Sobre a vida dos estudantes
Em um texto de 1915 chamado “A vida dos estudantes”, Walter Benjamin diagnosticava um sério problema na formação universitária da Alemanha de então: “A falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos em ação por toda a parte”, dizia Benjamin, “apossou-se por inteiro da universidade e a isolou da vida intelectual criativa e não enquadrada no funcionalismo público”.
O que o jovem Benjamin apontava nesse texto – escrito a partir de sua atuação à frente do Estudantado Livre de Berlim – era o problema da dissociação moderna entre o aprendizado, reduzido à sua aplicação prática, isto é, ao utilitarismo “científico” mais instantâneo, e a vida dedicada ao saber, ou seja, a vida comprometida com a elevação integral e criativa da existência compartilhada. “Na medida em que se direciona para a profissão”, afirmava Benjamin, “a universidade desencontra-se forçosamente da criação imediata como forma de comunidade”. Em suma, para o autor judeu-alemão, uma profissão só encontraria seu verdadeiro sentido quando se mostrasse indissociável do trabalho espiritual que, assumido como exigência última da vida estudantil, deve ser capaz de elaborar uma forma de vida coletiva. Em uma palavra, é uma questão ética. Sua proposta aos estudantes é assim buscar uma forma de vida “mais profunda”, com a qual se tramariam, intimamente, o fazer e o ser.
Em linhas gerais, a crise da educação e da cultura a que Benjamin se referia, aliás ecoando outros críticos modernos da modernidade (notadamente, eu diria, no caso, Nietzsche, Simmel), era a expressão da alienação da vida causada pelo sistema de trabalho capitalista e pelo “progressismo” da ciência: sintoma do vazio, da falta de nexo entre o trabalho e o sentido da existência, entre o que fazemos e o que somos. E quanto mais a sociedade e a universidade atendiam aos imperativos racionalistas e segregadores da produção, mais se aproximavam da beligerância, afastando-se da construção de uma vida por meio de experiências criativas compartilhadas: de uma vida em certo sentido erótica. “O Eros dos criadores – caso alguma comunidade possa vislumbrá-lo e lutar por ele, esta seria então a comunidade estudantil”. Para superar, portanto, “essas instituições de vida” que se assemelham “a um mercado de coisas provisórias” e “servem apenas para preencher um tempo de espera vazio”, é preciso, dizia Benjamin, atender à voz que chama os estudantes para a construção da sua vida “a partir do espírito em que se unificam criação, Eros e juventude”.
As preocupações de Benjamin se ligam a outro evento decisivo, um pouco mais próximo de nós. Em 1918, estudantes de Córdoba, no intuito de romper com as amarras do racionalismo hegemônico e do dogmatismo colonial que ainda prevaleciam na Universidade argentina – uma das mais antigas instituições de ensino das Américas –, anunciavam no “Manifiesto Liminar de la Reforma Universitaria”, redigido por Deodoro Roca: “Hemos resuelto llamar a todas las cosas por el nombre que tienen”. Baseavam a falta de equívoco de sua decisão – “Creemos no equivocarnos” – no que advertiam as “resonancias del corazón” e sustentavam a exigência de uma autoridade que se exercesse de acordo com Eros, “sugiriendo y amando”, e uma educação que fosse, enfim, “una obra de amor a los que aprenden”. O que poderia ser considerado uma debilidade, como uma afetação romântico-revolucionária juvenil, mostrava-se, ao contrário, uma força produtora de efeitos os mais consequentes, de fato disparadora de lutas institucionais que logo seriam encampadas em universidades do México, Uruguai, Chile, Peru.
E é significativo que, para chamar as coisas pelo seu nome, um dos termos reivindicados no “Manifiesto Liminar” seja demos, quer dizer, a coletividade estudantil como povo. “La Federación Universitaria de Córdoba […] sostiene que el demos universitario, la soberanía, el derecho a darse el gobierno propio radica principalmente en los estudiantes”. Como em Benjamin, essa soberania expressa nas proposições dos reformistas universitários não devia encerrar-se sobre si mesma ou em qualquer pragmatismo. Ao contrário, conectando profundamente uma paixão pelo saber a uma forma de vida coletiva, devia endereçar-se para além da autonomia da instituição e contemplar um possível enlace comunitário em tempos tectônicos, marcados pela tensão entre Eros e Tanatos: a Grande Guerra, a Revolução Russa, a Semana Trágica.
Desde o início, o motivo desta exposição é destacar a importância da ocupação das oportunidades de pesquisa e extensão na Universidade, hoje. Se dou contorno a essa proposta a partir de tais considerações é porque, a meu ver – apesar da enorme distância que se impõe entre a vida na universidade pública no Brasil contemporâneo e os contextos que apontei previamente de maneira sumária – há algo muito importante nas palavras de Benjamin e na Reforma Universitária de Córdoba para pensarmos nossa situação atual e nosso futuro.
Hoje, mais de cem anos depois desses eventos, os desafios estudantis são ainda maiores, sobretudo em um país de dimensões continentais e com a história igualmente marcada pela barbárie colonizadora e pela desigualdade, como o Brasil. A universidade pública brasileira, muitíssimo jovem se comparada a instituições europeias ou hispano-americanas, deve lidar com questões de difícil resolução. Entre o ensino, a pesquisa e a extensão (o conhecido “tripé” que deve estruturar as atividades universitárias), coloca-se realmente a necessidade de uma relação mais orgânica da Universidade com seu entorno e com o tempo atual, tempo de novas profissões e atividades, já muito distinto dos tempos modernos.
A curricularização da extensão, por exemplo, que vem sendo imposta às instituições de ensino superior e deveria atender a essa demanda, está longe de ser a panaceia universal: em muitos aspectos, ela se mostra sobredeterminada pelo desolador contexto político prévio às últimas eleições presidenciais e por um pragmatismo muito conveniente ao mercado; pragmatismo que, no intuito de conferir protagonismo aos estudantes e uma formação profissional supostamente mais flexível e aberta à sociedade, pode comprometer a qualidade das suas bases teóricas e do seu repertório crítico com atividades descontextualizadas e genéricas, a exemplo do que vemos acontecer no novo Ensino Médio. Um assunto como esse mereceria, por isso, uma rigorosa discussão conduzida pelos/entre discentes. Outro problema, gravíssimo, que enfrentamos é a histórica falta de investimento na educação, que afeta a estrutura universitária como um todo, e especialmente as áreas que são, em princípio, menos conciliadas com a onipresença do mercado ou com a tradição que pactuava o poder das elites econômicas com as classes dirigentes.
É nesse ponto que se joga nosso principal, dificílimo desafio, que aqui apenas sinalizo. Muitas vezes, parece que a alienação da vida só se agravou no mundo contemporâneo. Inúmeros estudantes lidam com empregos exaustivos e mal remunerados, sem os quais não conseguem se manter, muito menos estudar; no entanto, diversas vezes esses empregos, que até parecem versáteis, quem sabe inovadores, de fato pouco contribuem para uma vida emancipada e criativa, uma vida a ser vivida, em comum, como forma de construção de um mundo possível, e não como destruição do único mundo que temos. Ou seja: são empregos que afinal reforçam o “mercado de coisas provisórias” do mundo contemporâneo, contribuindo para a desigualdade social, a atomização do coletivo, a precarização da vida e a falta de acesso a um ambiente universitário verdadeiramente transformador.
As atividades de pesquisa e extensão já existentes na universidade pública são, sim, oportunidades para que possam frutificar nossas tentativas de conciliação da profissão e da criação. Não é uma tarefa fácil neste país. As bolsas concedidas pelo governo – embora não cubram nossas necessidades e nem sejam abundantes – são ainda assim um apoio importante. Devemos reivindicá-las, sempre, exigindo que sua oferta seja cada vez mais ostensiva e desse modo reforce, também, as políticas para manutenção de estudantes que ingressam na Universidade como cotistas.
E em núcleos, programas e projetos de pesquisa, a crítica ao mundo tal como construído até agora é não só cabível, mas sobretudo necessária, e deve ser exercitada como rigoroso meio criativo. Protocolos de leitura, métodos, escopos, objetos, fins – em teoria e prática, é preciso pensar que tudo pode ser colocado em consideração. Quer dizer: pesquisar é questionar, imaginar, arriscar; é descobrir que crítica e criação não se separam, assim como não devem se separar o sentido do nosso trabalho e o sentido da vida que ainda podemos construir. Creio que aí se encontra a “vida mais profunda” a que Benjamin se referia e pela qual os estudantes de Córdoba também lutavam, há mais de cem anos.