O que faz da série alemã Dark um fenômeno televisivo e uma obra-prima da teledramaturgia contemporânea?
Ariadne
Acabo de maratonar a terceira e última temporada de Dark. Esta temporada final apenas confirmou o que tenho dito é repetido à exaustão desde a primeira temporada: Dark é uma obra-prima da teledramaturgia contemporânea. Não me refiro apenas à complexidade conceitual das discussões que vão de emaranhamento quântico, universos paraconsistentes e pluralidade de mundos às realidades alternativas, conexões mente-mundo e fundamentos metafísicos do conhecimento, dentre tantos outros. Refiro-me à qualidade estrutural e formal dos criadores Baran bo Odar e Jantje Friese.
O domínio narrativo é impressionante. Em mais de oito horas, somos conduzidos por dezenas de linhas causais, espaciais e temporais, transitando entre dezenas de mundos. E tudo isso é dado com uma força imaginativa é uma qualidade técnica praticamente impecável. Como tenho defendido com insistência, a literatura e o audiovisual precisam se alimentar da filosofia e das ciências. E não apenas a ficção científica.
Toda grande arte narrativa recente, que eu defino como especulativa, tem aprofundado esses diálogos transdisciplinares. No caso de Dark, é evidente a importância que a filosofia e as ciências desempenham na cultura alemã estão presentes e sublinhadas em cada diálogo e em cada minuto de tela. Não por acaso, a ideia governante da primeira temporada foi uma frase de Einstein, a da segunda foi uma de Nietzsche e a desta terceira temporada é uma frase de Schopenhauer.
Desde a estreia da primeira temporada (T01), em 1º de dezembro de 2017, a série Dark aos poucos deixou de ser um produto audiovisual, primeira produção alemã da Netflix. Converteu-se em um objeto de culto. Gerou um fenômeno cultural: a darkmania. A segunda temporada (T02), lançada no dia 21 de junho de 2019, aprofundou esse carisma. A T02 conseguiu aprofundar ainda mais as conexões, teorias e conflitos dispersos na primeira. Com a T02, Dark teve uma avaliação positiva da crítica próxima de cem por cento. Tanto que a Netflix já confirmou a contratação da T03, encerrando a série em uma trilogia. Para catalisar essa adesão dos espectadores, o streaming e os criadores da obra, Baran bo Odar e Jantje Friese, lançaram a terceira temporada (T03) exatamente no dia em que, na cronologia da narrativa, seria o Dia do Apocalipse: 27 de junho de 2020.
E o Apocalipse de fato ocorreu. Uma hecatombe de memes, comentários, textos, análises, compartilhamentos, vídeos. Uma explosão de teorias sobre as relações das personagens Hipóteses sobre linhas alternativas da estória. Começos, meios e fins que poderiam ter sido. Um colapso de interpretações e de simbolismos ocultos, em um fluxo vertiginoso. Hoje (17 de julho de 2020), mantém-se no Top 5 das obras mais vistas do streaming. Desde o fim de Breaking Bad (AMC, SIC e AXN) e de Game of Thrones (HBO) não se via algo parecido.
A crítica especializada também deu sua contribuição. Em uma votação realizada pelo Rotten Tomatoes, site de referência em audiovisual, Dark foi eleita a melhor série da Netflix, vencendo a amada Stranger Things e até mesmo a aclamada Black Mirror. Além de ganhar o prêmio Grimme-Preis, o mais importante da televisão alemã, Dark figura com pontuação 8.8 no IMDb (Internet Movie Database), maior banco de dados de produtos audiovisuais do mundo. Por fim, a Netflix criou até um site oficial interativo para quem quiser navegar por essas multitramas e esses multiversos.
Qual seria o segredo desse sucesso? O que faz de Dark uma obra-prima da teledramaturgia televisiva? Em uma análise da T02, publicada no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo, levantei alguns dos elementos que contribuem para esse êxito: complexidade estrutural, densidade das personagens, variedades de núcleos dramáticos, exploração das relações inusitadas de causa e efeito, e, por fim, o trabalho sobre conceitos extraídos da filosofia, das ciências e das religiões. Complementei esta análise em um texto sobre a T03, publicado no mesmo jornal. Mas o que faz Dark ser um fenômeno televisivo e narrativo? Neste texto, mesclei as duas publicações mencionadas e procurei dar unidade à minha argumentação geral. Vamos percorrer alguns destes fios de Ariadne em busca de pistas.
O problema não é onde, mas quando
A série gira em torno de cinco núcleos familiares: os Dopler (Greta, Bernd, Helge, Charlotte, Peter, Franziska, Elisabeth), os Kahnwald (Daniel, Ines, Hannah, Jonas, Michael), os Nielsen (Agnes, Jana, Tronte, Katharina, Ulrich, Magnus, Martha, Mikkel), os Obendorf (Ulla, Jürgen, Erik) e os Tiedemann (Doris, Egon, Claudia, Regina, Aleksander, Bartosz).
Contudo, o eixo de organização de Dark são as viagens no espaço-tempo por meio de uma caverna situada na floresta de Winden (Alemanha), no subsolo de uma usina nuclear. Aos poucos o espectador percebe que tais viagens foram propiciadas por um acidente nuclear e por máquinas do tempo concebidas nos interstícios entre passado, presente e futuro.
Essas viagens obedecem à regra ficcional dos 33 anos. A regra se refere a um evento de alinhamento das rotas do sol e da lua, mas as vagens são produzidas artificialmente por meio dessa máquina. Desse modo, na primeira temporada a ação dramática se passa simultaneamente nos anos de 1953, 1986 e 2019. A T02 se passa um ano depois da T01 (1954, 1987 e 2020), uma estratégia para demarcar o devir do próprio tempo dentro da série. E a T02 também acrescenta dois planos temporais: 2053 e 1921.
A vertigem produzida por Dark decorre dos personagens serem representados por atores diferentes, dependendo da fatia de tempo em questão. Mais do que isso: decorre de uma pergunta. Como a mudança de um evento no passado ou no futuro alteraria o presente e inclusive a totalidade do mundo e do tempo? Essa é a premissa da série.
Além dessa interseção de planos espaciotemporais, a série tem uma estrutura multilinear (multiplot), ou seja, múltiplos núcleos dramáticos. Os principais seriam quatro: Jonas e suas descobertas, as investigações sobre Mikkel e as crianças desaparecidas, os personagens em torno da usina e os personagens que gravitam em torno do enigma do espaço-tempo.
Correndo paralelo a esses quatro núcleos, há personagens que funcionam como pontos-cegos: o escritor-cientista H. G. Tannhaus, que concebeu a viagem no tempo em um livro e criou a máquina do tempo, o sacerdote Noah, o agente transtemporal dos viajantes, e Adam, personagem-coringa apresentado em T02 e mentor da seita que coordena as viagens. A revelação sobre a sua identidade é bombástica. Uma das viradas (twists) mais bem armadas da T02.
Os incidentes incitantes da T01 são: o desaparecimento de Mikkel (Daan Lennard Liebrenz) nos arredores da caverna e o suicídio misterioso de Michael (Sebastian Rudolph), pai de Jonas (Louis Hofmann [2019] e Andreas Pietschmann [1952]). O ocorrido com Mikkel reacende o enigma do desaparecimento de outra criança da cidade, Mads Nielsen, em 1986. Qual a relação entre os dois eventos? O fio da busca está amarrado.
Revela-se aos poucos que Michael é, na verdade, Mikkel, o garoto que desapareceu e voltou no tempo em 1986, tendo sido adotado por Ines (Angela Winkler [2019], Anne Ratte-Polle [1986] e Lena Urzendowsky [1953]). Durante os eventos, Jonas namora Martha (Lisa Vicari [2019]). Nestas viagens, descobre que Martha é irmã de Mikkel, ou seja, sua tia. Isso impossibilita o relacionamento. A última cena da T02 é a aparição de uma Martha de outro plano espaciotemporal. Essa cena não apenas planta elementos da terceira temporada (T03), como sugere uma guinada no emaranhado dos mundos.
Helge (Hermann Beyer [2019], Peter Schneider [1986] e Tom Philipp [1953]) é o filho dos poderosos Bernd e Greta, que geriam a usina nuclear. É um trickster, um mediador de mundos, entre a cidade e a usina. Claudia (Lisa Kreuzer [2019], Julika Jenkins [1986] e Gwendolyn Göbel [1953]), uma das mentoras das viagens no tempo, é a filha de Doris e Egon, um agente policial que se encontrava perto de se aposentar quando Mads desapareceu. Essa é uma questão devidamente escandida em T01.
Claudia é uma personagem central. Embora se dedique de corpo e alma à usina, por meio das viagens descobre os motivos do desastre nuclear iminente (2019). No presente (2018-2019), Noah procura aliciar Bartosz para a seita dos viajantes. E para tanto, identifica-se como representante do lado de Luz dos viajantes. E define Claudia como a líder da Sombra. Entretanto, tudo pode ser mentira. E a série promove um paulatino embaralhamento entre bem e mal.
O núcleo dramático da usina se completa com Aleksander (Peter Benedict [2019] e Béla Gabor Lenz [1986]), diretor da usina. Este nasceu com nome de Boris Niewald. Chegando à cidadezinha em 1986, rouba a identidade do jovem morto Aleksander Kohler, irmão do atual investigador policial dos enigmas de Winden que vai emparedar Aleksander.
Há muitas teorias em Dark: emaranhamento quântico, princípio de não-localidade, paralaxe astronômica, topologias alternativas ao modelo-Minkowski, as relatividades geral e restrita de Einstein, espaços não-euclidianos, dentre outras. Entretanto, a conexão de eventos, personagens, temporalidades e mundos é extremamente bem construída. A série usa essas teorias científicas de modo eficiente, tensionando-as entre o real e o imaginário. Também explora conceitos oriundos do pensamento metafísico contemporâneo.
A metafísica é a área da filosofia que estuda as condições de possibilidade e os limites do conhecimento. Para tanto, dialoga com teorias da linguagem, ontologias (estudos do ser), cosmologias (modelos descritivos do universo), evidências evolucionárias e darwinianas e descrições físicas. Em outras palavras: a metafísica investiga os fundamentos da matéria, da vida, da mente e do universo à luz dos limites de nosso conhecimento, empírico e contingente.
Dentre esses problemas metafísicos, a T01 destaca sobretudo a hipótese do multiverso e dos buracos de minhoca (wormholes). Defendido sobretudo pelos físicos Brian Greene e Michio Kaku, o multiverso pressupõe que o universo observável seria apenas uma corda de um tecido de universos paralelos, possíveis e existentes. Uma fissão nuclear poderia criar artificialmente um desses buracos de acesso a outros universos, regidos por outras leis e inscritos em outras dimensões do espaço-tempo.
O problema não é quando, mas onde
A T02 integra outras duas grandes teorias. A primeira é o Paradoxo de Bootstrap. Trata-se do paradoxo da viagem da informação através do tempo. Se um objeto futuro viajasse para o passado, este objeto transformar-se-ia ao longo do tempo no mesmo objeto que veio do futuro? Nesse sentido, como seria possível esse objeto futuro preexistir no futuro se não tivesse sido criado por si mesmo no passado? Trata-se do problema metafísico da distinção entre existências atuais, virtuais e potenciais, bem como da reversibilidade ou da irreversibilidade do tempo.
Embora seja um problema da física teórica, este paradoxo foi batizado a partir de um conto do escritor de ficção científica norte-americano Robert Heinlein (1907-1988), considerado o criador deste conceito. Hoje em dia se assemelha a um dos conceitos nucleares da teria da complexidade desenvolvida por Edgar Morin: a recursividade. Em outras palavras: a capacidade de algo ser criado por aquilo que criou.
A segunda teoria de T02 diz respeito ao Bóson de Higgs, assim nomeado em homenagem ao físico britânico Peter Ware Higgs (1929), Nobel de Física de 2013. Essa partícula seria a responsável por conferir massa a todas as partículas do universo. Por isso é popularmente conhecido como Partícula de Deus. O bóson pode ser uma das chaves de compreensão dos enigmas que envolvem a constituição primitiva da matéria, e, por conseguinte, do espaço e do tempo. Conferir massa à matéria é conferir densidade e realidade ao universo. Nesse sentido, o bóson pode se relacionar com a energia e a matéria escuras, prováveis fontes de inspiração para o nome da série.
A série também mescla essas teorias científicas a elementos de tradições arcaicas, tais como a gnose, a alquimia e o hermetismo. É o caso do nome do portal da caverna: sic mundus creatus est (assim o mundo foi criado), derivada do hermetismo, e da tatuagem da Tábua de Esmeralda (Tábua Esmeraldina), parte do Corpus Hermeticum, nas costas de Noah. Uma imagem nuclear de estruturação narrativa de Dark é a imagem tripartite medieval (perichoresis) que define os três tempos da T01 e dos fundamentos da seita, verbalizados por Adam em T02. Se Deus é tempo e finitude, Adam protagoniza uma luta contra o tempo-Deus.
Esses recursos a símbolos, em vez de dificultarem a compreensão, ajudam o espectador a dar corpo, forma e sentido a conceitos abstratos da filosofia e da ciência. Entretanto, como diz uma das premissas de Dark, que encerra a T02, o problema não é quando, mas onde. A espacialização do tempo e a multiplicação de mundos a partir de unidades temporais não-discretas talvez sejam a grande inovação que Dark propõe para as narrativas de viagem no tempo.
O problema não é quando ou onde, mas quem
O que a T03 trouxe para a obra? Pode-se dizer que esta T03 conseguiu aprofundar de modo consistente os elementos dispersos em T01 e T02, e propor um fechamento que agradou de modo geral aos fãs e aos especialistas. Além disso, adicionou informações novas essenciais ao universo, adensando sua complexidade. E complexidade é a palavra-chave para Dark. A T01 e a T02 são construídas em torno das viagens no tempo e das alterações de mundos que elas promovem.
A progressão do drama dessas duas temporadas gira em torno do apocalipse nuclear e da descoberta dos mecanismos do sistema-portal de travessia entre os mundos. Ao final da T02, a Martha de um mundo alternativo abre uma nova linha de fuga nesse universo: o espelhamento excludente entre os universos de Jonas e Martha. Chamemo-los respectivamente de Universo 1 (U01) e Universo 2 (U02).
A T03 é toda guiada pela rivalidade entre Adam (Dietrich Hollinderbäumer) e Eva (Barbara Nüsse), versões mais velhas de Jonas e Martha. O primeiro age para produzir o Apocalipse e assim realizar o Paraíso. A segunda tenta defender a Terra para se autopreservar. Contudo, a T03 adiciona uma informação essencial: não há dois universos, mas três. Este U03, universo onde Martha e Jonas foram concebidos, foi criado por H. G. Tannhaus e é o universo Original.
O relojoeiro Tannhaus, ao criar a máquina do tempo para reverter a morte de seu filho (Marek), nora (Sonja) e neta (Charlotte) em um acidente de carro, criou assim a primeira fissura no tempo-espaço. Essa fissura se abre a cada 33 anos e se consumou com o desastre nuclear. Claudia, a personagem trickster, mensageira dos mundos, descobriu este U03 e o comunicou a Adam-Eva.
A fio de Ariadne da T03 então é a aventura de Jonas e Martha tentando superar as contingências e a condição autoexcludente de seus respectivos universos. Ambos são um erro da Matrix, referência à série clássica das irmãs Wachowski. A missão de ambos na T03 passa a ser corrigir este defeito: evitar o acidente da família de Tannhaus em 1986. Mas como nada em Dark é simples, permeando essa linha condutora o espectador tem muitas revelações e reviravoltas sobre a gênese, as transformações e o destino de cada personagem.
Do ponto de vista conceitual, enquanto a T01 e a T02 se apoiam sobretudo nos buracos de minhoca (wormholes), no Paradoxo de Bootstrap e no bóson de Higgs, a partícula de Deus, a T03 se concentra em explorar o emaranhamento quântico e o famoso paradoxo do “gato de Schrödinger”. De acordo com o experimento mental concebido pelo brilhante físico teórico vienense, um gato dentro de uma caixa poderia estar vivo ou morto. Tudo depende do observador.
Usado como um dos principais modelos de descrição do universo quântico, a estrutura fundamental da matéria (quanta) pode ser onda ou partícula. Depende do momento em que o observador a observa. E cada partícula-onda pode estar simultaneamente em tempos-espaços distintos. O U01 e o U02 seriam dois universos interconectados por um evento. E, ao mesmo tempo, se anulam reciprocamente. Neles o presente, o passado e o futuro coexistem. O que significa o mesmo que corroborar uma frase dita por Adam em T02: o tempo não existe.
“O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer”. A T03 parte desta sentença pessimista de Schopenhauer e, ao mesmo tempo, continua a atribuir às personagens a possibilidade de alterarem seus passados, presentes e futuros. Saborosa ironia. Nesse sentido, toda a odisseia de Dark termina com uma ambivalência. Ao mesmo tempo em que o par romântico Martha-Jonas altera seus destinos e arquiteta os pluriversos como Adam-Eva, a realização do Paraíso implica a restituição de um mundo onde nenhum deles exista.
Os dois, bem como todos os personagens que derivam da Origem (U03), estão simultaneamente vivos e mortos. Não são entidades atuais (seres), mas virtualidades (podem vir a ser). Por isso, a maior das ironias é a sequência final. A mensagem subliminar parece nos dizer que nunca superaremos o combate mortal entre destino e contingência, entre a fatalidade do cosmos e a nossa liberdade humana, demasiado humana.
Desde Doctor Who, 2001 e Em Algum Lugar do Passado a Efeito Borboleta e Interestelar, as virtualidades contidas nas viagens espaciotemporais estão entre os recursos narrativos mais potentes para se repensar os fundamentos da realidade. Nesse sentido, Dark é excepcional. Já nasceu clássica. Agora, com seu derradeiro fim, podemos considerar que a sua aventura brilhante em direção ao futuro se encontra apenas no começo.