O ÚLTIMO GESTO: Do conceito nascem os filósofos (as).
Todo encontro é sempre uma disponibilidade dos afetos. Eles acontecem de muitas maneiras, até mesmo no roubo de uma formiga na borda do café. Para o início de nossa conversa, o ser formiga seria apenas uma disponibilidade para questão filosófica que, muitas vezes, não está ali no imediato do visível. É claro que esse encontro gera, em ambos, uma instabilidade e o desvio no destino da vida: formiga, café, mesa e eu, somos disponibilidades, aquilo que esteja no disponível. De imediato, encontrar elementos de vida na história das filosofias torna-se o elemento vital de uma escritura no espaço, tempo e território do pensar, consideramos, por exemplo, que todo conceito é apenas uma assinatura do filósofo elaborada na disponibilidade das coisas enquanto coisas. Mas vejamos, inicialmente, o termo conceito, vem do latim, conceptus, que significa coisa concebida, criada, inventada ou coisa formada na mente, outra noção seria pegar mentalmente e dar compreensão, visualidade sobre algo. Em Kant, o problema da razão se torna uma questão do pensamento, no que se refere ao momento de o ser humano usar o entendimento como via de organizar o mundo entre seres e coisas. O fato de Kant ter adição pela ordem, faria dele um compulsivo organizador do mundo caótico numa estrutura que pudesse explicar sua impaciência pelo erro metodológico. Isto também se revela no recorte da pintura em transformar a paisagem num drama da cor em pleno século XVII. Os pintores daquele século estariam, de modo antecipado, a revelar que a realidade possui muitas camadas, a impressão do gesto seria incapaz de dar conta da totalidade, questão que iriamos enfrentar com o nascimento da fotografia e do cinema, paisagem em movimento ou cor em impressão.
Diante disto, a palavra paisagem deriva do francês paysage, oriundo do termo “pays”, recorte ou enquadramento da imagem, olhar que se mira naquilo que esteja disponível ao recortado, área demarcada e natureza em recorte num estreitamento do espaço visível. Portanto, todo recorte da totalidade só pode ser visto pela invenção do conceito, tarefa pela qual o filósofo se dedica com o gesto de um pintor. Ora, se o pintor é capaz de criar paisagens no refinamento de um gesto na dramaticidade de um pincel cheio de tinta, o filósofo faz o mesmo nomeando os fenômenos naturais e sociais com o uso da invenção dos conceitos. Esse tratamento, dado ao pintor que recorta um pedaço da cena em movimento da paisagem, escrevendo toda topografia do instante, o filósofo (a) desarruma o que entendemos como cotidiano e habitual, mostrando o que está por trás das coisas, aliás, o invisível se faz visível no último gesto de assinar as coisas sem nome do mundo. As coisas sem nomes são as mais belas, pois elas residem toda véspera do ser enquanto ser, indo mais profundo, à antessala do acontecimento, onde a filosofia estaria observando tudo antes do nome demarcado pela linguagem. Desse modo, gesto, verbo latino gerere/gestum, significa basicamente “portar sobre si”, “por em movimento” ou “carregado e trazido consigo”, portanto, trazer para si. No caso da pintura, se expressa pela via do gestual da cor, por exemplo, no Barroco de Caravaggio e no expressionismo de Pablo Picasso, onde coisas, paisagens e mulheres são efeitos da trama da cor. A cor e o gesto da pintura intensificam toda animalidade contida no excesso da emoção. Pois bem, do que estaríamos tratando, se faz que o gesto filosófico seja a assinatura conceitual expressa pelo filósofo ao mergulhar nas dúvidas encontradas no mundo. No que tange isto, seria sua insuportabilidade de lidar com coisas que estejam ocultadas pelo silêncio e espaços ainda não iluminados pela luz do conceito. O conceito, como gesto, ilumina aquilo que se mostra, tudo está à mostra no interrogatório das ideias. Platão, por exemplo, construiu uma máquina filosófica, onde as coisas vistas na realidade concreta estariam submetidas e reféns em ideias não vistas no campo da visualidade do senso comum. Mas tudo é comum, mergulhado no comum, a questão se faz presente no momento em que o filósofo (a) disponibiliza suas ferramentas conceituais para traduzir o senso comum em modo de subverter o impossível no possível. De outro modo, é no tecido conceitual comum que o filósofo cria um rasgo, clarão, miragem, parto, facada para o nascimento do conceito. E todo nascimento é sempre uma dor admiravelmente espantosa. Assim, para Aristóteles em seu gesto filosófico, a filosofia surge do espanto – do latim expaventare, de ex-, “para fora”, mais pavere, “tremer de medo”, ligado a pavor, “pavor, medo”. Com isto, a vida é arte de provocar espantos diante do campo das guerras epistemológicas. Os filósofos (as), por sua vez, se entregam na intensidade de explicar o que faz sua existência no existir, no localismo onde suas ideias são construídas no embate conceitual. Por hora, os conceitos são sempre inacabados, pois estão em processo de experimentações. Digamos, que cada conceito é um labirinto ou laboratório de experimentar questões no mundo político e social, isto é, nos conceitos temos ferramentas que são máquinas de guerra no enfrentamento do campo conceitual em disputa. Assim, como um povo se lança para uma guerra, os conceitos vestem todo arsenal bélico de como criar estratégias para defesa e o ataque. Na medievalidade judaica- cristã, os reis usavam o xadrez com o auxílio dos filósofos para especializar o uso gestual da guerra. Não para tanto, a atividade do filósofo (a) era projetar os problemas que o destino humano não saberia lidar com a perda e vazios diante do resultado ou até mesmo o triunfo. João VI, no caso brasileiro deposita em José Bonifácio, filósofo iluminista, toda capacidade de como gerir o império à deriva gerando ali uma nova geopolítica no mundo Atlântico-Europeu. Mas, por outro lado, Bonifácio coloca a ideia de Brasil fora do Brasil, criando uma ideia que ainda não foi forjada pelos brasileiros. Com efeito, agir e pensar nos revela o verdadeiro sentido do conceito ao visualizar o desenho de uma sociedade em curso. Cada “brasileiro” teria uma ideia original ou forjada de Brasil. O Brasil não é um conceito construído pelos brasileiros, e sim uma máquina política de como os colonizadores nos definiram. Mas, afinal, por que os conceitos encontram os filósofos (as)? Tal questão nos mostra que só o conceito produz realidade no sentido de dar materialidade às ideias. Se o Brasil é uma abstração filosófica no ponto de vista de uma falsa história, qual conceito nos válida na totalidade de um sistema-mundo? No entanto, essa validação de como as ideias se constroem, nos auxilia a ver melhor a totalidade?
Dessa forma, a totalidade precisa ser visualizada pela via dos conceitos numa tentativa de expor naturezas do invisível, como o espanto do filósofo Cartola ao se encontrar com as rosas no jardim de Dona Zica. Teríamos ali, um convite do pensamento disfarçado de rosas, gerando no filósofo toda disponibilidade do pensar. O encontro estético entre rosas e Cartola trazem um novo impacto no mundo visível, o poeta diante de seu analfabetismo existencial é chamado para falar o que o silêncio das filosofias das técnicas não seria capaz de dizer. Dona Zica filósofa do nascer e fazer beleza, numa certa manhã põe um microscópio no mundo e faz Cartola enxergar melhor o que tinha brotado no fundo quintal, o espanto imediato do poeta e paciência de um sábio medieval de Zica mostra o brutal e misterioso encontro da beleza. O jardim de Zica é o recorte da totalidade, engenharia plena do fazer dos orixás. Rosas, Zica, Cartola e Jardim são fragmentos da totalidade e visualizada pelo analfabetismo do espanto em Cartola. Contudo, Cartola não fala, mas as rosas dizem ao poeta se o mesmo seria capaz de se tornar poeta-filósofo, tarefa dada por intermédio do quintal de Zica. Com relação ao argumento, quintal é uma palavra oriunda do árabe e do latim, significa espaço aberto adjunto a uma casa, já na filosofia “grega”, logos é palavra, ou seja, casa da linguagem, em Zica teríamos a manutenção e o zelo pela linguagem. O papel de ambos seria cuidar do uso da linguagem, conceito recortado no uso da TOTALIDADE.
Consideremos agora, o problema inicial, o último gesto, sendo a assinatura do filósofo (as) ao criar o conceito enquanto singularidade e um modo de dizer, explicar, entender e problematizar suas experiências pela via da EXISTÊNCIOGRAFIA. Mas, poderíamos perguntar o que é isto? A singularidade da existência individual dos filósofos (as) trazem uma escritura regional, local e biográfica que fazem eles (as) escolherem seu repertório ao ler e interpretar o que a vida, em seus diversos contextos, se disponibiliza dizer ou sentir.
Assim, como Elza Soares, a mulher do fim do mundo, do gemido, da fome cria um grito estético sendo um canto de liberdade para o povo preto. Na filósofa Elza, a mesma diz que sua existência é oriunda do planeta fome, onde sua dor é imensa como a solidão do mundo. Ir ou vir no fim do mundo, nos traz as filosofias da beira do mundo, já enunciadas pela filósofa do lixão Estamira, ao dizer: – “Eu sou à beira do mundo”, “Estamira está em todo lugar”, e “ todos dependem de mim”. Diferentemente de tudo, nessas filósofas pretas, temos uma existênciografia, – De fato, a dor da mutilação existencial, tendo como base a escravidão negra, induzindo aos processos de novas subjetividades para entendermos o que é ser mulher preta no Brasil nas periferias do Brasil quase ocidental.
Quase ocidental, no sentido de não sabermos o que é o Brasil e os brasileiros fora das lógicas demarcadas pelas filosofias do mundo Europeu. Essa analogia, de sermos à beira do mundo dito por Estamira a filosofia do lixão de Caxias, periferia da Cidade do Rio de Janeiro e o Canto de Elza, definem um novo eixo de criar conceitos, pois, em ambas, a voz e o gesto se fundem ao contexto, definindo uma ocupação na existência.
Na verdade, o uso dos conceitos, faz dos filósofos (as) um arquiteto e engenheiro do lugar. Deste lugar, existe o lócus da resistência, do fazer mundo pela via do gesto filosófico. Neste enunciado, poderíamos examinar na cantora Gal Costa, onde sua voz é o instrumento da criação, cavalo do texto poético. No agudo de Gal cria-se um grito da existência, um berro, gemido, fúria ao incomodar os ouvidos bloqueados pela burrice da razão. Nesse encontro em surdez do mundo, texto poético e instrumento de guerra ensurdecedor, no grito: – Meu nome é gal, o mundo organizado de Kant, é obrigado entender que existe um modo GAL no mundo, ou seja, uma singularidade conceitual, – uma GALSOFIA, filosofia de Gal, o jeito de Gal.
Como vimos anteriormente, filosofia é o modo de ser, modo de dizer algo, é aquilo que é próprio. Dos filósofos pré-socráticos à Estamira, só pode ser filosofia aquilo que seja inventado de modo original pelo próprio. Tanto que em Heráclito e Parmênides, ambos falam do fenômeno do ser a partir das experiências acumuladas por observar a manifestação da physis – natureza – totalidade. No agudo agulha de Gal, a galsofia de faz do modo de fazer Gal. Diríamos de um outro modo, a voz de Gal (poetisa) avisa ao mundo de onde e o que é Gal. Cada filósofo (a) traz, nas suas questões, o jeito de ler o que se mostra. O visível se faz invisível. A filosofia guarda o conhecimento que o espanto mostrou, nos alerta Agatha Vianna, minha aluna de 9 anos no livro Tudo é filosofia, publicado em 2016 pela editora Hexis.
Esse argumento, no entanto, por si só, guardar o conhecimento e encontrar com os conceitos possibilitam o que na filosofia se chama de philia, amizade pelo desconhecimento, onde Gal buscava seus agudos sônicos, Elza no gemido da fome, Zica e Cartola no atravessamento das rosas e a beira do mundo de Estamira. O fazer filosófico está em tudo no sentido que exista uma disponibilidade do fazer das coisas. Como disse Paulinho da Viola numa entrevista no canal Cultura (2005), – Eu escolhi fazer filosofia, sem ela não há vida. Encontro na vida todas as notas de fazer samba. Portanto, temos em Paulinho uma abertura de fazer samba, de fazer vida e encontrar no movimento o exercício de fazer filosofia e de estar no estado filosofante. Recorte do pensar aquilo que seja próprio.
É realmente possível fazermos tal “escolha”? Ou, a filosofia que nos escolhe? Somos nós que escolhemos nossos ancestrais? Nossos orixás e guias? Talvez, a resposta seja desnecessária. Porém, são em nossos encontros de atravessar e sermos atravessados pela vida que o hábito de criar e fabricar conceitos se constroem. No livro, O que é filosofia? Deleuze diz que o filósofo(a) tem a tarefa interminável de elaborar conceitos. Entretanto, o filósofo (a), precisa agenciar com a vida os momentos oportunos. Diríamos, só criamos conceitos quando houver necessidade. Em Cartola, a necessidade estaria no encontro das rosas com o brutalismo da beleza, em Gal um ruído alto e estrondoso, e em Viola timidez do verbo ouvir.
Nesse sentido, reconhecemos então, que o último gesto do filósofo (a), após ter sido atravessado pelo campo bélico dos conceitos, seria se render ao trabalho do ourives, assim como do escultor de lapidar o brutalismo do concreto em formas conceituais. Bellicus, advém de bélico, guerra, armadilha que se esconde. No mundo românico, beleza é oriunda do mesmo radical, isto é beleza, é aquilo que se esconde da armadilha da beleza minado pelo campo de guerra. O conceito, por sua vez, só pode ser encontrado se o filósofo (a) se permitir atravessar do campo bélico da guerra do efeito plástico. Plástico, no sentido de plástidade, aquilo que se molda, móvel e transformado para algo.
Cabe ao filósofo (a), se armar para guerra do plástico – a disponibilidade das coisas estarem na véspera de produzir o grande acontecimento da criação, o conceito é apenas o último gesto da síntese do filósofo (a), tendo nele horas, séculos e durações de trabalho, assim como o mestre de obra ergue um desenho ilógico na beira de um valão de favela, fazendo do impossível se tornar possível.