Lições de Cosmologia para não-especialistas (das leis físicas às leis cósmicas) – 3
Estas notas constituem uma extensão de um curso de cinco lições que dei em 2018 no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas para divulgar alguns aspectos do universo que os cientistas têm elaborado nas últimas décadas, sem me deter nas demonstrações matemáticas associadas. Aqueles que tiverem interesse em aprofundar este conhecimento técnico poderão consultar as referências citadas.
Jamais, jamais concluir uma paz com o dogma
(Hegel)
SEGUNDA LIÇÃO. O MUNDO DA MICROFÍSICA (QUANTUM)
Reprodução da capa do livro do primeiro Simpósio internacional dedicado à interação entre a física de partículas elementares e a cosmologia ocorrido no Fermi National Accelerator Laboratory em maio de 1984 em Chicago..
O microcosmo, no interior da matéria, passou a ser descrito pela teoria quântica a partir das primeiras décadas do século 20.
Embora não é nosso principal interesse aqui tratar dessa teoria, o estudo da cosmologia fica incompleto sem que tenhamos uma ideia do que se passa no mundo microscópico. Ou seja, precisamos falar do quantum. Eu me limitarei ao mínimo necessário para que possamos entender algumas questões que a cosmologia se defronta e que inevitavelmente relacionam o macro ao micro.
Princípio de incerteza (Heisenberg)
Talvez o conceito mais estranho que a teoria quântica estabeleceu no mundo microscópico seja o princípio de Heisenberg dito da incerteza.
Começamos por entender que certas quantidades na física, como por exemplo a posição de um corpo qualquer e sua velocidade não podem ser determinados com precisão absoluta em uma medida. Isso é caracterizado pela relação
Δq . Δp > h
Onde simplificadamente podemos associar Δq e Δp ao erro na medida da posição e da velocidade de um corpo. Ou seja não é possível em um mesmo momento t conhecer com precisão a posição e a velocidade de um corpo.
Uma formula análoga (que iremos utilizar no fenômeno de criação de partículas) envolve a energia e o tempo sob a expressão
ΔE . Δt > h.
Note que há uma sutil diferença entre esta e a formula anterior. Enquanto a primeira se refere a medidas efetuadas em um mesmo tempo t, aqui se trata de medidas da energia efetuadas em dois tempos distintos e onde Δt é a diferença entre e onde o sistema tem energias e respectivamente.
Essas questões da teoria quântica parecem indicar que ela diz respeito a uma interação entre o observador e o fenômeno observado. Em verdade essa relação sempre foi enfatizada no mundo microscópico e identificada como a verdadeira característica do mundo quântico. No entanto, se pensarmos em algum momento aplicar ao universo conceitos quânticos, essa ênfase na medida por um observador se torna completamente fora de sentido, pois não podemos aceitar em nossa construção mental do universo a existência de observador externo. Não terei tempo aqui nessas lições de considerar essa questão que deixarei para outro momento. Eu só apontaria aqui a importância para a cosmologia da contribuição dada pelo físico inglês-brasileiro David Bohm no desenvolvimento das ideias de Louis de Broglie em sua crítica à famosa interpretação de Copenhagen, restringindo o papel do observador.
Um comentário aqui se faz necessário.
Os mistérios da teoria quântica estão em boa parte relacionados à dificuldade de traduzir a linguagem matemática usada em sua descrição para os hábitos de pensamento convencionais com os quais lidamos em nosso mundo newtoniano. Há uma outra sutileza que somente cito brevemente para não me afastar em demasia de nosso objetivo aqui. A formulação de Bohm que usa termos convencionais da mecânica para descrever o mundo quântico (e, em particular, eliminando o papel central do observador, o que é crucial se nos dispusermos a construir uma investigação quântica do universo) pode ser interpretada como alterações na geometria do espaço-tempo de um modo distinto da teoria da gravitação na Relatividade Geral. Essa geometria não é mais a proposta por Riemann mas sim uma generalização construída por Herman Weyl (ver apêndice a esta seção). Nessa interpretação, os estranhos aspectos do mundo quântico estariam associados a uma mudança da geometria que estaria ocorrendo no microcosmo. As estranhas propriedades que a relatividade geral mostrou ao descrever a interação gravitacional como uma alteração da geometria, teria uma analogia no quântico. Isso não o torna menos hermético, mas aponta um caminho de sua interpretação mais compreensível. Em sessão posterior iremos fazer uma pequena descrição dessa interpretação do mundo quântico associada à geometria de Weyl.
Constante Cosmológica: uma estrutura clássica ou quântica?
As equações da teoria da Relatividade Geral podem ser simplificadamente representadas como igualando propriedades da geometria – a curvatura do espaço-tempo – à distribuição de matéria/energia.
Embora essas equações sejam representadas com uma aparência simples e que alguns físicos as consideram como uma das mais elegantes da física, essa forma de descrição é uma fantasia que esconde sua verdadeira complexidade.
Sem querer provocar nenhum pânico no leitor, mas somente por questão de informação adicional acrescento abaixo, para aqueles interessados em detalhes técnicos, as duas formas equivalentes de representação das equações de evolução da geometria do espaço-tempo da teoria da Relatividade Geral. A primeira é a forma de fantasia na qual se apresenta a dependência da geometria, representada pela curvatura do lado esquerdo, com a distribuição de energia representada pelo lado direito A segunda forma exibe a expressão explicita do lado esquerdo (onde a virgula significa derivada parcial) mostrando a complexidade dessa teoria.
Em um primeiro momento a constante cosmológica foi associada à geometria, e colocada do lado esquerdo da equação da Relatividade Geral. Contrariamente a toda observação, ela parecia indicar uma forma misteriosa de repulsão gravitacional. Note que não era uma repulsão do tipo que aparece, por exemplo, na interação eletromagnética. Nesta, duas partículas de mesma carga, como dois elétrons, se repelem. O equivalente gravitacional dessa repulsão eletromagnética seria supor a existência de massa negativa, o que a observação descarta. Esse Λ não seria então associado a uma característica da matéria, mas sim a algo misteriosamente escondido no cosmos.
Em um segundo momento, essa constante foi associada a um fluido etéreo que existiria preenchendo o universo, um resquício da ideia transfigurada do éter que pairava na física do século 18. Com efeito, do ponto de vista formal, pode ser interpretado sob a forma de um fluido perfeito. Para isso deve-se impor uma especial relação entre a pressão e a densidade de energia, na qual o fator w comentado na primeira aula teria valor negativo: -1. Não se conhece nenhuma forma de matéria com essa propriedade. Ou seja, Λ seria algo único e não diretamente observável. Ademais, esse misterioso fluido agiria sobre tudo que existe mas não seria atuado por nenhuma forma de matéria e energia. Uma característica inusitada e que não tem similar em nenhuma outra forma de matéria e energia. Ou seja, mistério profundo.
E, no entanto, os físicos usaram sua imaginação para construir um modelo realista para esse fluido a partir de estados fundamentais de campos eletromagnéticos satisfazendo teorias não lineares. Os detalhes técnicos estão nas referências.
Com o advento da teoria quântica, uma nova interpretação para Λ apareceu com a entrada em cena do estado fundamental, o vácuo quântico.
Vácuo quântico
Vou repetir aqui uma anedota que o cientista russo Ya. B. Zeldovich gostava de contar em uma tentativa popular de descrever o vácuo quântico (ver pagina 159 de meu livro O que é cosmologia).
Um jovem entra em uma lanchonete e pede um sorvete. O dono lhe pergunta: “Com que cobertura o senhor o deseja?” “Nenhuma, não quero cobertura, só o sorvete de baunilha”, retruca o rapaz. “Sim”, continua o dono, “entendo; mas qual cobertura o senhor não quer que eu coloque em seu sorvete: o senhor não quer cobertura de marshmallow ou não quer cobertura de chocolate?”
Essa anedota exemplifica bem a questão da descrição do vácuo: ele só pode ser definido em relação a um certo espectro de estados compossíveis; dos quais o vácuo é um particular caso. Não é possível definir o vazio absoluto, sem referência a possíveis estados físicos acessíveis. Isto é, ao tratar o vazio como um estado realizável, é preciso a priori introduzir uma ordem formal na qual outros estados fisicamente possíveis poderiam ser ocupados. Segue-se então que a questão da instabilidade do vácuo só pode ser efetivamente examinada à luz de um dado modelo físico.
Alguém poderia imaginar que a questão de sua estabilidade deveria admitir uma resposta absoluta se examinado em relação a todas as teorias acessíveis. Eu deixaria para o leitor a tarefa de examinar as dificuldades formais que uma tal definição contém. Acrescentaria aqui somente um comentário sobre a inevitabilidade, neste último caso, de cair-se numa forma de armadilha formal, típica de estruturas totalizantes, como evidenciada por Gödel em sua análise da não demonstrabilidade de auto coerência de sistemas lógicos.
A versão quântica do mundo requer interpretar cada partícula como nada mais do que a condensação localizada de um campo. Assim, ao invés de pensar o eletron como uma partícula simples, sua versão quântica o identifica com um campo (o campo spinorial do eletron). Aquilo que chamamos eletron é a condensação localizada desse campo.
Classicamente, o vácuo (vazio) é uma estrutura desinteressante. É sinônimo de ausência, de estruturas, de leis, de simetrias, de teoria.
Do ponto de vista quântico, o vácuo é sem dúvida uma estrutura notável, rica de conteúdo, de um tal modo que a formulação padrão da teoria quântica de campos – que controla o mundo microscópico – anuncia que toda matéria pode ser entendida como operações formais sobre o vácuo.
Isto se aplica não somente a uma classe de partículas, mas a todos os campos da física, a todas as partículas, e possivelmente até ao campo gravitacional.
Na teoria da Relatividade Geral o efeito gravitacional da matéria é sentido através da flutuação da curvatura do espaço-tempo. Assim, o vazio completo clássico deve ser entendido como ausência de matéria e ausência de curvatura do espaço-tempo, ou seja, a configuração chamada espaço-tempo de Minkowski, típico da Relatividade Especial.
Nós deveríamos examinar a estabilidade desse estado fundamental que chamamos vazio completo (de matéria e geometria). Isso é um longo caminho. Entretanto, como dizia um líder político do século passado, um caminho de 100 léguas começa com o primeiro passo. Vamos então começar lentamente este exame.
Comecemos por notar que como o vácuo, típico para cada campo ou partícula, é ausência de matéria deveríamos esperar (segundo nossa percepção clássica do mundo) que este estado vácuo de um campo arbitrário tivesse energia zero. Em verdade a história é diferente e este vácuo possui flutuação que pode ser descrita como uma distribuição de energia que se identifica com a constante cosmológica, uma conexão inesperada e com consequências importantes em cosmologia. Em verdade o vácuo tem uma distribuição de energia típica de um fluido perfeito com equação de estado negativa, isto é, onde a constante w (cf primeira aula) vale – 1.
A constante cosmológica nas teorias não lineares da matéria
Embora seja uma incursão técnica, não posso deixar de comentar que em geral teorias não lineares possuem certos estados que são representados precisamente por uma forma de distribuição de energia idêntica à da constante cosmológica.
Ou seja, existem configurações de certos campos clássicos onde Λ aparece naturalmente. Um exemplo notável é o campo eletromagnético. Em sua versão linear, tradicionalmente gerada pelas equações propostas por E. Maxwell, a configuração com Λ não aparece. Entretanto, ao passarmos a processos não lineares, como descrito por exemplo na teoria original de Born-Infeld para o eletromagnetismo clássico, a configuração de uma constante cosmológica é um estado possível.
Esse estado de teorias não lineares do eletromagnetismo tem gerado modelos cosmológicos não singulares com bouncing. Em alguns cenários essa não linearidade serve como processo regulador impedindo o universo de desaparecer em uma singularidade.
As famílias de partículas
Os físicos organizaram as diferentes formas de matéria em termos de uns poucos constituintes, diversas classes chamadas barions, leptons, fótons, gluons, mesons vetoriais e Λ. Exemplos de barions são o próton e o nêutron; exemplos de leptons são o eletron e o neutrino. As demais partículas, que não pertencem a essas duas famílias, servem para intermediar as diferentes interações. Os fótons intermedeiam a interação eletromagnética; os gluons intermedeiam as interações fortes e os mesons vetorais intermedeiam as interações fracas (de Fermi). A constante Λ representa as características do vácuo quântico. Toda a matéria/energia do universo é constituída por esses componentes básicos.
Interação como troca de partículas
O ponto de vista moderno (isto é, quântico) substituiu a imagem tradicional do campo de força pela visualização da interação como troca de partículas. Mostramos a seguir algumas figuras de partículas em interação como, por exemplo, dois elétrons interagindo pela troca de fótons.
Leis de conservação
Nosso conhecimento da natureza está consubstanciado em certas leis de conservação, como a da matéria, da energia e outras.
Nos laboratórios terrestres, onde se pode observar diretamente interação entre partículas, o número de barions e de leptons são conservados, independentemente, em todo processo físico.
Barions são os componentes importantes do núcleo atômico, o próton e o nêutron. Leptons são partículas como o eletron e o neutrino. À materia bariônica, é designada um valor positivo 1; à antimatéria, como o antipróton, é designado um valor negativo, -1. Correspondentemente, na matéria leptônica o eletron tem número leptônico 1 e o antineutrino tem número leptônico – 1.
Por exemplo, considere a desintegração do nêutron que decai em proton, eletron e anti-neutrino. Ao começo temos uma só partícula, o nêutron, cujo numero bariônico é 1. Depois do processo temos um próton (que possui = 1), um eletron (cujo numero leptônico é 1) e um antineutrino (que tem numero leptônico negativo: -1). Note que tanto o numero bariônico quanto o leptônico são conservados.
Em verdade, em todo processo físico realizado em laboratórios terrestres, eles obedecem às leis de conservação dos números bariônico e leptônico.
No entanto nosso universo é constituído basicamente de matéria.
É bem verdade que se não houvesse esse enorme desbalanceamento nós não estaríamos aqui, pois matéria e antimatéria possuem uma fatal atração aniquilando-se e transformando-se em energia de radiação, fótons.
Por que a simetria perfeita observada nos laboratórios terrestres não se revela no universo? Onde foi parar a antimatéria?
Dependência cósmica das interações em um universo dinâmico
Nos anos 1970 a física de partículas conheceu um desenvolvimento notável com a proposta de unificação das interações fraca e eletromagnéticas. Não se tratava da mesma forma de unificação que no século 19 resumiu as forças elétricas e as forças magnéticas a uma só, a interação eletromagnética. No caso das forças fraca (de Fermi) e das eletromagnéticas, a união foi formal.
Enquanto a interação eletromagnética possui uma partícula de massa nula como intermediário (e por isso ela tem alcance infinito) as forças de Fermi são de curto alcance, ou seja, seus intermediários são campos massivos. Foi graças a um físico japonês Hideki Yukawa que se estabeleceu a relação entre o alcance da interação como inversamente proporcional à massa da partícula que serve como intermediário. Assim, entendemos o alcance infinito do campo eletromagnético pois a massa do fóton é zero. Entendemos também que a descoberta da partícula pesada meson pelo físico brasileiro Cesar Lattes e outros, intermedeia as interações nucleares de curto alcance.
A interação de Fermi tem uma outra propriedade muito especial e que é um outro exemplo de extrapolação indevida da física que acontece frente aos nossos olhos, na dimensão humana. Explico.
A interação eletromagnética é invariante por transformação de paridade, isto é, por inversão espacial. Dito de outro modo, a força eletromagnética do lado de cá ou do lado de lá de um espelho tem a mesma estrutura, independe da orientação com que o espaço é definido.
No decaimento da matéria, via processo de Fermi a interação viola a paridade, como quando o nêutron decai em próton, eléctron e antineutrino
n → p e ν.
Ou seja, ela troca de sinal ao se inverter a orientação do espaço.
A importância desse decaimento está relacionada à abundância dos elementos químicos leves no universo.
Nos momentos de máxima concentração do universo existe fótons, nêutrons e prótons. A abundância desses elementos depende somente da sua massa e da temperatura. Hoje, o universo contém basicamente hidrogênio e hélio. A abundância dos demais elementos é pequena e pode ser explicada pela sua formação no interior quente das estrelas. Mas o hélio é formado nas regiões extremamente condensadas do universo através de reações envolvendo o decaimento do nêutron pela interação de Fermi. É aqui que a dependência cósmica dessa interação se faz sentir.
A origem dos barions primordiais (prótons e nêutrons) ainda nos é desconhecida, embora iremos examinar algumas propostas de explicação.
Aceitando a existência primordial (a ser explicada ulteriormente) desses barions é possível mostrar no que se chama nucleossíntese primordial que o elemento químico mais estável, o hélio é abundantemente produzido. Assim dessa fase extremamente condensada (independentemente de ser ou não singular) o universo passa a conter hidrogênio e hélio. Os demais elementos são produzidos basicamente no interior das estrelas quentes. A desintegração do nêutron (elemento primordial como o próton) é que vai controlar o cálculo da abundância do hidrogênio e do hélio.
Ou seja, o modo de desintegração da matéria (no caso, o nêutron) é quem controla todo o processo.
É aqui que entra em cena um artigo de 1971 [Novello e Rotelli] no International Centre for Theoretical Physics sugerindo que esses processos fracos podem depender da intensidade da curvatura do espaço tempo, ou seja, variar com o tempo cósmico.
Essa dependência seria fraca e, consequentemente, apareceria somente nos primórdios da atual fase de expansão. Ou seja, influenciaria a quantidade de elementos químicos leves no universo, hidrogênio e hélio – precisamente os elementos mais abundantes no universo.
Onde foi parar a antimatéria?
A generalização da observada simetria partícula-antipartícula e a conservação do número bariônico cria um problema para uma descrição da matéria no universo que é exatamente a pergunta que fazemos nesta seção. Vamos dedicar umas poucas palavras à solução proposta pelo físico soviético Andrei Sakharov nos anos 1960 para explicar o desbalanceamento entre matéria e antimatéria no universo.
Segundo ele, a lei de conservação do número bariônico não sobrevive a um campo gravitacional extremamente elevado, como aquele que ocorre nos momentos iniciais da atual fase de expansão do universo. Isso significa que essa lei varia com a intensidade do campo gravitacional ou equivalentemente, depende do tempo cósmico.
A solução Sakharov
O programa de Sakharov requeria que em um certo período da história do universo um processo de violação da lei de conservação do número bariônico deveria ter ocorrido. Onde isso se passaria? Sakharov sugere que o lugar natural para esse efeito seria o momento de máxima contração possível do universo que poderia ser identificado ao começo de tudo – o cenário bigbang — ou seria um simples momento de passagem a separar duas fases da dinâmica de evolução do universo – o cenário de universo eterno. Restava a questão: como isso teria ocorrido?
Maximons e a inversão temporal de um universo oscilante
Durante o verão de 1971, no International Centre for Theoretical Physics na cidade italiana de Trieste, o físico M. A. Markov apresentou novidades que tratavam de dois mundos que eram entendidos como totalmente independentes: o universo em sua grandiosidade e o mundo da microfísica. Suas palestras se transformaram em um verdadeiro curso intensivo cujo título despertou enorme curiosidade: cosmology and elementary particles.
Uma proposta extremamente ousada foi ali apresentada sobre a possibilidade de existência de partículas que ele chamou friedmons, em homenagem ao cosmólogo A. Friedmann, o cientista que exibiu a primeira solução analítica das equações da relatividade geral representando um universo dinâmico em expansão.
Esses friedmons ficaram também conhecidos sob o nome de maximons. Isso se deveu à sua característica principal de ser a partícula mais pesada que a teoria da gravitação permitiria existir. Com efeito, sua massa M valeria 0, 00002 gramas é fantasticamente maior do que, por exemplo, a massa de um próton que tem massa de 0,000000000000000000000001 gramas.
Sakharov utilizou essa formula argumentando que a presença desses extremamente pesados friedmons em uma fase anterior de contração do universo provocaria um desequilíbrio termodinâmico e um excesso de anti-quarks; posteriormente, ao passar por um bouncing singular eles decairiam produzindo um excesso de quarks na fase de expansão atual do universo. A hipótese maior que daria sentido a essa proposta reside na aceitação de que globalmente o universo é invariante pelas transformações unidas CPT, ou seja, inversão da carga C, inversão espacial (P) e inversão temporal (T). Assim, um excesso de anti-matéria em uma fase colapsante do universo se transformaria em um excesso de matéria na fase de expansão.
Um modelo tão simples se depara com uma enorme dificuldade, a saber, a existência da singularidade cósmica. Isso porque sua presença, significando valores infinitos para quantidades fisicamente relevantes como a densidade de energia e a temperatura ambiente, apagaria toda informação de uma eventual fase colapsante no universo primordial. Isso sem pensarmos na questão da origem do desbalanceamento inicial favorecendo anti-matéria (que deveria, nesse cenário, ser entendida como uma condição inicial no infinito temporal passado).
No modelo de Sakharov, a compreensão do excesso de matéria sobre anti-matéria no universo dependeu de vários fatores, entre os quais, principalmente a violação da conservação do número bariônico que mede a diferença entre os barions e os anti-barions. Os barions como os prótons e os nêutrons constituem os tijolos básicos da matéria. Uma das leis mais fundamentais no mundo quântico estabelece que todos os processos que podem ocorrer na natureza devem preservar o numero total N obtido pela subtração do numero de barions menos o número de anti-barions existentes no universo. Vimos que quando o nêutron se desintegra ele dá origem a um próton e duas outras partículas (eletron e neutrino) que não são barions. Ou seja, havia um barion (o nêutron) e depois da desintegração resta ainda somente um barion (o próton). A função das outras partículas é somente compatibilizar outras características do fenômeno, como por exemplo, para preservar a conservação da energia.
Pois Sakharov argumentou que em algum momento na história do universo, processos permitindo momentaneamente a violação dessa regra fundamental deveria ter ocorrido. Os físicos aceitaram essa argumentação, como um caminho para explicar a assimetria matéria-anti-matéria observada no universo. A questão seguinte passa a ser: onde essa violação poderia ter ocorrido? Sakharov sugere que isso só poderia ter ocorrido nos momentos iniciais da atual fase de expansão do universo quando o universo estava submetido a uma intensidade do campo gravitacional fantasticamente grande. Esse processo seria mais compreensível se o universo tivesse passado por uma fase colapsante anterior. Devemos lembrar que naquele momento acreditava-se como verdadeira a ideia simplista de que o universo teria tido seu começo em um evento “explosivo”, o chamado cenário big-bang. Naquela década (1960) não se conhecia nenhum modelo cosmológico oscilante, satisfazendo as equações da teoria da relatividade geral, que tivesse uma forma analítica fechada para sua geometria, representando um universo tendo uma fase colapsante primordial e, depois de passar por um momento único de máxima condensação e realizar um “bouncing” entraria na fase atual de expansão. Independentemente da construção desse cenário completo, mas acreditando em sua intuição, ele imagina que o universo poderia ser oscilante mesmo passando através de um ponto singular, o que em termos formais é uma contradição. Foi necessário esperar uma década para que cosmólogos da antiga União Soviética e do Brasil conseguissem construir formalmente cenários não singulares de um universo eterno. Curiosamente, o cenário big-bang continuou ainda hegemônico por mais duas décadas.
No entanto, esse papel crucial da gravitação como gerador de quebra de simetrias no mundo microscópico foi deixado de lado por um bom tempo pois embora aceito, o principio de acoplamento não-minimo foi considerado excepcional e não muito comum. Recentemente, o papel atribuído por Sakharov à gravitação na explicação do desbalanceamento entre matéria e anti-matéria no universo voltou recentemente a ser novamente considerado.
Assim, reconhecemos o papel crucial da gravitação nas alterações das leis físicas e, como no caso de não-conservação do número bariônico no universo exibe-se a dependência da lei com o tempo explicitamente. Ou seja, ao introduzir efeitos gravitacionais em diferentes processos físicos altera-se profundamente o modo de entender a dependência temporal das leis da física que devem então ser pensadas como dependentes da evolução do universo.
Gravitational baryogenesis without CPT violation
Vicente Antunes, Ignacio Bediaga, Mario Novello (Rio de Janeiro, CBPF)
Journal of Cosmology and Astroparticle Physics (2019)
Abstract
We show that in theories with nonminimal curvature-matter couplings up to first order in the curvature, baryon number (B) conservation and CP are automatically violated, provided that the curvature scalar and its gradient do not vanish. Together with the associated gravitationally induced particle creation in a cosmological framework, which is an essentially out-of-equilibrium process, this implies that all of Sakharov’s conditions are satisfied in the simplest extension of General Relativity, without the need of CPT violation. Here, derivatives of the curvature can be disregarded, thus evading the potential problems associated with the Gravitational Baryogenesis (GB) model in a cosmological context. Thanks to the particle creation pressure and the trace anomaly, the curvature scalar is nonzero even in a radiation-dominated Universe. Moreover, the trace anomaly or the energy density of a massive scalar field can amplify the baryon asymmetry at very high temperatures, even when the particle creation rate is very slow. As a result, a baryon asymmetry compatible with observations and a huge CP violation can be generated in the early Universe.
Resumo do artigo publicado no Journal of Cosmology and Astroparticle Physics (2019) que complementa a proposta de Sakharov da formação do excesso de número bariônico no universo.
Não linearidade do eletromagnetismo sob influência cósmica
Vimos como teorias não lineares podem admitir configurações semelhantes à de uma constante cosmológica. É preciso notar que um processo semelhante e inverso também pode ocorrer. Explico. Assim como uma estrutura de campo eletromagnética gera um efeito cósmico como Λ, a influência inversa do cosmos é a responsável pela não linearidade do eletromagnetismo. Ou seja, parece um efeito bootstrap. Isso foi mostrado por Novello e Ducap em 2017.
Isso me leva a um comentário pessoal que pediria permissão a meus leitores para fazê-lo aqui. Em minha longa carreira no CBPF tive a felicidade de ter tido brilhantes alunos que fizeram teses comigo e se tornaram meus colaboradores. O último deles foi o jovem Carlos Ducap. Em sua Tese de Doutor Carlos desenvolveu a ideia de que assim como eu havia mostrado que as massas de todas as partículas têm origem cósmica, essa influência deveria ser sentida de modo semelhante na transformação das teorias lineares para teorias não lineares. Em particular, essa proposta foi completada em relação ao eletromagnetismo. Sua morte súbita no começo deste ano impediu que continuasse uma carreira que se mostrava brilhante. Se faço esse comentário aqui, extemporâneo, é porque quero prestar-lhe uma muito merecida homenagem.
Efeitos cosmológicos sobre a física local
Podemos resumir o que acabamos de ver com a seguinte lista
- Dependência cósmica das constantes da física;
- Dependência cósmica das interações;
- Não linearidade do eletromagnetismo sob influência cósmica
- Causalidade local e causalidade global
- Dependência das equações que descrevem a matéria com a dinâmica do universo.
- Não linearidade das equações dos férmions sob influência cósmica.
Vamos fazer um pequeno intervalo nessas considerações e comentar como a física e, em particular, a cosmologia, respondem a uma questão que em geral é considerada típica do território da filosofia.
O que significa existir?
A instabilidade do vazio permite afirmar que o universo estava condenado a existir
Prefácio
Quando recebi o convite de minha antiga aluna Maria Borba para participar do simpósio Cosmologias no SESC de São Paulo, achei conveniente revisitar algumas de minhas leituras relacionadas a esse tema. Em particular reli alguns trechos de um debate famoso envolvendo renomados físicos sobre tema geral de problemas filosóficos da física moderna. Essa reunião ocorreu em uma sessão paralela a uma conferência mundial de energia atômica no final de 1969 em Genève. Poucas semanas antes, eu havia chegado a Genève para meu programa de doutorado.
Embora a discussão envolvesse físicos renomados, como Werner Heisenberg, Erwin Schrödinger, Max Born e Pierre Auger, com uma visão bastante ampla da atividade científica, curiosamente não apareceu em suas intervenções nenhuma referência à cosmologia.
Isso mostra bem claramente quão absoluta naquela conferência a questão do mundo quântico dominava a discussão sobre a realidade física. Não parecia necessário na análise da distinção entre o real e o virtual nenhuma forma de imersão além das experiências de laboratório, nenhuma referência à nossa situação no universo, nem sua evolução.
Cinquenta anos depois, a situação se alterou radicalmente.
Introdução
Eu não irei apresentar aqui uma versão convencional do conhecimento cientifico sobre o que chamamos existir. Essa é uma indagação vasta e que pode conduzir a caminhos vários, associados a diversas propostas científicas.
Ao contrário, eu preferiria que examinássemos juntos alguns desenvolvimentos recentes na Cosmologia que estão associados a essa questão e fazer então um levantamento, propor um inquérito, sobre temas que nos pareçam extremamente próximos.
Isso não significa que me abstenho de procurar responder à questão que me foi colocada, mas quero afirmar de imediato que estou consciente de que o discurso cientifico constitui somente uma particular versão daquilo que chamamos a realidade.
Ao final desse nosso diálogo, podemos estabelecer uma síntese dessas análises e fazer então um balanço para saber se conseguimos avançar rumo a uma resposta convincente.
Em 1987, em meu livro Cosmos e Contexto, examinei essa questão do ponto de vista de um físico, ou melhor, de um cosmólogo. Eu então argumentava que para começarmos a construir um texto significante sobre o que um cientista tem a dizer sobre essa palavra — existir, deveríamos indagar em duas frentes de análise. Uma típica da física clássica (referente ao modo como sou informado de acontecimentos no mundo) e outra, do mundo quântico (como distinguir fenômenos que não estão associados a meus sentidos, a não ser muito longinquamente), a saber:
- O território;
- O virtual e o real.
A primeira está relacionada à totalidade construída pela cosmologia e que se identifica com o espaço-tempo, permitindo examinar cuidadosamente as limitações impostas a um observador e como pode ele ser informado sobre um acontecimento, sobre qualquer fenômeno. Como disse em outro lugar, a necessidade de fazer depender a noção de existência à informação é inerente ao programa geral da ciência. A análise das propriedades do espaço-tempo tem produzido situações novas, inesperadas, nas quais o conceito de existir adquire conotação não convencional. Podemos citar a questão dos buracos brancos, a violação das leis físicas em situações extremas no universo e algumas consequências da união entre a física da gravitação e o mundo quântico.
A segunda, tem a ver com a estrutura do mundo quântico e suas implicações até mesmo na influência da origem do universo, permitindo responder à questão: é o vazio um estado absoluto estável?
Vamos caminhar um pouco por essas duas estradas que parecem conduzir a lugares completamente distintos. Eu procurarei convencer vocês que ambos caminhos conduzem ao mesmo lugar e permitem uma resposta, ainda que incompleta, à pergunta-título desse texto.
O território ou o que a física tem a dizer sobre o mundo?
Para os físicos o universo consiste em matéria, energia e um território onde os fenômenos acontecem e que chamamos espaço e tempo.
Até o final do século 19 o espaço era associado a uma configuração absoluta, congelada, estática, possuindo três dimensões. O tempo era uma característica absoluta, o mesmo para todos em todo lugar.
No século 20, vários cientistas (Poincaré, Minkowski, Fitzgerald, Einstein e outros) mostraram que os relógios funcionam diferentemente caso estejam em repouso ou em movimento.
O homem perdeu então a possibilidade de ter informação completa sobre o universo. Isso se deveu à descoberta da existência de um limite máximo de velocidade para toda forma de informação, carregando qualquer tipo de energia. Ou seja, contrariamente ao que a física newtoniana afirmava, não é possível observar um fenômeno instantaneamente à sua ocorrência: ele requer um tempo de propagação para chegar até um observador.
Essa foi uma das primeiras estranhezas que o século 20 trouxe, mostrando que nossas impressões do mundo não são absolutas.
Muitas outras características sofreram profundas modificações de interpretação.
Isso aconteceu principalmente em dois lugares: no microcosmos (no interior da matéria, no interior dos átomos) e lá no universo profundo.
Vamos dar alguns exemplos para despertar nossa curiosidade. Mas antes, é preciso lembrar que esses fenômenos que iremos citar aqui são considerados estranhos porque não observamos essas propriedades à nossa volta, em nosso cotidiano.
- O tic-tac de um relógio em repouso não possui a mesma frequência que o tic-tac de um relógio em movimento;
- Para ir de um ponto do espaço para outro, devo passar continuamente por todos os pontos intermediários. Isso pode não acontecer no microcosmo;
- Ao caminhar para o futuro (ou seja, o que normalmente consideramos um movimento no tempo) nos afastamos de nosso passado. Isso pode não ser verdade absoluta. Ou seja, poderíamos localmente andar para o futuro e no entanto nos aproximarmos de nosso passado.
Esses exemplos parecem fantasiosos porque não fazem parte de nossa experiência corporal. Com efeito, para podermos observar essa alteração no relógio deveríamos atingir uma velocidade fantasticamente grande, próxima da velocidade da luz que é de 300 000 (trezentos mil) km/s.
Para podermos observar como se passa de um ponto do espaço para outro sem passar pelos pontos intermediários deveríamos estar na dimensão dos átomos e seus constituintes, ou seja, da ordem de 0,000 000 000 001 cm.
Para poder experimentar essa estranha propriedade do tempo que não parece seguir a relação causal convencional é preciso um campo gravitacional com características impossíveis de acontecer na Terra ou em nossa vizinhança.
Ou seja, essas estranhezas mostram que os cientistas têm feito descobertas que vão muito além de nossas experiências no cotidiano.
É porque elas acontecem em situações bem distintas das que estamos acostumados é que elas parecem estranhas.
A imagem que construímos sobre o mundo, a própria linguagem com que a descrevemos está de tal modo dependente de nossos corpos, de nossa experiência sensível, que é difícil conciliar essas novidades que a ciência está desvendando com as certezas a partir da quais aquela imagem do mundo se organizou.
Criamos uma representação do que chamamos realidade a partir de nossos sentidos e a aceitamos desde sempre como única. A física servia como suporte racional dessa descrição. Ao longo do século 20 esse apoio incondicional sofreu profunda alteração. Foi então que se tornou uma delicada tarefa para um físico responder à questão “o que significa existir?”.
Isso dito, e para continuar nosso diálogo, é necessário fazer um resumo sobre algumas ideias com as quais os cientistas elaboraram uma resposta àquela questão. Para isso, eu pediria a paciência do leitor para um desvio que pode ser um pouco técnico demais para estar aqui neste texto. Eu diria a meu favor, que é preciso esclarecer algumas das ideias que sustentam e organizam a visão cientifica.
As forças de interação
Além da matéria e energia encontramos no universo as forças de interação que são quatro:
- Eletromagnética
- Gravitacional
- Nucleares (Forte e Fraca)
As duas primeiras são conhecidas de longa data e fazem parte de nossa experiência cotidiana. As forças nucleares ocorrem no microcosmo, são de dois tipos. As nucleares forte são responsáveis pela estabilidade da matéria; as nucleares fraca são responsáveis pela desintegração da matéria.
Embora seja a mais fraca de todas as forças, é a gravitação que domina a estrutura e evolução do universo.
Nas dimensões enormes do cosmos, as forças nucleares não desempenham papel importante, a não ser na organização da matéria.
As forças eletromagnéticas têm sinal, isto é, podem ser atrativas ou repulsivas. Isso implica que em um universo constituído de átomos, matéria neutra, elas se cancelam.
Sobra então, dominante nas dimensões enormes do universo, a interação gravitacional que é universal, isto é, tudo-que-existe sente a força gravitacional. Não existe nada, nenhuma forma de matéria e/ou energia que não seja atraída pela gravitação. Poderíamos mesmo afirmar, graças a essa universalidade da interação gravitacional, de modo ingênuo, “caio, logo existo.” Consequentemente, toda teoria da gravitação determina uma cosmologia que lhe é associada.
A gravitação: de Newton a Einstein
Em 1915 o físico alemão Albert Einstein modifica a teoria da gravitação de Newton. Ele não mostra que Newton estava errado, mas sim que a teoria da gravitação de Newton deveria ser alterada quando o campo de força é muito grande. Na Terra e em suas vizinhanças poderíamos ainda utilizar a forma newtoniana para descrever processos gravitacionais, mas quando os campos são bem mais intensos– como acontece na vizinhança de estrelas muito compactas, como um buraco negro, ou no universo profundo descrito pela cosmologia – é a nova teoria de Einstein que deve ser utilizada, a chamada teoria da relatividade geral.
O universo segundo Einstein
Pelo que vimos, a gravitação é a força que determina as características do universo em sua totalidade. Assim, ao alterar a gravitação de Newton, Einstein procurou as propriedades do nosso universo dentro da nova teoria da relatividade geral. Como não havia nenhuma observação global do universo para guiá-lo nessa tarefa, Einstein produziu um modelo de universo estático. Duas décadas depois dessa sua proposta, mostrou-se que ela não se adequava às características observadas do universo.
O universo segundo Friedmann
Poucos anos depois do aparecimento do modelo cosmológico de Einstein, o cientista russo Alexander Friedmann elaborou um outro modelo cosmológico descrevendo um universo em evolução. Segundo Friedmann o volume total do espaço tridimensional varia com o tempo. Essa ideia provocou uma forte crítica de Einstein, mas mais tarde ele foi obrigado a aceitar que Friedmann tinha razão. Ou seja, o universo não é estático, como Einstein pensara, mas sim possui uma dinâmica, como proposto por Friedmann.
Isso criava de imediato uma questão crucial. Se o volume do espaço aumenta com o passar do tempo – como os astrônomos Georges Lemaître e Edwin Hubble demonstraram – então ele foi menor no passado. Questão: quão pequeno foi o universo? Durante as últimas décadas do século passado (entre os anos 1960 e 2000) aceitou-se a ideia de que o universo teria começado sua expansão a partir de um ponto singular ocorrido há uns poucos bilhões de anos. Isso criou uma dificuldade dramática na cosmologia.
Do big bang ao universo eterno
A ideia de que o universo começou a existir há uns poucos bilhões de anos, através de uma grande explosão – chamada onomatopaicamente de bigbang — passou a ser divulgada pelos meios de comunicação durante o final do século passado
No entanto o bigbang significa tão somente um momento de extrema condensação pela qual o universo passou. Ele não deve ser identificado com o começo-de-tudo. A razão é técnica, mas pode ser simplificadamente exposta do seguinte modo. Toda medida, obtida através de uma experiência de qualquer fenômeno, deve ter como resultado um número (ou mais de um) mensurável, logo finito. Ora, no modelo de Friedmann, as quantidades físicas – como a densidade de energia, por exemplo – assumiria no bigbang este valor impossível, o infinito que não pode fazer parte de nenhuma observação, pois não é o resultado possível de nenhuma medida.
Em verdade, questões envolvendo possibilidade de aparecimento de um valor infinito já haviam aparecido em várias outras partes da física, como na teoria eletromagnética. Para evitar essa dificuldade a teoria que descreve os processos de interação entre cargas elétricas, teve que ser modificada.
Isso se deve a que, segundo os físicos, a Natureza tem horror a extremos: o vazio e o infinito.
Assim, cientistas da antiga União Soviética e do Brasil propuseram independentemente, ao final da década de 1970, modelos de universo onde seu tempo de existência é bem maior. Aquele momento de extrema condensação – o bigbang – seria somente um momento de passagem de uma fase de colapso do universo – onde seu volume total diminui com o tempo –para a atual fase de expansão onde este volume aumenta.
Ou seja, o universo teria tido uma fase na qual seu volume diminuiria com o tempo, passado por um valor mínimo e iniciado a seguir uma fase de expansão.
Isso cria de imediato duas novas questões: o que teria colapsado e porque teria parado de colapsar e transformado este colapso em expansão? Essas duas questões os cosmólogos começaram a resolver nos últimos tempos.
Uma proposta para análise
Depois desse desvio sobre algumas ideias que os físicos elaboraram nas últimas décadas podemos retornar à nossa questão: o que significa existir?
Vimos que ao observar o mundo, aparecem limitações impostas pela teoria da relatividade especial. Por outro lado, a virtualidade no mundo das partículas elementares mostra que devemos aceitar a existência de níveis distintos de realidade. Ou, poderíamos dizer, de permanência no real. Por exemplo, quando um fóton se transfigura em eletron e anti-eletron, esse par é virtual, significando que eles não precisam obedecer às leis da física às quais toda matéria/energia deve se subordinar. Essa liberdade que um processo virtual adquire (por ser virtual) marca uma fronteira entre existência real e existência virtual.
No entanto essa virtualidade pode exercer uma ação sobre corpos reais. Um exemplo notável é a presença de efeitos não lineares na interação eletromagnética devido ao aparecimento de processos virtuais.
Somos levados então a pensar em camadas do real e do virtual como territórios semelhantes, mas não iguais, distinguidos pela observação.
Há outros processos que devemos também trazer à nossa análise, como certas configurações permitidas pela física embora (ainda) não observados. Isso faz vir à tona um exemplo curioso relativo a um certo mal-estar provocado pela sugestão do físico Wolfgang Pauli da existência de uma partícula diáfana como o neutrino. Na época que propôs a existência dessa partícula – para preservar leis fundamentais da física como a conservação da energia e da quantidade de movimento – Pauli argumentou que havia feito algo extremamente transgressor, pois havia descrito certos processos físicos como consequência direta de uma estrutura que jamais seria observada. Isso era devido ao fato de que esse neutrino dificilmente seria observado diretamente, pois a hipótese de Pauli requeria ausência de propriedades típicas de um corpo real, pois esse neutrino não deveria possuir massa, nem carga elétrica. Seria pura energia propagando-se com velocidade igual à da luz, a máxima permitida pela teoria. No entanto, uma década depois esse neutrino foi efetivamente observado.
Alguns comentários adicionais para entender o caminho que um cosmólogo escolhe para interpretar a questão que estamos considerando.
O nada
Por que existe alguma coisa e não nada? Alguns filósofos, como alguns matemáticos, consideram essa uma falsa questão. A acreditar em Russel, se não existe nada, existe então o conjunto vazio. A partir dele, constrói-se um número infinito de subconjuntos, estruturas, coisas matemáticas. Coisas. E o vazio se enche.
O vazio cheio
O vazio completo de matéria e dessa substância sempre presente, o espaço-tempo isento de qualquer deformação, estaria na origem de tudo-que-existe. O universo se construiu através de um tempo de existência enormemente grande – que, sem temor algum, chamaríamos de infinito – onde a matéria é uma consequência natural de transformação, de transfiguração, daquele vazio. Abre-se então uma eficiente resposta à questão anterior, isto é, existe alguma coisa e não nada porque o vazio é instável, não pode permanecer vazio.
Matéria ou antimatéria?
Para os astrônomos, a questão cosmológica é outra: por que existe a matéria que observamos e que constitui nossos corpos? Dirac mostrou que o universo pode conter matéria e antimatéria. Por que então elas não se aniquilaram, gerando um mundo distinto do atual, repleto de radiação, luz, fótons, impedindo assim a presença humana? Segundo o físico russo Andrey Sakharov isso aconteceu devido à dependência das leis físicas com a expansão do universo. No momento de máxima condensação a interação gravitacional inibiu processos que tornavam simétricos matéria e antimatéria, permitindo assim o excesso de uma parte sobre a outra. A esse excesso chamamos matéria.
A questão causal.
Precisamos atravessar esses caminhos que levam ao passado e que Gödel, desafiando as formas convencionais do espaço-tempo, em homenagem a Einstein, pacientemente construiu. Devemos entender esse mistério temporal, que a gravitação universal permite, e no qual ao caminhar em cada momento para meu futuro estou me aproximando de meu passado.
Local ou global?
Passar das fórmulas infinitesimais associadas às equações diferenciais, típicas da física newtoniana, às expressões globais até então submersas no imaginário e que a Cosmologia através de formas topológicas, teve o cuidado e a inesperada tarefa de trazer à superfície, conduz a um modo de pensar que vai além do simples cálculo matemático. Ela requer um passo além de uma dicotomia nostálgica que nada mais faz do que exprimir um evitável duelo local-global.
A questão teleológica.
As propriedades específicas da matéria e a evolução do cosmos se associam com um objetivo final? A massa das partículas elementares, por que têm precisamente este valor que medimos? As constantes das interações, a carga do eletron, a massa do neutrino, por que possuem este valor preciso e não outro? Estariam esses valores relacionados à estabilidade deste universo, permitindo sua existência por um tempo suficientemente longo para o aparecimento da vida? A explicação da aparência do universo estaria assim à nossa espera?
O todo e as partes
Devemos rever a questão que aflige alguns pensadores, como Nietszche descreveu, em sua programação inacabada sobre a teleologia de Kant, ao afirmar que “…o todo não condiciona necessariamente as partes, enquanto as partes condicionam necessariamente o todo.”
Ou, ao contrário, deveríamos ouvir atentamente o matemático-filósofo Lautman que nos conduz a aceitar uma simbiose benéfica a ambos, às partes e ao todo. A Cosmologia traz à cena a afirmação de que podemos identificar o universo com essa estrutura riemanniana quadridimensional espaço-tempo que constitui um substrato material para a descrição iterativa de todos os processos que chamamos a realidade.
Se essa totalidade resiste ou não aos ataques dos filósofos não é nossa questão, não é relevante, pois aqui se trata preferencialmente de incentivar o diálogo. Se as posições de uns e outros são opostas, devemos entende-las como uma questão formal, passageira. O diálogo deve permanecer. Através de Lautman, é a matemática que se intromete para gerar um modo comum a físicos e filósofos, de tratarem a questão das partes e do todo e permite este diálogo.
Reconhecemos então que o que está em questão não é a negação da certeza do outro, mas o jogo de pensar como entretenimento da vida.
Hierarquia entre os vazios
Uma das mais estranhas propriedades do vazio é saber que ele pesa. Isto é, como toda forma de energia e matéria, o vazio também cria campo gravitacional. Mais inesperado ainda: alguns vazios são mais vazios do que outros. Como isso é possível?
O vazio de deSitter
Um universo que se expande igualmente no espaço e no tempo. Completamente homogêneo espacial e temporalmente. Sua origem é uma misteriosa constante cosmológica que Einstein imaginou, para logo em seguida rejeitá-la. Esse vazio é identificado com a própria geometria cósmica.
O vazio de Kasner
Certamente este vazio de Kasner ultrapassa as estranhezas de outros vazios. Ele constitui um universo homogêneo espacialmente anisotrópico, possuindo expansão e contração distintas conforme as direções do espaço. Qual sua origem? Qual sua fonte? O vazio completo de matéria e energia.
Uma tal cosmologia é possível devido à característica da dinâmica gravitacional descrita na teoria da relatividade geral estar associada a equações não-lineares. Ora, um processo não linear não requer necessariamente uma fonte externa que lhe dê existência, pode ser resultado de um auto estimulo.
Infinitos.
Chegamos então finalmente a Cantor, esse criador de uma multiplicidade de infinitos, gerando uma sucessão ilimitada de labirintos. Procurar o que fazer com esses transfinitos, como escapar deles e impedir que sejam atirados ao lixo das ideias utópicas e do não-ser.
Os filósofos vão encontrar os físicos. Mas é de matemática que se trata. Cantor não oferece a realidade, mas provoca a criação de caminhos para a entrada de mundos conduzindo a outros mundos, em uma sucessão inesgotável de universos.
Conclusão
Como esse longo desvio nos caminhos da física e da cosmologia pode esclarecer a pergunta-título desse texto? E, afinal, qual resposta podemos extrair dessa análise?
O que podemos concluir desses comentários para esclarecer nossa questão? Talvez devêssemos enumerar algumas consequências que podem servir a essa tarefa.
Começamos nossa análise por instituir um território, o espaço-tempo. O matemático E. Kasner mostrou que a relatividade geral garante que o universo, completamente isento de matéria e energia, se curva sobre si mesmo. Ou seja, a estrutura espaço-tempo inerte, onde iriamos descrever eventos, faz parte da história que estamos tentando descrever. Isso é um fator de desequilíbrio e criador de diversas dificuldades.
Dizer que existe um espaço-tempo dinâmico, sem nenhuma forma de matéria nem energia constitui uma possível configuração do universo que se estrutura na cosmologia moderna e que coloca uma dificuldade adicional e inesperada nessa análise.
Um universo dinâmico, sem matéria, sem energia, puro campo gravitacional autocriado, desqualifica o papel fundamental do observador que havíamos aceitado preliminarmente. Alguns físicos pretenderam contornar essa dificuldade arguindo que o modelo de universo construído por Kasner é somente uma possibilidade matemática. Poderia não ter realidade.
A situação, no entanto, se transformou completamente quando aprendemos—com os cosmólogos russos E. Lifshitz, V. Belisnki e A. Khalatnikov – que na vizinhança de uma singularidade, ou quando a intensidade do campo gravitacional cósmico é extremamente alta, a geometria do mundo se identifica com aquela proposta de Kasner. Ou seja, a aplicação da teoria da relatividade geral no ponto de extrema condensação, onde se organiza a expansão do universo, implica que o processo gravitacional evolui independentemente da sua possível fonte material e energétca ou, de modo equivalente, tudo se passa como se a matéria não tivesse relevância na evolução do universo nos domínios cósmico de extrema condensação.
Do que vimos então podemos extrair uma primeira avaliação da nossa questão:
- Não devemos esperar que a física moderna seja capaz de estabelecer uma hierarquia existencial absoluta entre o real e o virtual;
- O estado fundamental, o vazio, é desprovido da qualidade convencional que permite apontar para uma coisa e dizer “ela existe”. A multiplicidade desse vazio permite afirmar que alguns desses vazios admitem uma cosmologia associada, capaz de descrever uma fase importante do universo;
- O cosmos, a matéria, a energia e o espaço-tempo parecem ter sido derivados desse estado imaterial, o vazio. A própria matéria que existe no mundo, parece ser consequência de um estado – o vazio – que não é nem matéria nem energia. Ou seja, a dicotomia o ser e o nada se diluem no território da física moderna.
Somos então levados a aceitar que essa primeira síntese de nossa análise não permite responder de modo completo à questão “o que significa existir”.
No entanto, não devemos subestimar a atitude conservadora dos cientistas. É bem possível que se perguntarmos a um físico, em seus momentos de divagação e lazer, sobre o que ele acredita ser a resposta à questão “o que significa existir”, ele apresentará uma solução pronta, técnica e completa.
No entanto, quando mais adiante, refletir em solilóquio sobre sua conclusão, ele muito possivelmente concordará que sua resposta nada mais é do que uma afirmativa arbitrária e provisória. E que ela não dispõe da segurança e garantia que possuem as respostas cientificas de descrição dos fenômenos com que ele trata cotidianamente em sua atividade de cientista. Ou seja, essa é uma questão que exige um compromisso formal para que sua compreensão, antes de qualquer resposta, permita esclarecer os diversos níveis de interpretação que ela esconde.
Dito de outro modo: fora do cotidiano, longe das coisas e fenômenos descritos na física newtoniana – e que organiza nossa realidade imediata – a ciência moderna, ao avançar em sua descrição da natureza no microcosmo (no domínio do mundo quântico) e no universo profundo (nos momentos de extrema condensação do cosmos) bloqueia, inibe, impede a caracterização do significado único que quereríamos atribuir à palavra “existir”.
Sobre a linguagem ou para evitar um vocabulário vazio
Em vários textos reproduzidos nestas notas pode-se ver o uso da linguagem matemática com que os cientistas descrevem suas ideias sobre o mundo. Para entender o que ali está dito, é necessário um longo aprendizado especifico.
No entanto, é possível reproduzir em linguagem convencional, corriqueira, de todo-dia, o que o físico está dizendo nestes textos. Há, no entanto, uma diferença importante sobre o significado que deve ser atribuído àqueles textos. Explico-me.
Ao tratar de propriedades do mundo físico envolvendo características de nosso cotidiano uma versão das fórmulas matemáticas para nossa linguagem usual é simples, ou pelo menos, compreensível. Isso envolve fenômenos que ocorrem sob nossos olhos, e que podemos experimentar com nossos sentidos contendo características comuns que envolvem fenômenos om os quais temos experiências em nosso dia-a-dia: temperatura ambiente, não muito elevada nem muito baixa; pequenas pressões; forças de baixa intensidade, como o campo gravitacional da Terra, por exemplo.
Comentar as relações matemáticas sobre estes fenômenos é factível, podemos usar a linguagem cotidiana, pois estamos tratando de fenômenos de nossa dimensão, da ordem de grandeza do homem.
Um exemplo simples consiste no comentário de que um gás quando colocado em um recipiente, ocupa todo seu volume. Pode-se não saber as razões pelas quais isso acontece, mas a frase é compreensível, faz sentido pois descreve um fenômeno ao qual estamos acostumados em nosso cotidiano.
Essa linguagem envolvendo a descrição de fenômenos físicos convencionais, relacionados à nossa experiência pessoal, chamo dialeto newtoniano.
No entanto, quando começamos a penetrar em propriedades muito afastadas desse cotidiano, para descrever o micro e o macrocosmos, cujas estranhas propriedades foram reveladas ao longo do século 20, aparecem inesperadas dificuldades pois o uso desse dialeto newtoniano pode gerar contradições inaceitáveis. Vejamos, por exemplo, o caso da estrutura espaço e tempo, o território onde os fenômenos ocorrem e do qual não sabemos como deixar de usar.
As observações, a partir das quais a Física até o final do século XIX foi construída, eram da dimensão humana. Baixas velocidades, baixas temperaturas, fraca intensidade dos campos de interação, quer de natureza gravitacional ou eletromagnética. O que melhor identifica este modo dos cientistas de descrever a natureza pode ser resumida numa única característica, a sua linearidade. Note que ao descrevermos processos físicos através de um modo específico, por exemplo, o modo linear, estamos simplesmente tratando de uma linguagem, de uma representação do mundo. Não deveríamos propor que a natureza, os diferentes processos que percebemos no mundo e que fazem parte das ciências físicas, sejam lineares.
Demorou-se a poder liberar a natureza deste seu suposto comportamento linear. Hesitou-se a perceber que aquilo que deveria ser entendido como um modo simples de uma linguagem, um modo simples de descrição, não deveria ser identificado com a natureza. Demorou-se a reconhecer na prática o que costumamos aceitar em princípio, isto é, que o mapa não é o território. Assim, ao descrevermos o funcionamento da natureza, foi-se levado a aceitar sua suposta linearidade. Atribuiu-se essa qualidade de linearidade à natureza, não simplesmente à nossa descrição.
O grande passo dado no século XX foi a crítica dessa descrição linear permitindo à natureza um comportamento mais complexo, não linear. Não estou interessado aqui na razão, de natureza formal, que instituiu a linearidade. Sabemos que processos não-lineares são extremamente difíceis de serem formulados na linguagem matemática.
Isso permitiu entender essas observações através de Leis Físicas descritas dentro de um quadro formal extraído de um cenário cotidiano que servia igualmente para identificar, por analogia, o modo pelo qual a sociedade humana (e seus processos altamente não-lineares) se organizou.
Em verdade, o sistema newtoniano, paciente e cuidadosamente elaborado nos últimos quatro séculos, produziu acerca de uma miríade de diferentes fenômenos, cenários completos e fechados – indexados como possuidores de caráter absoluto – que garantia a universalidade anunciada.
A eficácia de sua análise dos diferentes fenômenos foi tão grandiosa, seu sucesso tão formidável que lhe foi concedido um privilégio muito especial a saber: não lhe foi cobrado, para ocupar o lugar central no pensamento ocidental, a explicitação formal de sua versão da criação do mundo (A versão técnica deste modo tinha sua estrutura montada sobre a idéia da instantaneidade da interação gravitacional.) subproduto mais importante, para nossa análise aqui, por incrível que nos possa parecer hoje – se compararmos seu status com o de outras formas de controle estabelecidas ao longo dos tempos. Uma tal omissão foi pensada não como uma falha deste sistema – um eventual defeito a ser corrigido ulteriormente – mas, ao contrário, como a demonstração de que havíamos conseguido, com ele, o bom, completo e verdadeiro diálogo com a Natureza. Anunciando uma nova era de fato na relação homem-Natureza e que se consubstancia na arrogante sentença – que pretende explicitar a desejada ausência de subjetivismos neste esquema – “hypothesis non fingo”. Esta certeza foi tão grande, ela produziu um tal efeito sobre até mesmo o modo de se pensar as questões as quais devemos dedicar a responder – isto é, aquelas questões significantes no interior do sistema newtoniano – que, mesmo quando, ao começo do século XX, os físicos foram obrigados a aceitar profundas mudanças neste sistema, elas foram entendidas como mudanças internas e não como uma extra-territoriedade do sistema newtoniano. Explico-me.
Podemos identificar dois grandes movimentos de mudança associados ao micro e ao macrocosmos (estou pensando na Física Quântica e na Cosmologia). Entretanto, em nenhum momento pôs-se em questão os parâmetros newtonianos de descrição da Natureza. Somente para exemplificar este argumento e caracterizar de modo mais simples o que estou afirmando podemos considerar um caso particular: o da estrutura básica o espaço e o tempo.
As mudanças que lhes foram impostas não destruíram sua função – imprescindível em todo discurso newtoniano do mundo – mas sim, mudaram suas propriedades. Trata-se de uma correção de rumo e não de uma modificação de objetivo. Assim, em um primeiro momento, a mudança do esquema newtoniano de tratar esta estrutura (espaço e tempo) como possuidora de uma condição absoluta, veio de uma análise teórica-observacional sobre as propriedades da luz. Como consequência natural da constância da velocidade de propagação da luz, foi-se obrigado a aceitar que relógios – máquinas que determinam o ritmo temporal do mundo – não produzem valores iguais para relógios associados, isto é, transportados por diferentes observadores que não se encontram em repouso uns em relação aos outros.
Como consequência dessa mudança o espaço e o tempo foram novamente unificados como o eram anteriormente à separação imposta pelo programa newtoniano.
Assim, quando a Relatividade Especial demostrou que relógios funcionam diferentemente, dependendo de suas velocidades, não se cogitou em eliminar de nossa descrição do mundo a estrutura espaço e tempo. Não se acatou a proposta de que esta estrutura deveria ser abandonada. Não! Pensou-se que o que deveria ser mudado seriam tão somente os modos de comparações das informações mecânicas entre diferentes observadores.
Isso foi espalhado pela sociedade – através da apreensão deste resultado a partir de informações da própria comunidade cientifica – como tendo sido realizado uma completa revolução e um afastamento total dos conceitos newtonianos. Parecia, a acreditar em toda a análise seguinte ocorrida no século XX, que um imenso salto para frente nos fazia abandonar o “dialeto” newtoniano. Falso, como a seguir iremos mostrar.
Em um segundo momento, uma nova mudança de rumo no programa newtoniano acontece. Dessa vez, não foi a luz que serviu para guiar essa crítica, mas sim um outro processo, associado a uma força igualmente de longo alcance como a eletromagnética, a saber, a força gravitacional. Aquela que, além de nos impedir de voar, determina o cenário astronômico, afirmando o modo pelo qual planetas, estrelas e outros objetos do espaço próximo ou longínquo se organizam. Einstein conseguiu encontrar um modo extremamente engenhoso e prático de associar processos gravitacionais a modificações na estrutura geométrica do espaço-tempo. Em sua análise, o espaço e o tempo deixam de ser um a priori de representação para serem associados aos fenômenos gravitacionais, como se pudéssemos descrevê-lo como uma estranha e universal substância.
É preciso distinguir estas modificações, por mais profundas que elas sejam, referentes às propriedades do espaço e do tempo com o abandono da estrutura espaço-tempo.
Nenhuma dessas duas alterações chegou sequer a questionar a condição – um pré-requisito da descrição de qualquer fenômeno no dialeto newtoniano – associada a esse modo de representação dos fenômenos. Em outras palavras, a existência formal e de fato da representação correta da estrutura básica do mundo utilizando o dialeto newtoniano não foi posta em questão.
De modo semelhante, quando mais tarde, a Física quântica vai mostrar as dificuldades com que nos defrontamos ao tentarmos acompanhar o movimento de um elétron, não se pensou em abandonar o conceito de espaço-tempo. Ao contrário, ele foi afirmado e não deveria ser abandonado. A solução alternativa apresentada (capaz de salvaguardar a estrutura newtoniana) consistiu em transformar a descrição de processos microscópicos numa sutil e complexa modificação envolvendo probabilidades de eventos e associando perturbações no processo de medida do fenômeno.
Mas quando, recentemente, a Cosmologia Quântica – numa ousada mas ainda incompleta tentativa de conciliar processos quânticos e gravitacionais – vem sugerir que devemos abandonar o conceito primordial “espaço-tempo” e pensar em “gerá-lo” a partir de outros conceitos, ainda por serem totalmente compreendidos, penetrando na ontologia do espaço-tempo, aí sim estaríamos anunciando de fato a iminência da extinção de um dos pilares do “dialeto” newtoniano.
Não iremos continuar este caminho aqui. Eu ousaria dizer que, para além das questões de caráter estritamente técnico, o que nos vem impedindo de criticar, ampla, severa e tão profundamente quanto seria necessário, o dialeto newtoniano, tem uma origem de natureza totalmente distinta.
Em verdade, o que a ciência apresentou, neste século, pode ser visto como uma imensa renovação do antigo movimento copernicano, envolvendo agora a estrutura dos próprios conceitos com que realizamos a operação de compreender a realidade ou, de outro modo, o que simplificadamente estamos chamando dialeto newtoniano. Dito de modo mais incisivo: os conceitos convencionais de descrição da realidade não devem ser considerados universais.
A Física encontra duras dificuldades ao tentar traduzir o que se passa em um nível para outro da realidade (estou pensando por exemplo em “curvas do tipo tempo fechadas”, que conduzem ao passado e exigem uma mudança radical de nossos conceitos temporais (ao nível macro) e a Física quântica (a nível micro).
Eu gostaria de enfatizar que essa questão transcende o território restrito e limitado do conhecimento técnico gerado pela Física e derrama-se, de fato, sobre toda nossa construção racional do mundo. Entretanto, a alternativa que está sendo sugerida – a descrição do mundo através de um novo dialeto não-newtoniano – aparece hoje, ainda, aos olhos da maioria dos cientistas, como uma alucinação, um possível retrocesso a uma era não cientifica, de possível revalorização do transcendental. Em verdade, não se trata absolutamente disso. Estou convencido de que a razão desta reação deve ser procurada em algum lugar onde se encontra o “orgulho da espécie”, onde habita o profundo narcisismo da espécie. Nesse sentido eu gostaria de acrescentar o seguinte comentário.
Freud identificou na história da Humanidade nos tempos modernos, três grandes alterações produzidas pela ciência que tiveram como consequência dramática uma diminuição do orgulho da espécie com consequências profundas na visão do mundo que a partir de então se elaborou. São elas:
- A perda do “centro do mundo”, graças a Copérnico, ao permitir a Terra de se mover em volta do Sol;
- A perda da “formação divina do homem”, graças a Darwin, com sua teoria da evolução das espécies;
- A perda da crença no poder completo de minha “razão”, ao identificar a função do irracional em nossos pensamentos, graças a Freud.
Talvez devamos acrescentar a esta lista uma quarta dificuldade ao explicitarmos a não universalidade do modo de descrever a natureza. Abandonar o dialeto newtoniano, reconhecendo que ele não pode ser usado em todos os níveis da realidade, é uma condição para podermos compreender os projetos científicos naqueles domínios que estão fora de nossa percepção sensorial. Como veremos, desse modo, estaremos organizando aquilo que chamei de metacosmologia.
Apêndice. Weyl e a geometrização do mundo quântico (Capitulo 19 do livro Os cientistas da minha formação, Ed. Livraria da Física, 2016)
Quando eu era estudante de doutorado meu orientador, Joseph Jauch, famoso professor suíço, tinha o curioso hábito de repetir com certa regularidade desagradável uma frase que ele atribuía ao cientista Wolfgang Pauli – o criador da ideia do neutrino e do spin. Quando consultado sobre um artigo cientifico e que este lhe parecia errado ou mais do que isso, desprovido de interesse cientifico, Pauli o desqualificava totalmente referindo-se a ele como …“esse artigo não é nem mesmo errado” — it is not even wrong!
Ou seja, o artigo não consegue sequer se constituir em um trabalho digno de exame ao qual se poderia atribuir um sentido e consequentemente, a partir de um protocolo técnico, deliberar sobre seu status e eventualmente conduzir a afirmar uma conclusão: certo ou errado.
Ao lado da arrogância e pretensão contida nessa frase, eu sempre a considerei basicamente errada e vou dar um exemplo que exibe sua irrelevância e mostra quão perigosa ela pode ser, se levada a sério, para o crescimento do conhecimento em geral e, em particular, do cientifico.
Essa consideração irá nos arrastar inevitavelmente rumo à questão de como tratar idéias que na ciência — e ao tempo em que elas apareceram — não conseguiram sucesso junto a seus pares. Vou fazer isso usando um exemplo bem preciso de uma teoria fracassada no domínio para a qual ela foi elaborada, mas que teve sucesso em outros territórios, aos quais seu autor, jamais poderia ter considerado à época.
Esse exemplo – que eu dedico aos jovens cientistas – não deve ser entendido como um elogio genérico das teorias sem sucesso, mas sim como uma tentativa de limitar as desagradáveis conseqüências da arrogância — uma qualidade infelizmente muito disseminada na atividade intelectual e em particular nas ciências exatas.
Hermann Weyl
A proposta idealizada na segunda década do século XX pelo matemático alemão H. Weyl para unificar as forças gravitacionais e as eletromagnéticas baseava-se em um principio que se mostrou completamente errado. A partir da constatação de que é possível interpretar a gravitação como o resultado da ação de corpos materiais e radiações energéticas sob qualquer forma sobre as propriedades da geometria do espaço-tempo, alguns cientistas extrapolaram esse domínio e imaginaram que a outra força de longo alcance — o eletromagnetismo — deveria de modo semelhante ser descrito através de uma mudança, possivelmente distinta, da geometria do mundo.
Partindo dessa hipótese, Einstein, Schrodinger e outros, passaram boa parte de suas vidas envolvidos nessa tarefa infrutífera à que chamavam “unificação de toda a física”. Weyl foi também um deles.
O caminho que ele escolheu o conduziu a propor uma mudança nos axiomas que definem uma geometria. Desde a antiguidade a geometria conhecida se restringia aos ensinamentos de Euclides e seus postulados. Foi somente no século XIX (??) que uma alteração das regras que constituíam a tábua fundamental de definição do que deve ser entendido como geometria foi alterada. Riemann, um estudante do grande matemático alemão Gauss, foi o responsável por terminar com o domínio absoluto da geometria euclideana. Talvez a principal responsável pelo choque que a estrutura proposta por Riemann provocou se encontra na ausência da positividade da distância entre dois pontos do campo de atuação da geometria.
A geometria euclideana garante que se dois pontos estão separados por uma distância cujo valor é diferente de zero, então eles são distintos. Quando a distância é zero pode-se então afirmar que esses dois pontos em verdade é um só e o mesmo. Nada equivalente na estrutura geométrica proposta por Riemann. Segundo ele, uma geometria (riemanniana) pode ser definida de tal modo que a distância entre dois pontos pode ser zero sem que esses dois pontos coincidam. Essa propriedade — surpreendente para o senso comum – resultou ser um poderoso elemento formal e se tornou indispensável para formular de modo simples e elegante a revolução na física que Poincaré, Lorentz, Einstein e outros fizeram no começo do século XX e que se consubstanciou na forma definitiva dada por Einstein em sua teoria da relatividade especial.
A passagem da geometria euclideana para a geometria riemanniana exigiu uma ruptura violenta, uma revolução de pensamento: o abandono da positividade da distância entre dois pontos. Weyl prosseguiu na desconstrução da geometria euclideana e elaborou uma geometria distinta da de Riemann no começo da segunda década do século XX. Propôs então outra revolução dentro da revolução (de Riemann) dando origem ao que se convencionou chamar desde então a “geometria de Weyl”. Não vou entrar em detalhes técnicos que distinguem essas duas geometrias mas para que o leitor possa apreciar, mesmo que limitadamente, o imenso salto dado por Weyl vamos comentar a propriedade que caracteriza sua proposta.
É verdade que ao abandonar a noção de que a distância entre dois pontos medida por uma régua, através de um dado caminho – vamos chamá-lo de Gamma — seja sempre associada a um número real positivo, Riemann se afastou e muito de Euclides. No entanto, nem mesmo ele sugeriu que esse número, o valor medido por um instrumento ao longo de uma dada trajetória, pudesse depender da história da medida, ou seja, depender do caminho percorrido ao longo da separação de dois pontos. Dito de outro modo, tanto em Euclides quanto em Riemann para ir de um ponto A a outro ponto B, por uma dada trajetória Gamma, a medida que lhe é designada não depende do modo pelo qual estendo minha régua de A a B. Weyl vai mais longe nessa empreitada de produzir uma geometria e faz com que o próprio aparatus de medida dependa da trajetória pela qual se vai de um ponto a outro. Isto é, uma régua que possui uma unidade de distância – digamos L- ao ser transportada mesmo que por uma distância pequena, Delta-x, sofre uma variação na sua unidade de medida de um valor Delta-L , que depende do valor que possuía L, da distancia percorrida Delta-x e de uma função típica da geometria de Weyl.
E quem seria responsável por essa esdrúxula, fantástica e misteriosa variação? Segundo Weyl, o aparatus de medida dessa distância estaria sofrendo uma ação física. Seria precisamente a existência de um estado de tensão incrustado na geometria que estaria a controlar essa dependência. E quem seria o responsável por essa tensão? Quem exerceria essa ação subrepticia no mundo? Weyl responde: o campo eletromagnético!
Assombroso? Espantoso? Delirante? Talvez. Mas igualmente brilhante e imaginativo. E para quem esses qualificativos pareçam deslocados de um tratamento cientifico rigoroso, é suficiente apontar o inesperado: sim, é possível estabelecer uma geometria formal consistente e poderosamente eficaz, isto é, operacional, a partir dessa ideia original de Weyl.
Vamos abandonar esse caminho formal que nos levaria a adentrar a história da geometria e retornemos à física para entender o insucesso da proposta de Weyl da unificação das interações eletromagnéticas e gravitacionais. A razão para esse fracasso veio de várias frentes e, em particular, devido à observação de que diferentes partículas que possuem carga elétrica tem massas distintas. Ora, o sucesso da teoria geométrica da gravitação estava associada ao fato de que a razão entre a carga gravitacional (também chamada massa gravitacional) e a massa inercial das partículas é uma constante universal e a mesma para todos os corpos.
Ademais, se o processo de interação eletromagnético estivesse marcado na geometria do mundo e fosse uma propriedade dessa geometria, então ela deveria ser universal, ou seja todos os corpos deveriam interagir eletromagneticamente. Ora, sabe-se que existem partículas – como, por exemplo, os diferentes tipos de neutrino – que não interagem eletromagneticamente, por não possuírem essa qualidade especial: a carga elétrica. Embora Weyl tenha proposto um modo habilidoso de contornar essas dificuldades, a comunidade cientifica rejeitou sua proposta. Ela permaneceu no domínio cientifico como uma curiosa generalização formal da geometria com propriedades notáveis. Em particular, a geometria de Weyl possui uma qualidade essencial que o eletromagnetismo longe de fontes possui e que chamamos invariância conforme. De modo simples, essa propriedade nada mais é do que a generalização local da conhecida propriedade de transformação de escala. Ora, o campo eletromagnético livre é com efeito invariante por transformações de escala dependente de posição. Mas a existência dessa característica não é suficiente para arrastar todo o processo eletromagnético para o território geométrico. Pelo menos, não do modo simples concebido por Weyl. Como ela não desempenhava um papel na representação do mundo observável, os físicos decretaram o desterro da geometria de Weyl para os confins ideais do território abstrato da matemática.
Origens do mundo quântico
O que permitiu aos fenômenos quânticos adquirirem um fascínio especial e com isso atraído o grande público, depende de um aspecto misterioso que envolve suas características e exala de sua formulação original associada ao que os físicos chamaram “função-de-onda”. Segundo Bjorn Johnson em seu discurso de apresentação do prêmio Nobel de 2012, “in the quantum world, light, atoms, nuclei and elementary particles are all described as being both particles and waves”.
É nesse território que se instituiu a aura de encanto que cerca essa função, suas propriedades inusuais que permitem associar aspecto dual às coisas, podendo um mesmo corpo evidenciar seu comportamento ora como uma verdadeira partícula se propagando no mundo material, ora como uma onda se propagando em um “espaço de Hilbert” inaccessível e cheio de intenções impossíveis de não serem qualificadas como “transcendentais” pelos não-iniciados. Mesmo entre os físicos, a autoritária interpretação de Copenhaguen que afirma propriedades do quantum inaceitáveis na realidade cotidiana, mantém um importante resquício misterioso associado à ausência de representação pictórica. Ou seja, para que possamos acessar o mundo quântico é indispensável a presença de um observador externo. É esse observador, descrito pelas leis da física clássica, que impõem ao mundo quântico esse caráter eclético manifestado por aquela dualidade. É ele que fixa os limites onde o quantum pode dominar.
deBroglie e Bohm
A grande maioria dos cursos convencionais dos institutos de física restringem-se à essa interpretação do mundo quântico estimulada pela chamada Escola de Copenhagen. A principal razão para isso é pelo menos curiosa: os usos da física quântica, em sua quase totalidade, não exigem sequer uma análise nem mesmo a exibição das características interpretativas que lhe é associada. Dito de outro modo: diferentes interpretações que pode usar o físico ao tratar do mundo quântico não interferem sobre os resultados observacionais. Esses resultados são passados à linguagem convencional através de um protocolo que o desobriga a exibir suas origens.
A existência de várias interpretações alternativas da mecânica quântica não impõem sua ação, não tem conseqüências obrigatórias. Elas são consideradas ou tratadas como irrelevantes para o conjunto de experiências e observações realizadas no mundo quântico. A necessidade de existir um observador externo a todo sistema quântico e que constitui uma característica fundamental imposta pela interpretação de Copenhagen, aparece no corpo da teoria como natural, sem necessidade de exame critico ulterior.
No entanto, existe pelo menos um sistema no qual essa interpretação esbarra com uma dificuldade de principio insuportável. Os cientistas construíram um universo que é uma totalidade clássica, basicamente controlado pela interação gravitacional. Seria possível imaginar uma totalidade quântica, isto é, um sistema quântico identificado com o universo? Somos levados à alternativa: ou o mundo quântico não pode ser aplicado ao universo entendido como um sistema convencional de exame ou então o observador externo, exigido por Copenhagen para dar sentido ao processo de observação, deve ser substituído por um outro operador. De qualquer modo, devemos estar preparados para ir além da interpretação de Copenhagen.
Há várias outras possíveis interpretações. Dentre essas quero me deter aqui em um comentário sobre uma delas, proposta originalmente pelo físico de Broglie e desenvolvida mais tarde por David Bohm. Para o que nos interessa aqui é suficiente argumentar que Bohm conseguiu mostrar que existe a possibilidade de entender o mundo quântico como um processo descrito em termos de corpos reais se movimentando no mundo – como na interpretação clássica da física — desde que se fizesse a (até certo ponto inesperada e igualmente misteriosa) hipótese de que existe,no mundo microscópico uma força universal –que não tem a natureza de nenhuma força conhecida – que atua igualmente sobre tudo que existe e que é derivada de um potencial a que ele chamou potencial quântico e que denominou pela letra Q.
Ou seja, se admitirmos essa força universal, a interpretação de Bohm-deBroglie da mecânica quântica não requer nenhuma função de onda misteriosa e tem como conseqüência direta o fato de que o mundo quântico admite uma descrição clássica, através de corpos com posição definida e trajetórias reais, sem nenhuma novidade esdrúxula para o senso-comum. Em verdade, trata-se de uma operação de câmbio: troca-se o enigma da função de onda pelo mistério da origem do potencial Q
Q-wis
A ideia de produzir uma geometria de Weyl restrita a uma só função apareceu nos seus primórdios. No entanto, essa restrição era totalmente ineficaz para aquilo que Weyl esperava dessa geometria, pois uma de suas propriedades implicava que essa restrição só ocorre na ausência do campo eletromagnético!
Foi somente quando essa geometria começou a ser desenvolvida em outros ambientes físicos que essa restrição exibiu o imenso potencial que ela trazia para descrever situações e processos de natureza distinta daquela original imaginada por Weyl. Em particular, essa propriedade permite contornar a dificuldade de definir localmente uma régua, pois na geometria geral de Weyl ela dependeria do caminho até o seu local de medida. Com efeito, como a restrição da geometria de Weyl a um wist faz intervir somente uma função, segue que em uma trajetória fechada – a condição de poder definir localmente uma régua sem a ambigüidade de sua história – a integral dessa variação é zero.
Usando essa propriedade chegou-se a produzir uma explicação natural para aquele potencial quântico. Interessa-nos aqui somente o seu resultado. Os passos intermediários para chegar até ele podem ser seguidos na referência. Resumindo podemos dizer o seguinte: os efeitos quânticos sobre uma partícula podem ser interpretados como se houvesse uma modificação da natureza euclideana da geometria do espaço tri-dimensional de uma forma especial: a geometria wist que Weyl criou. A demonstração desse resultado (ver referência) permite entender a origem das estranhezas quânticas como nada mais do que conseqüências da modificação da geometria.
A geometria euclideana tem suas origens nas medidas concretas de áreas, terrenos, volumes, garrafas, vasos. Ao se estabelecer como ciência seu sucesso permitiu a extrapolação para todos os níveis da realidade e em todas as situações possíveis, desde o nível da dimensão humana, onde ela se originou, para o mundo superior da astronomia e da totalidade universo bem como para baixo, até o nível elementar, atômico, microscópico, para todos os observadores independentemente de seus estados de repouso ou movimento.
No inicio do século XX a teoria da relatividade especial limitou sua utilização e instaurou o domínio de uma rigida geometria riemanniana para corpos em movimento. A teoria da gravitação – teoria da relatividade geral – quebrou a rigidez da estrutura riemanniana mas preservou a geometria do mundo como riemanniana.
E no microcosmos? Nada de geometria no mundo quântico via a Escola de Copenhagen. Ali é o território da função de onda. Foi a critica dessa crença generalizada e o sucesso da interpretação de Bohm que permitiu empreender esse passo inesperado e tratar de uma geometria distinta da hipótese que extrapolava a geometria euclideana para reger as distâncias no mundo microscópico.
Ao realizar que ali também a geometria deveria ser alterada mostrou-se que a força quântica aparece para compensar o erro que se faz ao aceitar que no mundo microscópico perdura a estrutura euclideana da geometria. Ao aceitar que a estrutura ali é de um wist tudo se esclarece e deixa de ser misterioso: o potencial de Bohm-deBroglie nada mais é do que a curvatura da geometria especial de Weyl, o wist.
Ou seja, a geometria euclideana ao ser extrapolada para além das estruturas da dimensão humana produziu uma imagem falsa do mundo. A relatividade especial exibiu esse erro euclideano para altas velocidades (comparadas com a da luz); a relatividade geral exibiu também esse erro euclideano ao examinar processos gravitacionais intensos gerados por grandes massas e/ou altas energias; a teoria quântica na versão deBroglie-Bohm ao mostrar que os aspectos formais e inusitados da função de onda podem ser entendidos pela modificação da geometria no mundo quântico para uma geometria de Weyl especial.
Assim, reconhecemos que embora a geometria de Weyl não sirva para unificar os campos eletromagnético e gravitacional, ela permite dar um enorme passo na compreensão dos processos quânticos.
Talvez fosse conveniente informar ao leitor que além dessa utilização da geometria de Weyl ao nível microscópico, vários cientistas desenvolveram cenários nos quais o mundo macroscópico, o universo em sua totalidade, seria controlado por uma estrutura especial do tipo de geometria proposto por Weyl. Mas isso eu deixarei para contar em outro lugar.
Epilogo
O exemplo que apresentei aqui se limita a mostrar o uso de uma ideia construída em um território para uma função especifica fracassada e quando utilizada em outro território inesperado resulta ser extremamente fértil. Ela provoca também a questão de saber se devemos definitivamente concluir a falsidade da crença de que existe somente um modo de descrever a realidade, um só modo de entender os processos físicos, ou seja, decidir se os cientistas estão construindo uma (representação da) realidade ou desvendando-a.
Esse comentário trata da arrogância e da atitude cientifica. Tem ele, no entanto, uma pretensão escondida, que espero desenvolver em outro lugar, e que consistiria em incitar, a partir dele, uma reflexão mais ampla começando com um alerta aos jovens cientistas para que não se deixem arrastar/convencer de que só os cientistas, a partir de algumas certezas e sucessos de seu modo de dialogar com a natureza, possam oferecem uma visão do mundo e que devemos fechar os olhos para os outros saberes.
Essa linguagem, travestida de versão oficial da realidade, ao persistir para além das mudanças que toda explicação cientifica sofre, torna-se cedo ou tarde um dogma, limitando nosso envolvimento com a natureza. Restaria empreender uma autocrítica cuja síntese poderia ser apresentada da seguinte forma.
Desde o seu movimento inicial, na aurora da ciência, os astrônomos instituíram um modo cientifico eficaz de representar a natureza. Sempre soubemos que ainda aqui deveríamos estar atentos pois nunca se tratou de um diálogo. Koestler chamou –de modo muito feliz — esses primeiros desbravadores, Brahe, Kepler, Newton e outros, como “sonâmbulos”.
Descobrindo conexões ou inventando-as no escuro, tateando. Esse caminho tradicional, histórico, tortuoso, tatibitate, no qual reconhecemos o procedimento humano, verdadeiramente humano, conduziu a algumas certezas sobre o mundo. Certezas provisórias, como sempre.
Esse saber sem conseqüências, ou melhor, sem objetivo aparente, esse sentimento grandioso de projetar a configuração do universo, que beirava a êxtase religiosa, permanece atual? Podemos afirmar que os cientistas continuam a seguir esse caminho? Existe ainda, na pratica científica, algum resquício de fascinação, mesmo que escondido, latente?
O sistema capitalista altamente desenvolvido e global a que estamos inseridos nesse século, o modo pelo qual se organiza o conhecimento científico hoje, as necessidades e funções para as quais ele está sendo orientado, sua falta de pudor na dependência das tecnologias associadas que opera um movimento destruidor em seu entorno, aponta para o aparecimento de um outro caminho. É difícil precisar com rigor essa nova forma e o alcance de sua ação na geração de uma visão do mundo, pois essa estrutura está em formação, limitando-se ainda ao território dos símbolos. No entanto não é difícil antever como esse movimento se realiza na prática contra o indivíduo, numa tentativa irresistível de ofuscar a tradição cientifica encurralando-a ao isolamento. Apontando-a ironicamente como a fantasia trágica, romântica, à sombra de um ideal perdido, como um processo ultrapassado. Restaria ao sonâmbulo moderno a tarefa heróica de produzir um caminho próprio e permanecer quietamente enclausurado numa edição fantasmagórica de arremedo de um solipsismo divino.