Transmitir o risco
Em julho de 2020, tudo se passa como se o Brasil enfrentasse o peso de milhares de mortes por causa de um vírus, a crise do coronavírus, mas há muitos outros elementos para compor esta história. O governo federal nunca se colocou como instância definidora e articuladora de ações através do SUS durante a pandemia. O ministro Mandetta tentou, fingindo não fazer nada para não aborrecer o presidente (sai em 16/04). O ministro Teich, ausente e sonolento, tentava ganhar tempo de vida para os brasileiros prolongando o isolamento (sai em 15/05). Em maio, o Ministério da Saúde, fica sem liderança e quando o interino assume (02/06) já não é mais possível se fazer de morto para poder dar vida ao outro. No início de junho, o Brasil chega ao patamar de 1.000 mortes por dia, número constante e que continua ensurdecedor no fim de julho.
O que aconteceu em maio? No dia 10 de maio, o Brasil chega ao segundo lugar no mundo em mortes diárias, com 537 mortes. Por que esse número dobra em 04 de junho e o Brasil se torna o país com mais mortes diárias no mundo (cerca de 1.000 mortes dia)? No dia 5 assume um novo chefe da Polícia Federal (Rolando Alexandre de Souza, braço direito de Alexandre Ramagem) e são deflagradas várias ações em todo Brasil contra governadores, prefeitos, secretários de saúde, acusados de envolvimento em esquemas de corrupção ligados à pandemia. No Rio de Janeiro, o secretário de saúde Edmar Santos pede demissão em 17/05 e um mandado de busca e apreensão é emitido contra o governador William Witzel (26/05). Em 22/05 o prefeito Marcelo Crivella se reúne com o presidente Bolsonaro, anunciando na saída da reunião a flexibilização do isolamento social na cidade do Rio de Janeiro, o que será ratificado no plano apresentado em 01/06. Pouco tempo depois, o governador de São Paulo muda radicalmente e sinaliza a abertura e maior flexibilização social em seu Estado. Como reforço e incentivo nesta re-orientação, em 14/05 o presidente edita uma medida provisória que isenta agentes públicos de responsabilidade na esfera civil e adiminstrativa, por erros no combate à pandemia, apelidada de “licença para matar” (MP 966/2020). Paralelamente a isso o ministério da saúde migra de um ministro mudo, para um comando vazio por duas semanas e junho inicia com um interino, militar, que não é do campo da saúde e dá demonstrações de desconhecer aspectos técnicos fundamentais da crise sanitária. A dimensão técnica vai aos poucos naufragando, assim como a transparência em relação aos dados sobre casos e mortes no Brasil, culminando com a suspensão da contagem de casos brasileiros pela universidade Johns Hopkins (06/06). O outro fator possivelmente determinante para o aumento superlativo de mortes foi o início do pagamento do auxílio emergencial em 27/04 e que produziu aglomerações em todos os estados do Brasil ao longo de todo o mês de maio, refletindo-se nos dados da primeira quinzena de junho. Estes são alguns fatores que podem ter colaborado com o aumento de 100% de mortes diárias no país no período entre 10 de maio e 4 de junho.
Durante este período o ministério da saúde enfatiza o princípio da descentralização, ficando à cargo de governadores, prefeitos e à justiça definições sobre maior ou menor flexibilização do isolamento. Em um ano eleitoral não é difícil entender o grau e o tipo de pressão local que estes agentes estatais sofrerão. Descentralização e autonomia aqui são sinônimos de desresponsabilização. Quando o executivo ou a justiça local abre ou fecha as cidades (serviços, transportes, escolas etc.) o faz baseado em quais critérios? É possível confiar que estes atores baseiam suas decisões em evidências? Quando é possível observar contradições por parte de um mesmo agente público (prefeito, por exemplo) em relação às suas próprias recomendações, o que deve ser seguido? O que deve ser obedecido? Como esse discurso ganha legitimidade? E quando as contradições aparecem entre membros de uma mesma gestão? E quando aparecem contradições entre uma recomendação do estado e outra do município? Quais fatores estão em jogo? Como cada um poderá se posicionar? Qual é o limite de um posicionamento individual diante destas determinações? Quando tal posicionamento é tomado como legítimo pelos pares?
O prefeito do Rio de janeiro declara que as aulas podem voltar em 03 de agosto. As pessoas mandam seus filhos para a escola ou não? Como é essa passagem de uma determinação sanitária/legal/obrigatória (as escolas estão fechadas por decreto), para um momento em que o Estado se desincumbe de determinar e se transfere a responsabilidade para cada indivíduo ou instituição? Esta passagem que vemos agora é a “transmissão do risco”. Quando essa determinação coletiva se ausenta cria-se o espaço e a necessidade de que cada indivíduo resolva algo que necessariamente passaria por uma decisão coletiva e por uma dimensão institucional.
O indivíduo passa a ter a incumbência de se posicionar sobre algo que não pode decidir (pois não bastará a decisão de um para compor o destino da cidade na pandemia), em que a máxima liberal do “meu direito acaba onde começa o do outro” (a vida social como coleção de indivíduos), não se mostra suficiente. Assim, cada indivíduo, depara-se com seu desamparo, não por causa do vírus, mas por causa de um discurso instituinte que se ausenta. Essa suposta liberdade de escolha, tão fácil como mortífera, não pode se confundir com autonomia, cuidado ou produção de saúde. Aos que preveem a quarta onda da pandemia e a necessidade de cuidados especializados que vão se colocar como essenciais e críticos (com o incremento dos casos associados à depressão, ansiedade e os traumáticos), é preciso alertar para não reproduzir essa lógica da individualização do problema, que deve também ser tratado coletivamente. Os cuidados devem estar disponíveis para todos que necessitam, mas também é importante enfatizar que estas configurações patológicas proliferam na ausência de um discurso em que possamos nos apoiar e na ausência de medidas práticas que poderiam evitar muitas mortes. É neste desamparo, é neste vazio do apoio em um sentido coletivo que perdemos nossas capacidades de continuar, que derivamos numa ausência depressiva, num excesso ansioso ou numa qualidade muito específica dos traumatizados, que é a sensação de ter sido traído…traído pela realidade.
O problema da não assunção dessa responsabilidade pelo Estado, na figura do seu presidente, do ministro, do governador, do prefeito ou do secretário, é que, para todos os efeitos, cada um deverá ser então o acionista do seu próprio risco, entendendo que, claro, seu risco é também uma questão de capital. E é nesse momento também que a diferença econômica explicita o recalcado coletivo, de que a vida é economicamente computável. Bem, se o risco tem relação com sair de casa e sair de casa tem relação com poder se sustentar economicamente, é fácil ver como “não se aglomerar” só é uma opção para quem tem algum capital ou alguma poupança/suporte familiar. Assim, a volta ao trabalho e a volta às escolas no próximo mês é enunciada como opcional, que fique claro, opcional para quem tem essa opção. Essa decisão “sem opção” é que é traumática; porque tudo vai sendo dito como se fosse uma ponderação racional de um indivíduo, que é convocado a ponderar racionalmente a partir do dia 03…antes não, no caso das escolas. Em diferentes momentos, ele supostamente decide se volta a trabalhar, se volta a se arriscar e, também, se arrisca os filhos. É a isso a que os indivíduos estão sendo convocados. Serão agora os portadores do cálculo do risco, contaminados pela assombração do indecidível.
Este processo se expressa micro politicamente em uma espécie de elogio heróico da autodeterminação, em que os bons cidadãos, os bons trabalhadores, os bons gestores vão se apresentar ao risco e, individualmente, podem inclusive capitalizar no risco, porque justamente vão estar demonstrando em suas trajetórias, no seu lançamento ou não ao desafio, suas diferenças. Os que querem e os que não querem trabalhar, os que concordam e os que não concordam com a transmissão do risco, os que, a todo custo, vão se mostrar resilientes, fortes e criativos, tornando-se casos exemplares do sacrifício. Todos já partindo da premissa de que se trata de uma escolha individual, mas é mesmo uma escolha individual? É justamente aí que entendemos que muitos de nós não terão a liberdade de não arriscar, porque não têm o capital necessário para comprar essa liberdade. Também vemos os que não vão hesitar nessa empreitada porque fazem uma leitura muito positiva e viciada de sua autodeterminação. Como se poder escolher individualmente fosse um valor absoluto, desejável, independentemente das circunstâncias. O processo de precarização do trabalho apelidado de uberização é um ótimo exemplo de como é possível transformar um regime de exploração econômica em um desejo, desde que, para todos os efeitos, na leitura do próprio agente, ele se suponha senhor de suas escolhas (“você faz o seu horário, você que determina quanto vai ganhar, o céu é o limite”). A escravidão voluntária que só pode prosperar na falência de qualquer processo coletivo de autodeterminação. Quando o Estado se ausenta e diz que é preciso voltar à normalidade, no Brasil, isso fala muito mais do seu limite como potencial regulador da vida social do que propriamente de alguma característica rastreável sobre a segurança sanitária ligada ao comportamento da pandemia. O bem comum volta como o recalcado, e decidir, cada um, se deve sair de casa ou não, se deve andar no transporte público ou não, se deve trabalhar ou não, levar o filho à escola ou não, é insuflar veementemente a espiral de angústia que todos, ou pelo menos todos os que têm algum tipo de afetação pelo outro, já sentem.
Não coincidentemente os três países recordistas de mortes no mundo são governados por políticos que encarnam um processo de privatização das práticas de governo, em vários sentidos. Trump, Johnson e Bolsonaro não atuam como chefes de estado, mas como CEOs de uma empresa privada que por acaso é um país. O problema é que a epidemia lançou luz justamente sobre o Estado, seu modelo e suas ações. Por uma triste ironia, o SUS, tão criticado nos últimos 30 anos, que teria tudo para combater o vírus de forma exemplar, acaba se mostrando falho, não somente por falta de financiamento, mas também por falta de coordenação nacional, competência que teve de sobra até pelo menos 2014. É este modelo privado, fruto da radicalização neoliberal dos anos 1990, e naturalizado por estes atores e parte do eleitorado, que torna possível um presidente se apresentar como um comentador do problema, sem implicação alguma com os fatos mortais do país. Ele tenta terceirizar a responsabilidade, inclusive editando uma medida provisória isentando os agentes públicos de responsabilidade civil ou adiminstrativa em relação às ações de combate à pandemia. Isso tudo revela que seus passos seguem um cálculo dos riscos, nesse caso, o risco de ser acusado de ser presidente do Brasil.
O risco agora é cada vez mais, transmitido para “cada um”, para que cada um supostamente decida. Quando se fala em despolitizar a epidemia também é necessário se falar em politizar o trauma. O mais grave dessa demissão de uma certa posição discursiva na esfera pública, tão explicita no comportamento do presidente, é que ela mesma se faz traumática. Quando esta demissão se apresenta, a angústia vaza porque dissolve uma mínima costura, não da realidade, mas do senso comum. O maior desamparo não é saber do risco que todos nós corremos; é não saber mais em quem confiar, porque o risco compõe a vida, mas não em qualquer condição e nem silenciadamente. A crise de confiança esgarça o contorno da realidade. Essa crise é de uma palavra que não vem. Seria suficiente enunciar a banalidade do senso comum. Sua ausência dissolve a ficção de um Brasil, costurada de formas tão inauditas e com tantos nomes. Para fazer esse papel nunca foi necessário que este agente acreditasse no papel, bastava parecer, bastaria fazer o papel de presidente, mas parece que também algo irrompe lá quando esta posição se aproxima, algo agoniza quando se apresenta essa investidura.
Assim, cada um, silenciado, passivo, assiste a mais de mil mortes por dia. Se supõe sozinho em suas decisões cotidianas, sem poder inscrever-se em uma imagem, sem poder investir em um projeto. A crise de confiança instaura e cronifica a inviabilidade de saber. Se perguntar sobre sua própria angústia não dissolve o sintoma político, assim como se perguntar se nos sentimos seguros, também parece uma fuga para o interior. Se sentir seguro não é estar seguro e nossas apostas seculares em um saber entre nós, não transcendente, baseado na técnica, e especialmente, baseado na crítica entre pares (Ciência?), submerge ao mandato de uma decisão sem outro. São justamente estes mediadores de realidade que vão acusando franca falência. Nunca saberíamos realmente com toda certeza quando seria seguro voltar ao contato. A questão não é sobre a certeza, é sobre a confiança. Quando será seguro? Quem poderá ter o poder de enunciar isso? A quem, coletivamente, atribuiremos essa capacidade?
A volta às aulas é particularmente dramática porque as fantasias que rondam o risco de morte de crianças são particularmente poderosas. O prefeito do Rio de Janeiro permite a volta às aulas em agosto sem menção alguma à testagem como parte obrigatória do protocolo. Em nenhum país do mundo o retorno às aulas sem testagem foi proposto até o momento, ainda mais com o número elevado de contaminados, de mortes e ocupação de leitos como os desta cidade no momento. Com essa simples junção de informações o que podemos concluir? Quando as escolas voltarem e a primeira criança morrer como vamos poder emitir uma palavra? A quem poderemos endereçá-la?