Mitos Cosmogônicos II – O nascimento do mundo segundo Acádia*
ARTIGO /
Dando continuidade à publicação de mitos tradicionais de criação do Universo, exibimos neste número trechos da apresentação de Paul Garelli** e Marcel Leibovici*** também proferida no encontro ocorrido em 1959, na França, onde se juntaram antropólogos, arqueólogos e historiadores.
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GÊNESE DO MUNDO
Apsu e Tiamat
No começo, não existiam céu nem terra; ou para retomar a fraseologia antiga que admite a identidade do nome e da coisa significada, nem o céu nem a terra tinham nomes. Só, uma matéria indiferenciada se estendia em toda a eternidade, as águas primordiais. De sua massa, extraíram-se dois princípios elementares, Apsu e Tiamat, sobre a natureza dos quais estamos informados por outras fontes.
Apsu, considerado como uma divindade masculina, representa a massa de água doce sobre a qual flutua a Terra. Ele nasce no Oriente, perto das montanhas do Sol, e rodeia o mundo como um rio circular. É ele que alimenta nossos cursos d’água. Quanto à Tiamat, ela é o mar (em babilônico tâmtu,tiamtu), o abismo de água salgada de onde saem todas as criaturas. É uma divindade feminina, mas alguns comentários lhe dão uma imagem mais complexa. Um texto de Assur afirma que tem quatro olhos e quatro orelhas, o que significa provavelmente que possui uma natureza duas vezes superior àquela dos outros deuses. Marduk também será dotado dessa dupla dimensão. Mas, além disso, aqui ela é um ser andrógino. “Em cima”, segue o comentário de Assur, “ela é Bel; embaixo, Ninlil”. Ninlil é a esposa do deus Bel. E Tiamat, que participa das suas duas naturezas, é então ao mesmo tempo macho e fêmea. Mais estranho ainda é a sequência do comentário: “Um camelo é o fantasma de Tiamat. Bel arrancou-lhe os chifres. Ele lhe cortou os chifres e arrancou o rabo”. Sem dúvida, o espírito de um morto não é o decalque do vivo. O mesmo texto descreve o fantasma de Enlil sob a aparência de um burro selvagem, e o fantasma de Anu sob a de um lobo, embora estas divindades nunca sejam representadas dessa forma. Mas se o fantasma de Tiamat se parece com um camelo, com a ablação dos chifres e do rabo, estamos inclinados a supor que estes dois acessórios lhe pertencem.
Em seguida, na teologia do Kalu, as forças do caos primordial serão assimiladas aos infernos. Um texto de conteúdo esotérico afirma que “Ea se parece com Apsu, Apsu é o mar, o mar é Ereshkigal”, rainha dos infernos. Sem dar muita importância a esses textos esotéricos, às alusões muitas vezes obscuras, e que ecoam em outras especulações teológicas, não devemos esquecer, porém, que o poema da criação considera Tiamat como um monstro. Ela é de fato chamada de um koubou , isto é, um feto.
O feto expulso prematuramente podia tornar-se um demônio malvado. Numerosas estatuetas representando demônios têm o crânio com bossas, como se os ossos ainda não estivessem soldados. Tiamat é um feto, mas um feto de dimensões cósmicas. Ela é o embrião do mundo. E se a potência divina, somente ela, independentemente de sua natureza, lhe permitia criar monstros, é possível que essa temível prole tenha sentido uma herança um pouco pesada, mas nada prova peremptoriamente que ela tenha sido um dragão, uma serpente gigantesca. Esta concepção nasceu das representações figuradas que reproduzem frequentemente o tema da luta contra o dragão. Infelizmente, a Mesopotâmia é a terra de eleição dos deuses e dos monstros, de modo que nenhuma cena pôde ser interpretada com certeza. Só o tema geral é atestado. É tentador acreditar que Marduk e Tiamat aparecem em tal ou tal cilindro. Não podemos dizer em qual.
Mummu
Ao lado de Tiamat, o Enuma elish menciona Mummu. Trata-se de uma terceira personagem ou de um epíteto de Tiamat? As duas hipóteses foram levantadas pelos assiriólogos, e não saberíamos afirmar se o problema está resolvido nos dias de hoje. Ligando a palavra à raiz semítica amu, “falar”, pensou-se em fazer de Mummu uma espécie de “Verbo”, originário do casal Apsu e Tiamat. Quiseram fazer dele um “criador”, considerando o nome como repetição da raiz suméria MU(D): “criar”. Associado à agua doce e à salgada, poderia ter sido a bruma de evaporação flutuando sobre os elementos primordiais, mas alguns tradutores voltaram recentemente a uma concepção antiga segundo a qual Mummu seria um epíteto de Tiamat, significando “o mar”. Neste caso, a palavra seria independente do nome de mensageiro de Apsu.
OS DEUSES PRIMITIVOS
Apsu e Tiamat, as águas doces e as águas salgadas, tal é o casal primitivo donde nasceram os outros deuses e elementos do mundo. Sobre a segunda geração, Lakhmu, Lakhmu, não sabemos praticamente nada. Mas o marcante é que esta gênese parece realmente ser evolutiva. Épocas passam, de fato, em que se elaboram os esboços de deuses. E, então, surge um terceiro casal, superior aos anteriores, Anshar e Kishar, cujos nomes significam, em sumério, “totalidade do céu” e “totalidade da terra”. Agora estão destacados os principais elementos do cosmos, mas não as grandes figuras do panteão clássico. Longos anos ainda serão necessários para isso. Finalmente, eis Anu, o deus do céu, que pode rivalizar vantajosamente com os pais. Nessa fase, um dos termos do processo evolutivo é atingido: os deuses clássicos estão aqui. Se o filho de Anu, Nudimmud, supera os pais em sabedoria e força, não há entre eles uma diferença de natureza. Nudimmud é o reflexo de Anu, que era o semelhante de Anshar. A diferença é antes quantitativa, e, na verdade, teológica.
Os babilônicos reverenciavam uma tríade suprema composta por Anu, Enlil e Ea. Anu reinava sobre o céu, Enlil, sobre a terra, Ea, sobre as águas. São eles que aparecem a partir da quarta geração divina. Anu é o chefe da linhagem; Ea se dissimula sob o epíteto sumério de Nudimmud, “o procriador” – é ele, de fato, que criará o homem, e a sequência da narrativa mostrará como se tornou deus das águas. Mas Enlil está faltando, apenas raramente será citado no poema, e como se por inadvertência. A razão disso é que Marduk, filho de Ea, absorveu inteiramente sua personalidade, e, na tríade canônica, os teólogos do Enuma elish substituíram a trilogia Anu, Ea, Marduk. Esse trabalho de elaboração teológica nunca foi interrompido no curso da história religiosa da Mesopotâmia. Uma rede complexa de equivalências e filiações foi tecida entre as divindades sumérias dos antigos santuários e seus descendentes semíticos, de acordo com as exigências dos diferentes centros. Babilônia se une diretamente à cidade santa de Eridu, cujo deus Ea é ao mesmo tempo deus das águas, da ciência e da magia. Marduk aproveitará tão bem seus conhecimentos que Ea poderá lhe dizer, na hora de certas operações mágicas, “meu filho, o que ignoras? O que posso acrescentar? Aquilo que sei, tu sabes também”. É a estreita relação entre Babilônia e Eridu que explica o ascendente de Ea-Nudimmud no Enuma elish. Ele é o precursor do babilônico Marduk. No norte da Mesopotâmia, as especulações serão a favor do deus nacional Assur, e Marduk por sua vez desaparecerá das versões assírias.
A CRISE
Não há crescimento sem crise. Este mundo não está concluído, porque um desequilíbrio se acusa entre as potências primitivas e as forças novas. Os jovens deuses se agitam e seus movimentos, sob o véu pudico das alusões, parecem um pouco indecentes. Léo Oppenheim não hesita em reconhecer nessas atitudes o tema do incesto primitivo. É possível, mesmo que alguns versos, que poderiam comprovar esta concepção, estejam corrompidos e com sentido conjectural. Em todo caso, Tiamat não fica insensível à sua demonstração, nem seu marido Apsu, que decide, apesar das objurgações furiosas da esposa, eliminar seus descendentes. Mas os motivos alegados por Apsu para justificar sua decisão estão sem relação com as intenções supostas da jovem geração: os gritos o impedem de dormir! Seria pudor de escriba? Junção desajeitada de fontes diferentes? Talvez um e outro. Entretanto, veríamos de bom grado, nesse traço, uma alusão à natureza cósmica da personagem. De fato o autor não ignora que os atores do drama, por mais antropomorfizados que sejam, continuam sendo forças naturais. Esta característica particular dos mitos aparecerá adiante com evidência, mas queríamos assinalar desde já que a exclamação aparentemente pueril de Apsu pode traduzir uma realidade física evidente para um espírito babilônico: o horror das águas abissais para toda a agitação.
Marduk
Como em todo drama que se preze, a conspiração é desvendada. Consternação no campo dos jovens deuses. Felizmente, Ea vela. Apontando para Apsu suas armas mágicas, ele o mergulha no torpor, o mata e arroga suas prerrogativas. Doravante, Ea será o deus das águas. É nesse lugar venerável, ao qual Ea dá o nome de sua vítima, no apsu, que nasce o herói Marduk. Sua inteligência, seu tamanho e seu vigor o designam de imediato como futuro rei do universo. Anu completa essa rica natureza dobrando todas as suas faculdades. Marduk goza de um quádruplo olhar e de uma quádrupla audição, lugar do entendimento. Sua silhueta parece então evocar a de um Janus bifrons, mas esta descrição talvez seja apenas um procedimento literário destinado a traduzir que ele é duas vezes superior a cada deus e que abraça de um só movimento sensorial “as quatro regiões”, isto é, a totalidade do mundo. Marduk, no poema, é uma figura solar. Claramente designado no nascimento pelo qualificativo de “Sol, sol dos céus”, simboliza essencialmente as forças de renovação que se manifestam na primavera.
A ruptura
Secundado por tal campeão, Anu retoma o empreendimento dirigido contra Tiamat. E é aí que o processo próprio ao mito aparece mais claramente. O autor quer explicar a origem do mundo, o papel dos deuses e dos homens, mas em vez de abstrair, ele concretiza, com a ajuda de um drama antropomórfico. Porém, não perde de vista a realidade expressa por cada personagem, e sua exposição brinca constantemente sobre esse duplo registro alegórico e real, esboço do pensamento filosófico. Tiamat é o mar. Ora, como perturbar o mar, senão por uma tempestade? Anu cria então os ventos, e Tiamat rola em suas primeiras ondas. Os deuses primitivos, em sua existência larvária, não podem suportar tal regime. Os fundamentos do mundo vacilam, o desequilíbrio entre forças antigas e novas só poderá se resolver com uma solução de força, ou seja, por uma diferenciação decisiva. Tiamat, apressada em pôr fim, se decide pela luta. Ela cria um exército de monstros, encabeçado por Kingu, que escolhe como novo esposo.
Choque decisivo
Um universo em expansão, fervilhante de monstros polimorfos, dilacerado por forças divergentes, tal é a impressão que se destaca da primeira tábua do Enuma elish. É esse caos que Marduk vai estabilizar, ordenar, harmonizar. Mas o poeta aqui retoma seus direitos. O encontro decisivo será antecipado de múltiplos episódios poupando os efeitos dramáticos, onde se repete como um pedaço de bravura a descrição dos preparativos de Tiamat, onde os deuses desencorajados, após uma demonstração da potência mágica de Marduk, entregam seus destinos em suas mãos. A tábua IV marca a reviravolta decisiva, e é aí que se situa o encontro de Marduk e Tiamat e a vitória do campeão dos jovens deuses. A partir da criação espontânea e anárquica das forças brutas do cosmos, se substituirá a organização da inteligência.
O CÉU E A TERRA
É o corpo de Tiamat que serve para formar o universo. A imagem evocada é aquela do peixe seco que compartilhamos. Uma metade se torna o céu, a outra metade, a terra. No céu, Marduk constrói um palácio correspondendo àquele de apsu e regula a marcha das estrelas, consideradas como as imagens dos deuses. O começo da tábua V é consagrado a essa regulamentação. É um verdadeiro tratado de astronomia, no qual o autor expõe tudo que se sabia na Babilônia sobre as constelações, a determinação do eclíptico, a conjunção dos astros, as fases da lua, os signos do zodíaco. Infelizmente, essa tábua está em mau estado. Fragmentos recentemente descobertos preenchem apenas parcialmente as lacunas, e sua interpretação ainda continua delicada. Vemos, no entanto, que depois de ter ordenado o céu, Marduk se ocupa de estabilizar a terra. É sempre o corpo de Tiamat que constitui a matéria primeira dessa grande obra. Com Tiamat tendo sido dividida, Marduk reúne a metade superior de suas águas nas nuvens. Depois, utiliza os diferentes órgãos para modelar a fisionomia deste mundo. Dos seus olhos, escorrem o Tigre e o Eufrates. As montanhas se acumulam sobre seu peito. Seu rabo torcido em “ligação do céu e da terra” marca o umbilical do mundo, que encerra na sua rede.
O HOMEM
Enfim, Marduk termina sua obra definindo o estatuto dos deuses. É para essa proposta que cria o homem. O homem não é, então, a coroação do universo, mas uma de suas engrenagens, e sua aparição responde a uma dupla finalidade. Por um lado, assegurará o serviço divino pelo culto e pelos sacrifícios, por outro lado, libertará os deuses vencidos da ameaça de morte que pesa sobre eles, assumindo no lugar deles esta condição precária, pois esses que abraçaram o partido de Tiamat esperam sempre, aos prantos, o castigo. Marduk aceita agraciá-los sob a condição de que um entre eles pereça! Os deuses, gratos, erguerão em sua homenagem Esagila, o templo babilônio.
Marduk é compassivo. Na tábua VII, ele é chamado:
“Mestre do encantamento sagrado, que ressuscita os mortos,
Que teve piedade dos deuses acorrentados.
Livrou os deuses, seus inimigos, do jugo imposto,
E, para salvá-los, criou a humanidade”.
Mas ele só pode livrar os deuses de suas faltas e da morte transmitindo este miasma a um sacrificado substituto. É a doutrina do resgate por transmissibilidade e a confissão da falta, que dá todo o sentido a esse trecho. Com uma bela unanimidade, os vencidos, muito felizes por escaparem sem danos, deixam denunciarem Kingu. Na verdade, o infeliz encontra enfim sua destinação verdadeira. Ele personifica, de fato, as forças de destruição, e sua entronização por Tiamat, totalmente comparável à entronização de Marduk, o predestinava ao papel de bode expiatório. Ele comparece então diante de Ea, que trincha suas veias e, de seu sangue, cria o homem. O homem não é, portanto, à altura do nascimento, um ser inocente e puro. Em suas veias corre sem dúvida o sangue de um deus, mas de um deus culpado e condenado. É um sangue viciado que carrega o pecado e a morte. O homem, definitivamente, assume o castigo de um crime que não cometeu. Foram os deuses que soltaram no mundo o casal Pecado-Morte. O primeiro pecado surgiu na resolução de Apsu e Mummu, e os “deuses irmãos” foram, assim, forçados ao crime. Foi pelos deuses que o mal entrou no mundo, e não saberíamos opor a pureza divina à imperfeição humana. Os dois planos não são separados, pois esse mundo forma um todo.
COSMOGONIAS SECUNDÁRIAS
Mas o Enuma elish não é a única coletânea onde se encontram expressas as concepções cosmogônicas acadianas. Vale a pena comparar ao grande poema outras tradições que circulavam na Mesopotâmia. Um traço comum logo surpreende: nenhum desses textos constitui um tratado puramente dogmático. Vimos que o poema da criação era recitado na festa de ano-novo e fazia parte de seu ritual. As outras cosmogonias representam a parte explicativa ou justificativa de rituais e encantamentos. Contudo, nessas cosmogonias secundárias, as grandes etapas da criação são resumidas seguindo as exigências do ritual do qual fazem parte. É assim que a narrativa da criação do mundo por Marduk insiste por duas vezes, na introdução e na conclusão, sobre a criação dos templos: é um encantamento recitado para a purificação de Ezida, templo do deus Nabu em Borsipa. A narrativa da criação por Ea, depois de uma breve alusão à formação dos céus e de apsu, chega diretamente à aparição de Kulla, deus do tijolo: ele faz parte do ritual de restauração dos templos. Quanto ao encantamento do verme, que era recitado durante as operações dentárias, lembra os diferentes estados de formação dos elementos, para combater o mal até nos seus antecedentes.
ENCANTAMENTO POPULAR
Uma particularidade deste encantamento merece ser destacada. Os elementos aparecem durante uma verdadeira ‘reação em cadeia’, cujos termos são Anu e o verme. O mesmo procedimento se encontra em outros encantamentos, como este aqui:
“Encantamento. No começo, antes da criação, o canto do trabalho desceu sobre a terra. O arado semeador produziu o sulco; o sulco, o germe; o germe, o rizoma; o rizoma, o nó; o nó, a espiga; a espiga, o esporão; O deus Sol colheu. O deus Lua respigou. Enquanto o deus Sol colhia, que o deus Lua respingava, o esporão entrava no olho do homem. Sol e Lua, fiquem aí, para que o esporão saia”.
Um encantamento similar sucede: terra-lama-caule-espiga-esporão. Este procedimento é próprio aos encantamentos populares. A origem, que seja Anu ou a terra, é um absoluto que não requer explicação. Mal podemos falar de cosmogonias nesse caso. O oficiante lembra rapidamente a origem do verme ou do esporão, para poder alcançar o mal até os fundamentos finais: o objetivo perseguido não é didático.
PERMANÊNCIA DAS TRADIÇÕES
Os outros encantamentos, mais elaborados, guardam a lembrança das grandes tradições sumério-acadianas, sobretudo o mar primitivo, a separação do céu e da terra, ou a criação de Apsu por Nudimud. Um detalhe original é fornecido pela narrativa da criação de Marduk. O deus, para produzir a terra, tece uma tabuleiro de junco que salpica de poeira: concepção típica de um país pantanoso, onde verdadeiras ilhas flutuantes provindas da acumulação de vegetais aquáticos, os ‘cestos’ dos geógrafos, carregadas de poeira transportada pelo vento, se transformam pouco a pouco em terra firme.
AS DIVERSAS CRIAÇÕES DO HOMEM
Em todas essas cosmogonias, o homem é criado para o serviço divino a partir do sangue de um ou de vários deuses imolados. Os ‘criadores’ são Marduk e Ea, substituídos em algumas tradições pelas divindades femininas Aruru, Mami, Nintu ou Ninhursag, que são todas hipóstases da Magna Mater: Belet Ili, a senhora dos deuses. A criação de Mami conta, além disso, que ao sangue foi misturado argila:
“Que imolemos um deus
E os outros serão purificados pelo julgamento.
Que a sua carne e ao seu sangue
Ninhursag misture argila.
Deus e o homem
Serão assim… reunidos na argila”.
O mesmo texto, infelizmente fragmentado e de difícil interpretação, conta em seguida como procederam Ea e Mami. Depois de ter recitado um encantamento, a deusa:
“Pegou quatorze punhados (de argila): ela colocou sete punhados à direita.
Ela colocou sete punhados à esquerda. No meio, ela pôs um tijolo.
Ea, ajoelhado sobre uma esteira, abriu o umbigo (das estatuetas de argila).
[…ele] chamou as esposas sábias.
Dos dois grupos de matrizes, sete produziram os homens.
Sete produziram as mulheres.
A Matriz (= a deusa) que cria os destinos
Os completou em pares.
Em pares, ela os completou na sua frente.
Mami desenhou formas humanas”.
Um texto bilíngue conta que o homem foi criado em um espaço consagrado, Uzumua, que é “a ligação do céu e da terra”. Esta ligação, que é o ponto de junção das duas faces do cosmos, é o epíteto pelo qual se designa com frequência Nippur e Babilônia na geografia mítica. Segundo o Enuma elish, esta “ligação” é o rabo torcido de Tiamat. Vemos que as concepções expostas no Enuma elish, sem serem sempre tão explícitas, subjazem todos esses textos. E quaisquer que sejam as divergências de detalhes, a visão de conjunto que se tira é muito coerente.
UNIDADE DO COSMOS
O universo forma um todo. Não existe demiurgo exterior ao mundo. São os deuses que constituem a matéria cósmica eterna. Então, sua aparição não é, inicialmente, uma criação, mas uma diferenciação de elementos confundidos em um único todo. Tudo parte dos deuses e gravita em torno deles. O universo só existe por eles e para eles. O céu e a terra são suas moradas; as estrelas, suas réplicas. Os homens, criados de seu sangue, fornecem sua manutenção e assumem, por sua morte, a sobrevivência dos deuses revoltados. Babilônia é apenas o lugar de sua estadia. O mal mesmo não lhes é estrangeiro. Ele emana também diretamente do casal primordial. O cosmos inteiro encontra o equilíbrio em uma globalidade teocêntrica, onde o profano é absorvido pelo sagrado. Este equilíbrio é assegurado a cada ano por uma renovação do ato criador de Marduk. Como o ritual de parto implica uma verdadeira recriação do homem por Ea e Mami, também as cerimônias do ano-novo repetem a criação de Marduk. Recitamos sua proeza para colocar em obra a eficácia da palavra, reforçando-a pela representação de alguns episódios. Assim, a cada ano, a morte de Tiamat coincide com o triunfo do Sol primaveril que dirige o mundo através de uma criação contínua.
Não se trata aqui da eficácia do Verbo criador. A ação do Verbo não se manifestou na criação do cosmos, mas em alguns episódios mágicos. No início da Tábua IV, por exemplo, Marduk fará aparecer e desaparecer uma vestimenta, ao seu comando.
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* Trecho adaptado do texto La Naissance du Monde selon Akkad, em La Naissance du Monde, de Anne Marie Esnoul et al. – Éditions du Seuil, França,1959.
**Paul Garelli – Arqueólogo e assiriólogo inglês.
***Marcel Leibovici – Arqueólogo e assiriólogo canadense.