone. Aqui intervém a propriedade notável de que a gravitação, a interação que domina o cenário cosmológico, é universal. Isso significa que tudo, matéria ou radiação, sofre a ação gravitacional. Assim, em situações especiais (que não são as que ocorrem na Terra e em suas vizinhanças) a trajetória dos fótons pode ser encurvada de tal modo que em seu interior existam caminhos que conduzem ao passado. Isso ocorre, por exemplo, no cenário cosmológico descoberto pelo matemático austríaco Kurt Gödel em 1949. Ou seja, causalidade local não implica causalidade global. A relação causal pode depender da situação espaço-temporal, ou, para ser preciso, das propriedades do campo gravitacional.
No laboratório terrestre observa-se que nas diferentes reações entre partículas elementares (como o eletron e o próton, entre outros) há certas leis de conservação que são interpretadas como se esses processos tivessem simetria perfeita entre o mundo das partículas e das antipartículas. No entanto, essa lei não é observada no universo profundo. Nosso cosmos é formado de matéria e não de antimatéria. O físico Andrey Sakharov na antiga União Soviética propôs entender essa ausência global de antimatéria por efeitos gravitacionais que teriam ocorrido em uma fase extremamente condensada do universo, mostrando a dependência cósmica das interações entre os constituintes elementares da matéria.
Finalmente, é importante notar que contrariamente ao que nas últimas décadas se tem propagado, o universo não possui um tempo de existência finito, que levaria a questão dessa origem para fora do território da ciência. A união entre o mundo quântico e a universalidade da interação gravitacional leva a concluir que o universo é eterno. Mais ainda, que ele possui ciclos de expansão global de seu volume espacial seguido de fase de colapso que se repetem continuamente. Como esse processo é não-linear, não há necessidade de um agente externo para que ele ocorra.
Mesmo um universo sem nenhuma forma de matéria ou radiação não pode permanecer como tal. Isso é consequência direta de que o estado do vazio quântico, uma cooperação entre o quantum e o cosmos, é instável (corroborando os antigos que pretendiam que a natureza tem horror ao vácuo). O espaço-tempo se estrutura gerando um processo de auto evolução, típico da gravitação e de seus mecanismos não-lineares. Somos assim levados inevitavelmente à conclusão de que o universo estava condenado a existir.
Ao reconhecermos essa dinâmica do cosmos, a afirmação do filósofo de que a sociedade humana não permanece congelada e submissa a uma só estrutura social, adquire um alcance maior, absoluto e geral, pois a sentença fundamental de Marx de que tudo está em contínua transformação, se aplica naturalmente na cosmologia contemporânea. Mais do que isso, ela deve ser entendida como a síntese do conhecimento científico.
Essa característica comum de descrição da sociedade humana e do universo, permite então entender a intuição magistral de Giordano Bruno de que o ordenamento social deve se espelhar nas propriedades solidárias do cosmos.
Por fim, do que vimos comentando podemos concluir que a afirmação de Marx de que a verdadeira ciência é histórica reflete de modo preciso nosso conhecimento atual do universo.
Referências
Giordano Bruno: Ed. Berg International, Paris, 1987.
José Paulo Netto: Karl Marx, uma biografia. Ed. Boitempo, São Paulo, 2020.
Mario Novello: Quantum e Cosmos (introdução à metacosmologia). Ed. Contraponto, Rio de Janeiro, 2021.
Albert Lautman: Les mathématiques, les idées et le réel physique. Ed. Librarie Philosophique J. Vrin, Paris, 2006.