Jorge Luis Borges e as Lógicas de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio

 

O Espelho

Quando menino, eu temia que o espelho

Me mostrasse outro rosto ou uma cega

Máscara impessoal que ocultaria

Algo na certa atroz. Temi também

Que o silencioso tempo do espelho

Se desviasse do curso cotidiano

Dos horários do homem e hospedasse

Em seu vago extremo imaginário

Seres e formas e matizes novos.

(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)

Agora temo que o espelho encerre

O verdadeiro rosto de minha alma,

Lastimada de sombras e de culpas,

O que Deus vê e talvez vejam os homens.

 (Borges, 2009)

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Introdução

Jorge Francisco Isidro Luis Borges, escritor e poeta, nasceu em Buenos Aires em 1899. Em 1914 sua família se muda para a Suíça e só retorna à Argentina em 1924. Em 1986, ele morre em Genebra, na Suíça. Seu trabalho, que lhe rendeu inúmeros prêmios, foi fartamente traduzido, e publicado nos Estados Unidos e na Europa. Borges é conhecido por sua literatura fantástica, falando de labirintos e criaturas mágicas, de mistério e do simbólico. Em vários de seus textos o autor aborda temas relacionados ao infinito e ao tempo, e, talvez, por esta razão, seja um autor que, apesar de não tratar especificamente de temas relacionados às ciências, seja muito citado no meio científico. Em vários momentos de sua produção literária, Borges insinua o duplo, a indefinição do ser e o paradoxo. A partir desta observação, percebi que seria possível situá-lo no sistema lógico quinquitário de Sampaio, como exemplo genuíno da Lógica da Diferença. Segundo Sampaio, é na Lógica D que se situa o indefinível, o inconsistente, o inconsciente. A lógica D pode ser entendida como a lógica do questionamento, característica muito presente na obra Borgeana. O pensamento de Heráclito (540-470), “nenhum homem atravessa um rio duas vezes” e “ser e não ser são e não são o mesmo”, que faz deste pensador “o homem do paradoxo”, pode ilustrar a indefinição do ser, característica da Lógica D, e muitas vezes observada na obra de Jorge Luis Borges.

Sistema Lógico Hiperdialético

Segundo Sampaio, podemos entender lógica como tudo aquilo que serve ao pensar na tradição filosófica, mas também na vida corriqueira dos homens. O modo de pensar humano atende ao objeto pensado, em todas as suas dimensões constitutivas. Daí que, para Sampaio, esse modo de pensar constitui um sistema coerente de formas de pensar que define os fenômenos pelas suas cinco dimensões. As lógicas básicas do Sistema Lógico Hiperdialético são: Lógica da Identidade (lógica I), Lógica da Diferença (lógica D), Lógica Dialética (I/D) e Lógica clássica (D/D). Sobre elas reina a Lógica Hiperdialética (lógica I/D2), que dá sentido a todo o conjunto. Para Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, as representações culturais das lógicas podem ser percebidas em diversas situações. Na antiguidade, podemos perceber as diferentes lógicas nos cinco elementos de Empédocles – ar (I), água (D), fogo (I/D), terra (D²) – e estendidas por Aristóteles, com a inclusão de uma quinta essência (I/D/²), que serviria precisamente como marca distinta da humanidade; nas cores da bandeira francesa: Liberté, azul (I); égalité, branca (D); fraternité, vermelha (I/D) (Barbosa, 1998).

A lógica para Sampaio é considerada como um saber que teoriza qualquer tipo de pensamento, e tantas serão as lógicas quantas forem as formas de pensar. A partir desse raciocínio, Sampaio cria um sistema lógico quinquitário, chamado por ele de Sistema Hiperdialético. De forma bastante simplória, o sistema hiperdialético pode ser compreendido a partir do gráfico de um sistema composto por cinco partes, representado por uma pirâmide, cuja base compreenderia as quatro lógicas básicas: Lógica da Identidade, Lógica da Diferença, Lógica Dialética e Lógica Clássica, em cujo vértice superior estaria a Lógica Hiperdialética. Veja abaixo:

Figura 01 Em breves palavras, podem-se resumir as origens das lógicas e seus principais atributos, ou a que objetos cada uma delas visa, da seguinte forma:

  1. Lógica da Identidade (I): Parmênides (530-460): Consciência, temporalidade, determinação. “Pensar e ser são o mesmo”. Existe uma só resposta para tudo. “Não há mudanças no mundo. Só existe o todo no seu absoluto. Todo o resto é ilusão”. Lógica do ser em si;

  2. Lógica da Diferença (D): Heráclito (540-470): Inconsciência, fuga da identidade. “Nenhum homem atravessa o rio duas vezes. Ser e não ser são o mesmo e não são o mesmo”;

III) Lógica Clássica (I/D): Platão (428-348 a.C.). Supera o dilema entre o ser e o não ser, entre o um e o múltiplo, entre verdade em si e a opinião de cada um. Surge a ideia, ou seja, o conceito, que agrega em si a unicidade do ser e sua multiplicidade.

IV) Lógica Dialética (D2): Aristóteles (380-315): É a lógica das ciências. Agrega a filosofia grega e dá um salto à frente, o que vai gerar a ciência. Ela cria a lógica dos predicados (categoria), que criará a parte da ciência que permite a sistematização. Criação das bases do conhecimento científico. Verdade por adequação. Verdade estática que se adéqua ao objetivo; verdade por convencionalidade;

V) A partir dessas quatro lógicas formadoras da base da pirâmide se formaria uma quinta lógica, chamada de Lógica Hiperdialética (I/D/2), ocupando o vértice de seu topo. Dessa forma, o Sistema Lógico Hiperdialético incorpora as lógicas da base e a lógica do topo, permitindo todas as potencialidades do homem; sentido superior de autoconsciência, de propósito e intencionalidade, que dá sentido não apenas ao indivíduo, como também à sociedade. De acordo com o pensamento de Sampaio, a hiperdialética é inata ao ser humano, que pensa com todas as propriedades lógicas, embora nem sempre isso aconteça em todos os momentos ou em igual competência individual.

Para Sampaio, a lógica pode ser conceituada como um saber que teoriza sobre qualquer tipo essencial de pensamento, fazendo-o do modo mais sistematizado possível. Não é difícil constatar que boa parte da tradição filosófica se encaixa dentro desta concepção, e é possível caracterizar diversos pensadores sob o olhar das lógicas do Sistema Hiperdialético: 1aa

Figura 02

Borges e a Lógica da Diferença

Como a obra de Borges é muito extensa, me detive apenas em alguns contos que considero fundamentais para, através de uma análise mais criteriosa, estabelecer a ligação entre as características textuais de Borges e a Lógica D de Luiz Sérgio Sampaio. O conto “A Biblioteca de Babel” (Borges, 1944) possui características muito claras da Lógica da Diferença (D), como, por exemplo, quando Borges relata que “Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: ‘Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos’”.

Neste conto é possível perceber que a lógica D se realiza na inesgotável diferenciação que é apresentada, ora entre os livros, ora entre os homens, ora entre homem e Deus. A Lógica da Diferença exemplifica a natureza incerta e imutável das coisas e, no conto, pode ser percebida quando, por exemplo, o autor afirma que “A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis afigurou-se quase intolerável (…)”. Mesmo tendo as respostas, alguns livros são indecifráveis, provocando incertezas e apontando para um caráter paradoxal.

Em aventuras como essas, prodigalizei e consumi meus anos. Não me parece inverossímil que em alguma prateleira do Universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que seja há mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não estão para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, Tua enorme Biblioteca Se justifique (…) (Borges, 1944).

Nesse parágrafo pode-se perceber o princípio da contradição, já que a mesma governa o inconsciente e dá suporte ao duvidoso, ao incoerente e ao paradoxal. Como é possível o autor rogar a Deus se todas as respostas estão nos livros? Se a biblioteca contém todas as informações possíveis, a solução dos problemas terrenos está nos livros, independentemente da vontade divina. Fica claro o contraste corpo x espírito; real x intangível. Percebe-se o paradoxo sendo resolvido pelo “salto de fé” (Kierkegaard).

É possível perceber a inquietação de Borges com questões existenciais que afligem a humanidade quando ele estabelece um vínculo entre a literatura e os livros da biblioteca e questões que seriam explicadas por ciências que estudam o comportamento e o inconsciente humano, tais como psiquiatria, psicologia etc. Dessa forma, pode-se estabelecer uma relação de semelhança com o pensamento de Émile Durkheim, que atribui a uma entidade não empírica, chamada de (in)consciente coletivo, a principal força da sociedade, que produz consequências geradas por um comportamento coletivo, por um processo semelhante ao processo linguístico, comportamento este que tem como base a Lógica da Diferença.

Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito (…) (Borges, 1944).

Os livros existentes na biblioteca de Jorge Luis Borges apresentam “comentários dos comentários”, várias versões de um mesmo livro e falácias de livros verdadeiros. A partir dessas afirmações é possível, mais uma vez, perceber o predomínio da lógica D em seu discurso, conduzindo-nos ao contraditório, apontando para a concepção de que o mundo é uma multiplicidade de entes transitórios em constante estado de mutação, sempre diferentes uns dos outros. A Lógica da Diferença atesta que, além do um, existe o outro, tudo sendo e não sendo ao mesmo tempo.

O narrador do conto afirma que, em virtude do ambiente confuso e misterioso da biblioteca, algumas pessoas cometiam suicídios por não conseguirem encontrar respostas naqueles livros. A procura desesperada que causa o suicídio das pessoas pode ser uma forma de o autor chamar a atenção dos leitores sobre a busca por respostas que tanto afligem o ser humano, e também pode ser vista como uma forma de mostrar que, mesmo se houvesse uma biblioteca contendo todas as obras do mundo, algumas respostas não poderiam ser encontradas, prontas, em uma obra escrita pelo homem. Sigmund Freud se imbui da lógica D para estabelecer a verdade existencial do inconsciente humano. Em sua narrativa, Borges aponta, assim como Freud, para o inconsciente humano agindo, muitas das vezes, sobre o consciente, mostrando suas características paradoxais e involuntárias, sendo uma parte fundamental da mente humana.

Seguindo uma abordagem psicológica na busca de relacionar Borges à Lógica da Diferença, podemos buscar em Carl Gustav Jung, em sua Teoria da Individuação, uma forma de entender na obra de Borges uma constante dualidade comprovadora do relativismo e da fuga de identidade, características da lógica D. No processo de Individuação ocorre o progressivo desenvolvimento psicológico dos indivíduos em busca de si mesmos. Essa busca se desenvolveria entre o que cada indivíduo representa socialmente e seus conteúdos inconscientes. Na narrativa de Borges é possível percebermos uma dualidade eu-outro acontecendo em uma mesma pessoa. No conto “O outro”, Borges dialoga com um Borges de outro tempo, caracterizando uma busca de si mesmo. Para Jung uma forma de resolver a questão da dualidade e suas contradições seria fazer com que estas partes dialogassem, buscando uma melhor definição de si. Borges faz uso de metáforas para explicar a dualidade no conto: a noite, o espelho, a juventude, a velhice, os números; todos estes elementos simbólicos remetem ao duplo e insinuam a dicotomia consciência x inconsciência.

(…) o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge. – Não – respondeu-me com a minha própria voz um pouco distante. Ao fim de um tempo, insistiu: – Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha. Respondi: – Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que um desconhecido não pode saber (…) (BORGES, Jorge Luis. “O Outro, O Mesmo”. Cia das Letras-1999)

Também em “O jardim dos caminhos que se bifurcam” a dualidade da Lógica da Diferença, proposta por Sampaio, pode ser notada se entendermos o jardim como o universo e os caminhos como as maneiras de se libertar do que é preestabelecido. É interessante perceber que, na narrativa de Borges, dentro do tempo propriamente dito, coexistem outros tempos e, dentro do labirinto, outros labirintos.

(…) um sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci meu destino de perseguido. Senti-me, por um tempo, indeterminado, conhecedor abstrato do mundo (Borges, 1941, p. 101).

A imagem do labirinto e dos caminhos intrincados inspirou boa parte da obra literária de Borges, sugerindo possibilidades infinitas, que vão além do Eu.

Era uma vez um gato que vivia numa caixa… Mas não era uma caixa qualquer. Era uma caixa mágica. No seu interior encontrava-se um frasco com um pó mágico que podia ou não matar o gato. Só quando alguém abrisse a caixa é que se podia ver se o gato estava morto ou vivo (…) (BORGES, Jorge Luis-“Ficciones”-O Jardim do Caminhos que se Bifurcam. Ed. Globo,1970)

Quereria isto dizer que enquanto ninguém abrisse a caixa o gato estaria morto e vivo ao mesmo tempo? Este pensamento parece se assemelhar ao paradoxo de Schrödinger, um dos criadores da mecânica quântica e um dos principais impulsionadores da Teoria dos Universos Paralelos. O conto de Jorge Luís Borges assenta nessa teoria. Não existe um presente senão múltiplos presentes, consequência das várias opções que algumas vezes escolhemos em nossa vida. Quando precisamos tomar uma decisão, são criados paralelamente tantos presentes como o número de opções com que nos deparamos. Se multiplicarmos a isso o número de vezes nas quais somos obrigados a tomar decisões, obtemos um número infinito, não só de presentes, mas também de passados e futuros. Temos, assim, um sistema infinito de infinitas variáveis, característica da lógica D de Luiz Sérgio Sampaio.

Considerações finais

A Lógica D é, também, a lógica predominante da pós-modernidade. Émile Durkheim foi o pensador mais representativo na Antropologia da Lógica da Diferença, propondo que a sociedade se explica pelo seu (in)consciente coletivo. O inconsciente não é algo identificável e não está em nenhum sujeito em si, mas pode ser entendido no coletivo. Como o coletivo não tem capacidade de autorreflexão, não pode ser regido pela lógica da identidade. Por esta razão, os durkheimianos acreditam que esta forma de pensar, fora do que é só perceptível, poderia explicar os eventos sociais.

Existe uma estreita relação entre pensar e ser, entre a realidade e as lógicas, tudo visto sob a ótica de Sampaio. A partir desta constatação é possível vislumbrar uma enorme gama de possibilidades de entender melhor o homem e sua relação com a realidade. Nas palavras de Mércio P. Gomes, autor de uma análise hiperdialética sobre antropologia,

Como consequência prática, pode-se analisar qualquer ente ou aspecto cultural, identificar sua constituição lógica e daí obter uma conceituação mais precisa e mais completa desse ente em sua dimensão identitária, sua inconsciência ou alteridade em suas origens, em suas conexões com outros entes e, enfim, em seus significados e propósitos transcendentes (Gomes, 2011).

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Bibliografia:

ROJO, Alberto. Borges e a Mecânica Quântica. São Paulo: Ed. Unicamp, 2011.

BORGES, Jorge Luis. Ficciones. O Jardim do Caminhos que se Bifurcam”. Ed. Globo,1970

BORGES, Jorge Luis. Poesia. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 282.

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia Hiperdialética. São Paulo: Contexto, 2011.

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia. São Paulo: Contexto, 2011.

BARBOSA, Marcelo Celani. As lógicas. As lógicas ressuscitadas segundo Luiz Sérgio Coelho de Sampaio. Rio de Janeiro: Makron Books,1998.

LAKATOS, Eva Maria e Marina de Andrade Marconi. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2006.

NASCIMENTO, Rubem de Oliveira. Gestão do conhecimento e imaginação literária -Uma perspectiva psicológica do duplo em Borges. Juiz de Fora: Ed. da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Sandra Mello Porto é Professora da Universidade Candido Mendes.