Quantos padrões precisamos para medir tudo?
George Matsas e Daniel Vanzella
Em 1992 três eminentes físicos teóricos, Michael Duff, Lev Okun e Gabriele Veneziano, se encontraram no terraço da célebre cafeteria do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN) e, em uma conversa informal, perceberam que discordavam sobre qual seria o “número de constantes fundamentais”. Por “número de constantes fundamentais” entenda-se o “número mínimo de padrões” necessários para que todos os observáveis da natureza pudessem ser expressos. Dez anos mais tarde, eles continuavam a discordar e resolveram escrever um artigo para exporem seus pontos de vista:
https://iopscience.iop.org/article/10.1088/1126-6708/2002/03/023 .
Okun defendia que para que todas as grandezas da natureza pudessem ser expressas seriam necessários três padrões fixados por réguas, massas e relógios para definir o metro, quilograma e segundo. Okun afirmava com isso que o sistema fundamental de unidades seria o MKS. Já Veneziano, influenciado pela teoria de cordas, defendia que todas as grandezas poderiam ser expressas apenas em termos de metros e segundos. Finalmente, Duff defendia que dependendo da grandeza a ser medida diferentes padrões poderiam ser usados (mas não se opôs ao MKS como um sistema de unidades, pelo menos suficiente, para expressar as grandezas físicas).
A questão levantada por Duff, Okun e Veneziano, longe de ser uma questão de opinião, precisa ter resposta única, pois dela dependeria saber qual seria o número mínimo de linhas de produção que uma fábrica cósmica de padrões precisaria ter. Assim, em última instância, trata-se também de um problema econômico.
Podemos alegar ignorância sobre questões científicas bem-postas, mas jamais “concordar em discordar” (como se ouve algumas vezes): fixadas as premissas e a linguagem matemática, a resposta a cada questão deve convergir a um consenso; é isso que faz da ciência, ciência. Posto isso, dados todos os sucessos científicos que vão de escalas microscópicas a cosmológicas, seria estranho conceder derrota diante de uma questão que poderia ser entendida por um adolescente. Esse “pequeno escândalo” estava entre os temas discutidos por alguns físicos (estes brasileiros) em um café (nada célebre) a 10 mil km do CERN no início dos anos 2000. Quase duas décadas depois, a resposta, quase óbvia, pode ser entendida por qualquer jovem pré-universitário: https://rdcu.be/dVwii
Visto a posteriori, fica claro que boa parte da confusão veio de não se perceber que a resposta à pergunta de Duff, Okun e Veneziano depende do espaço-tempo subjacente sobre o qual as teorias e suas grandezas físicas são definidas. No ensino médio, dá-se ênfase à física newtoniana que é construída assumindo-se o espaço-tempo de Galileu Galilei. O espaço-tempo de Galileu é o de nossa intuição cotidiana, mas desde 1915 sabemos, graças a Albert Einstein, que o espaço-tempo em que vivemos é muitíssimo melhor modelado pelos espaços-tempos relativísticos. Vamos poupar o leitor da definição do que são espaços-tempos relativísticos; aqui nos limitaremos a enunciar e usar suas propriedades, apenas quando necessárias.
Nosso ponto de partida para resolver a controvérsia será o sistema MKS (sobre o qual o Sistema Internacional de Unidades (SI) foi construído na década de 1960), pois nem Duff, Okun ou Veneziano discordavam que todas as grandezas poderiam ser expressas apenas em termos de metros, quilogramas e segundos. A contenda estava se elas seriam todas necessárias. Começaremos então nos perguntando se o padrão de massa dado pelo quilograma é necessário para expressar as grandezas físicas. Okun defendia que sim, mas a resposta é não. O poder de atração de um corpo, que Newton chamou de massa, , pode ser medido com réguas e relógios a partir da aceleração com que uma partícula teste postada a uma distância cai em sua direção por meio da formulinha . Assim, fixada a distância , a massa do corpo será tão maior quanto maior for a aceleração com que o corpo atrai a partícula teste.
No sistema MKS, converte-se a unidade de , que é de em , multiplicando-se por um fator de conversão. Esse fator de conversão é conhecido como constante de gravitação universal e é denotado por . Apesar do nome pomposo, só foi introduzido 150 anos depois da morte de Isaac Newton, que nunca precisou dela para nada. Na verdade, nenhuma previsão concreta, i.e., que possa ser testada pelo método científico, depende de . Assim, tivesse o fator de conversão nunca sido introduzido, estaríamos medindo as massas com réguas e relógios, e o quilograma não teria tido lugar na física. Vale notar que o padrão quilograma foi introduzido durante a Revolução Francesa (para corresponder à massa de 1 litro de água) apenas por razões comerciais; e isso aconteceu mais de 60 anos depois da morte de Newton.
Se vivêssemos no espaço-tempo imaginado por Galileu, a história acabaria aqui e o veredito seria favorável a Veneziano, que defendia que todas as grandezas físicas poderiam ser expressas em termos de duas unidades, mas esse não é o caso. Como já dissemos, sabemos, há mais de um século, que os espaços-tempos que melhor descrevem a natureza são do tipo relativístico e, em última instância, todas as teorias e respectivas grandezas precisam se curvar a esse fato. Posto isso, vamos prosseguir e nos perguntar se, além de um padrão de tempo, precisamos também de um padrão de comprimento. A resposta é que em espaços-tempos relativísticos o espaço e o tempo estão conectados de tal forma que podemos medir distâncias apenas com relógios.
Um protocolo conceitualmente simples para se medir o tamanho de um bastão com três relógios, e , é o seguinte: Enviamos o relógio com uma velocidade constante qualquer da extremidade esquerda para a extremidade direita do bastão. O relógio registra o tempo que a viagem leva; chamemo-lo de . Imediatamente depois de chegar à extremidade da direita, o relógio é enviado de volta também com velocidade constante (mas que não precisa ter módulo igual ao de ). registra, então, um tempo para a viagem de volta. Enquanto isso, o relógio registra o intervalo de tempo que leva entre a partida de e a volta de . Dados e , podemos introduzi-los na Formula (18) de https://rdcu.be/dVwii e obter o tamanho do bastão em segundos, ou, como costuma-se dizer, segundos-luz. Relembrando, o comprimento de um segundo, ou, um segundo-luz, corresponde à distância que a luz percorre em um segundo (aproximadamente a distância Terra–Lua). Para converter segundos-luz em metros basta se multiplicar o valor em segundos-luz pelo fator de conversão . Temos disso que 1 metro corresponde milionésimos de segundo (ou segundos-luz se preferir).
Vale salientar que o fato da Formula (18) de https://rdcu.be/dVwii dar o resultado certo para o tamanho do bastão, independentemente das velocidades com que os relógios e viajam, é consequência direta do espaço-tempo ser relativístico. Vivêssemos no espaço-tempo de Galileu isso não seria verdade, o que está em linha com o fato de no espaço-tempo de Galileu precisarmos de dois padrões, réguas e relógios, para expressar todas as grandezas. Por exemplo, no espaço-tempo de Galileu, precisamos de réguas e relógios para expressar as velocidades. Já em espaços-tempos relativístico, as velocidades são grandezas sem dimensão: partículas com velocidades de 0,5 estariam se movendo com 50% da velocidade máxima possível; raios de luz, por sua vez, têm velocidades de 1,0, a máxima permitida em espaços-tempos relativísticos. Nada pode se mover além deste limite pois algo que o fizesse violaria o sacrossanto princípio da causalidade. “Sacrossanto” no sentido que se dois amigos, João e Maria, pudessem trocar mensagens que se propagassem com velocidades maiores que 1,0, João poderia receber mensagens de Maria com respostas a perguntas que João ainda não tivesse sequer enviado a Maria, e vice-versa!? Isso não é só estranho; é impossível! Em espaços-tempos relativísticos o que importa é quão rápido algo se move com relação ao máximo permitido. Já no espaço-tempo de Galileu, essa argumentação não se aplica, mesmo porque não há limite de quão rápido mensagens podem se propagar.
Visto que tudo, incluindo distâncias, pode ser medido com relógios, conclui-se que todas as grandezas podem ser expressas em segundos e, portanto, que Duff, Okun e Veneziano, superestimaram o número mínimo de unidades dimensionais necessárias para expressar todos os observáveis, que se resume a um. Ou seja, basta que uma fábrica de padrões produza e distribua relógios honestos pelo Cosmo para que os experimentalistas possam medir e comparar todas as grandezas entre si.
E que relógios seriam esses? A teoria da relatividade dá uma prescrição precisa de quais propriedades um dispositivo precisa satisfazer para ser considerado um relógio honesto, https://rdcu.be/dVwii, mas para todos os efeitos práticos, relógios atômicos são excelentes candidatos. Os relógios atômicos mais precisos têm precisão para medir a idade do Universo com uma incerteza de segundos. Eles se amparam na constância da radiação emitida quando elétrons transitam entre certos níveis específicos do átomo de Césio-133. Assim, define-se atualmente que 1 segundo corresponde ao tempo necessário para que essa radiação oscile 9.192.631.770 vezes, o que implicitamente elege o intervalo de tempo associado a uma oscilação dessa radiação como constante fundamental. Vale enfatizar que o veredito se um observável é ou não uma constante da natureza é absoluto pois é proclamado pelos “relógios honestos”, que precisam obrigatoriamente existir para que espaços-tempos relativísticos possam ser definidos, mas a decisão de qual constante da natureza será chamada de fundamental depende mais de conveniência técnica do que outra coisa.
Finalmente, devemos lembrar que o edifício da ciência está em permanente construção. Portanto, precisamos estar abertos para, no futuro, termos de modelar o espaço-tempo por algum outro (distinto do relativístico) que reflita a natureza com mais exatidão. Nesse caso, a resposta à pergunta feita por Duff, Okun e Veneziano poderá mudar, pois se há uma coisa que esse exercício ensinou é que a resposta à pergunta levantada pelo trio acima depende do espaço-tempo onde as grandezas são definidas e medidas.