Os sentidos do antifascismo hoje
Talvez soe absurdo e anacrônico, considerando o ponto de vista histórico, falarmos em fascismo e antifascismo na segunda década do século 21. Mas há bons motivos para que o façamos.
O mundo assiste ao avanço inédito de partidos, movimentos e governantes que exibem modos, símbolos e discursos fascistas, chamados de extrema direita ou alt-right (do inglês “alternative right”). Para citar alguns exemplos, há a Frente Nacional Francesa, o Aurora Dourada grego, a PEGIDA alemã, o Partido da Liberdade austríaco, o Partido Lei e Justiça (PiS) polonês, a Liga Norte italiana e governantes ubuescos como Viktor Orbán na Hungria, Volodymyr Zelensky na Ucrânia, Recep Tayyip Erdoğan na Turquia, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Jeanine Áñez na Bolívia e Jair Bolsonaro no Brasil. Ainda que possuam trajetórias políticas e modos de ação particulares, são vistas como lideranças que compõem um mesmo modus operandi.
Pelo reverso, na Europa e nas Américas, grupos anarquistas e antiautoritários se empenham há mais de 40 anos em alertar que a política (neo)fascista e (neo)nazista não foi enterrada com a derrota das potências do Eixo na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo, portanto, urgente combatê-la. Alguns desses grupos, oriundos da contracultura anarco-punk e do autonomismo europeu, se autodenominam antifa ou fantifa (feministas antifascistas). Segundo o historiador Mark Bray, em livro publicado recentemente no Brasil, “Antifa: o Manual Antifascista” (Autonomia Literária, 2019), o antifascismo contemporâneo é “um método político, um lócus de auto identificação individual e de grupo, de um movimento transnacional que adaptou correntes socialistas, anarquistas e comunistas preexistentes a uma súbita necessidade de reagir à ameaça fascista”. O que faz da antifa contemporânea uma “política nada liberal” e relacionada a movimentos de revoltas e/ou revolucionários compostos de associações por afinidades, com atuações regulares e numericamente reduzidos.
Não obstante, a antifa virou assunto em todo planeta, em meio à pandemia da Covid-19. O presidente dos EUA, Donald Trump, chamou esses grupos de terroristas da “esquerda radical do mal”, no dia seguinte ao início dos motins de rua que se espalharam por todo o território estadunidense em protesto contra o assassinato de George Floyd. Trump ameaçou usar as das Forças Armadas, invocando uma Lei de Insurreição de 1807, alegando que a “nação foi dominada por anarquistas profissionais, multidões violentas, incendiários, saqueadores, criminosos, manifestantes, antifa e outros”. Na esteira das declarações de Trump, como já é de costume, Jair Bolsonaro e seus filhos, junto a ativistas e parlamentares bolsonaristas, também declararam que visam criminalizar os grupos antifas presentes em manifestações de rua.
O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), ex-policial militar, celebrizado por quebrar uma placa ao lado do então candidato a governador fluminense Wilson Witzel (PSC), com o nome da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018, apresentou a PL 3019/2020 para alterar a Lei 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo). O objetivo é considerar “organização terrorista os grupos denominados antifas (antifascistas) e demais organizações com ideologias similares”.
Uma série de análises poderia derivar desses episódios. Dentre elas, há um longo e propositalmente inconcluso debate no campo das relações e do direito internacionais sobre a plasticidade e o sentido político das definições e da tipificação do “crime” de terrorismo, reanimado desde os atentados de 11 de setembro de 2001. Outra possibilidade seria, a partir da PL 3019/2020, discutir como é possível, numa democracia, encaminhar uma proposta de criminalização de um movimento social dissidente acompanhado do genérico “e demais organizações similares”. Mas o que esses acontecimentos evocam é uma questão mais imprescindível na política contemporânea: o sentido do fascismo e do antifascsismo hoje.
A reação virulenta da alt-right global seja de Trump e seus apoiadores, seja do bolsonarismo no Brasil, estampa uma verdadeira obsessão pela busca de um inimigo identificável, ainda que construído discursivamente. Trump a usa a antifa como mote para distrair a opinião pública da questão central colocada pelas manifestações nos EUA: a violência policial e os movimentos antirracistas. A Ku Klux Klan nunca foi acusada de terrorismo.
No caso do Brasil, a antifa em manifestações é usada pelo bolsonarismo para a construção de um inimigo que encarne o mal absoluto. Mas se não existisse a antifa, se criaria outro alvo para sua violência e cólera discursiva, como fizeram em novembro de 2017, quando, diante do SESC-Pompéia, tentaram impedir a realização de uma palestra da filósofa Judith Butler sobre “Os fins da democracia”.
Ainda que haja um pertinente debate sobre a precisão conceitual ao se caracterizar a alt-right global como algo análogo ao fascismo histórico, é justamente o embate nas ruas e no campo discursivo que faz da existência da antifa, e do crescente interesse por ela, uma chave analítica para compreender as modulações do fascismo no século 21. A história não se repete, ainda que alguns discordem. Cada acontecimento possui sua singularidade, logo, cabe ao analista captar as diferenças para produzir um diagnóstico do presente.
De fato se buscarmos todas as características do fascismo histórico, dificilmente elas corresponderiam literalmente aos modos e formas da alt-right hoje. Mas, se nos voltarmos para o fato de que o fascismo histórico, apesar da derrota militar na guerra em 1945, seguiu permeando a política das democracias liberais, incluindo aceitação de regimes declaradamente fascistas como o franquismo e o salazarismo, chegaremos a conclusões outras. Olhemos para os embates do presente em sua expressão mais radical, sem moderações.
Qual a definição da antifa contemporânea em relação ao que ela combate sob o nome de fascismo? Segundo Bray, a partir das entrevistas em sua pesquisa, os antifas não se opõem ao fascismo por ser uma política basicamente antiliberal, mas porque os grupos fascistas de hoje promovem: a) o racismo e a supremacia branca; b) a misoginia e o sexismo; c) o autoritarismo e discursos genocidas. Logo, combatem práticas do presente largamente difundidas pela alt-right. No Brasil, grupos anarco-punks, como o A.C.R. (Anarquistas Contra o Racismo), criado em 1993, promovem campanhas regulares de alerta contra essas práticas – especialmente contra skinheads, carecas e white powers. Entre os anarco-punks, destacam-se as Jornadas Antifascistas, que acontecem regularmente todo mês de fevereiro, desde o ano 2000. A data foi escolhida porque no dia 6 de fevereiro daquele ano, o instrutor de cães, Edson Neris da Silva, foi espancado até morte por white powers na praça da República, em São Paulo, pelo simples fato de estar de mãos dadas com seu namorado.
Episódios como este, que nos anos 1990 e 2000 eram tratados apenas como preconceito e brigas de gangues, evidenciam hoje, à luz do crescimento da alt-right global, que os antifas anarco-punks alertavam para um perigo real e para a urgência que tinham em contê-lo já em suas primeiras manifestações.
A mobilização em torno do caso Edson Neris redundou na criação, em 2006, da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância da Polícia Civil de São Paulo). Especializada em “crimes de intolerância”, sob a divisão de homicídios, a delegacia não fez com que os grupos (neo)fascistas deixassem de existir. Pelo contrário: desde então cresceram, chegando, inclusive aos legislativos estaduais e federal em todo o Brasil.
Chegamos, com isso, ao espaço no qual se dá a luta entre fascismo e antifascismo no século 21: as políticas de segurança.
Não é necessário se estender muito para demonstrar a importância do tema da segurança nas democracias no pós-guerra, a ponto de produzir no campo das relações internacionais a passagem dos estudos estratégicos de guerra para a área da segurança internacional. Com o fim da chamada Guerra Fria, vemos a expansão das políticas de segurança, tanto no campo da segurança pública – com programas urbanos como o tolerância zero estadunidense, exportado para o mundo junto ao super-encarceramento, inclusive em governos de esquerda –, quanto no campo da segurança internacional, pela ascensão das políticas de combate ao terrorismo transterritorial, especialmente após o 11 de setembro de 2001. As políticas de guerra às drogas expressa a junção daquelas duas áreas. Também é amplamente conhecido o fato de que a alt-right, em todo planeta, se viabilizou eleitoralmente com um forte discurso sobre o setor de segurança: seja no norte, enfatizando o combate ao terrorismo, à política antimigratória, à xenofobia e ao racismo; seja no sul, impulsionando a retórica do combate à criminalidade, à degeneração moral da juventude, etc. Lembrem-se também a ligação direta com agentes policiais e militares – generais, capitães, cabos e soldados tornam-se celebridades políticas. Nesse sentido, a alt-right obteve um terreno preparado para a sua expansão, especialmente após a crise global de 2008. Ao contrário do que muitos estudiosos do assunto afirmam, ela não é antipolítica, mas a expressão da fragilidade da nova política contemporânea.
Desde a emergência das revoltas gregas em dezembro de 2008 até os recentes atos antirracistas com presença de antifas nos EUA, um elemento disparador dos motins é comum: a ação da polícia. Na Grécia, ainda que os protestos estivessem direcionados contra as políticas de austeridade do governo, a revolta antipolítica tomou conta das ruas após um policial, Epaminondas Korkoneas, disparar contra um jovem anarquista de ascendência armênia de 15 anos, Aléxandros Andréas Grigorópulos, levando-o à morte.
Não é demais lembrar que as jornadas de junho de 2013, ao menos em São Paulo, foram atos que se iniciaram com os regulares protestos do MPL (Movimento Passe Livre) contra o aumento da passagem e pela tarifa zero, mas o espalhamento da revolta e da indignação veio pela reação à violência da Polícia Militar no ato do dia 13 daquele mês, quando manifestantes e membros da imprensa foram gravemente feridos. No Rio de Janeiro, houve o caso Amarildo. Também não é fortuito que a proposta de abolição da polícia, antes restrita ao campo dos abolicionistas penais em seus estudos especializados ou proposições políticas, já circula entre os protestos nas ruas dos EUA em cartazes, como os que levam a sigla A.C.A.B. (“Todos os Policiais São Bastardos”, em português). E aqui demos a volta completa, pois o uso dessa sigla provém precisamente da contracultura de rua dos anarco-punks, coletivos antifa e torcidas de futebol europeias.
O fascismo e o antifascismo do século 21 devem ser analisados em conexão com as políticas de segurança. Mais do que isso, o fascismo se realiza, em sua metamorfose contemporânea, na centralidade que as democracias concederam às variadas formas de securitização, à judicialização com regulação de direitos de minoria e penalizações a céu aberto, compondo a atual governamentalidade planetária. E como, de fato, a história não se repete, não precisamos chamar essas práticas fascistas com destaque especial. Em nosso laboratório no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP, o LASInTec, as incluímos nas “democracias securitárias”.
As expressões da extrema direita hoje são antidemocráticas, apenas quando se pensa no ideal de democracia. Mas quando observamos o crescimento eleitoral desses grupos em países democráticos, não seria absurdo questionar se esta não é a forma contemporânea da democracia existente, e se, em vez de defendê-la, não seria o caso de ultrapassá-la.