Dante Milano e a ambivalência de suas forças imaginantes
O que em mim sente está pensando.
Fernando Pessoa
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Eis um poeta que não pode dar-se à dispensa de apresentações. Dante Milano não consta nas principais antologias poéticas – ou é apenas brevemente citado; não está nos manuais ou nos livros didáticos; é ausência assídua nas estantes das livrarias. Fatos que, porém, não desqualificam sua curta produção poética. É um poeta, portanto, que carece de apresentação e merece uma à sua altura. Disse Carlos Drummond de Andrade, em 1987, por ocasião de sua última entrevista, concedida ao Jornal do Brasil:
A popularidade nada tem a ver com a poesia. A popularidade pode acontecer. Mas um grande poeta pode também passar despercebido. […] Dante Milano é um poeta de extraordinária qualidade que não tem a mínima popularidade. Se você perguntar a um estudante quem é Dante Milano, ele não sabe. Se perguntar quais são os melhores poetas brasileiros, ele não inclui Dante Milano. A popularidade então não tem a menor importância (apud JUNQUEIRA: 2004, p. 506).
Apesar da obscuridade corroborada e lamentada por Drummond, Dante Milano já produzia e publicava – esparsamente, em revistas e periódicos – desde 1920, quando veio a lume, pelo número 15 da revista Selecta, seu primeiro poema, intitulado “Lágrima negra”, sendo classificado como um poeta modernista. Este enquadramento, porém, tem por base aspectos meramente cronológicos, pois Dante não tomou parte do movimento modernista em momento algum, tendo apenas apoiado-o à distância. Chegou a publicar, inclusive, em 1935, sua Antologia de poetas modernos (da qual se excluiu), além de ter sido amigo pessoal de grandes artistas como Manuel Bandeira, Aníbal Machado, Heitor Villa-lobos e Cândido Portinari. Vale ressaltar, ainda, que “Lágrima negra” é um soneto em decassílabos perfeitos.
O presente estudo propõe à obra de Dante Milano uma discussão mais profunda, que vai além das questões formais. Pretende-se, aqui, explorar as imagens poéticas milanianas apreendendo suas “forças imaginantes”, balanceadas entre a transcendência e a transdescendência. Dante construiu um universo poético repleto de imagens que retornam e dialogam entre si, caracterizando uma profunda potência poética. Isto permite, a partir da leitura atenta de um dos seus poemas, desenvolver percepções que se prestem a quase toda sua obra, em certa medida. Elegeu-se, para tanto, o poema “O rio”:
A paisagem submersa, a água morta, e eu no fundo.
Mortal, sombra ou clarão, reflexo oculto
N’água como no espaço em que estou submergido,
Eu, náufrago do sonho universal,
Afundado em mim mesmo, como minha sombra no rio.
Dentro ou fora, qual é o verdadeiro afogado?
A água lívida como uma lâmina de aço,
Com lampejos cruéis e ameaças de morte,
Passa sobre mim, cortando a minha figura em pedaços.
Mas, ao passo que num espelho duro o meu outro eu me olha com ódio,
Aqui a água trêmula me fita com um olhar de mágoa
E o meu outro eu me sorri do fundo da água,
Mole, maleável como coleante ofídio.
Esse corpo sem luz como uma alma com frio
Me chama e, por entre a água enganosa do rio,
Se insinua a insidiosa ideia do suicídio.
(MILANO: 2004, p. 67)
“O rio” traz itens poéticos dos mais recorrentes na obra milaniana, resumidos pelo campo semântico do “sinistro”, do “soturno”, abordado pelo viés reflexivo e até metafísico. O elemento “água” abarca toda esta atmosfera, se considerarmos a poética da água proposta pelo filósofo Gaston Bachelard, segundo o qual “a água, substância de vida, é também substância de morte para o devaneio ambivalente” (BACHELARD, 1998, p. 75).
O primeiro verso já apresenta a água como um signo sinistro, relativo à morte. Atrelada a este campo abissal, está a paisagem refletida na água – ou nela submersa. Ao enumerar “a paisagem submersa”, “a água morta” e, só então, o “eu no fundo”, o eu-poético coloca-se sob ambas as camadas – sob o que já está submerso, potencializando as profundezas do seu próprio abismo.
Em seguida, principia-se um incessante jogo de movimentos contrários intimamente ligado ao plano metafísico, o que caracterizaria toda a poética milaniana – jogo aqui possibilitado pela propriedade especular da água. A caracterização de “mortal” dada ao “eu-refletido” é vaga e dúbia; não se sabe se este é um eu “mortal” por ser passível de morte, sendo apenas uma imagem na água, adotando postura passiva, ou se este eu assume a característica ativa e ameaçadora de ser “fatal” por alguma razão misteriosa.
O poema prossegue sem dar resposta e trazendo, ainda, nova questão: “sombra ou clarão”? Pareiam-se uma imagem transcendente e outra transdescendente, e sugere-se a coexistência de ambas no vocábulo seguinte, “reflexo” – uma evidência também dúbia, por ser um “reflexo oculto”.
Na seguinte estrofe, o eu-poético situa-se submergido tanto na água como no espaço, ou seja, tanto nas profundezas aquáticas quanto no ambiente sideral, superior, indicado pelo vocábulo “espaço”, ou ainda, tanto no espaço físico quanto no tempo – se reconhecermos ser a água, sobretudo em forma de rio, como alegoria tradicionalíssima do correr do tempo.
Nesta mesma estrofe, surge outro elemento caro a Milano: a figura marginal, o ser à parte. Mendigos, prisioneiros condenados, bêbados e náufragos: o poeta os abriga a todos em sua obra poética. Este fascínio pelos invisíveis é balanceado pelo ato de conferir-lhes grandeza e atribuir-lhes valores positivos. Este “náufrago do sonho universal” é tanto o que teve naufragado o sonho em que navegava, bem como o que, em meio à realidade hostil, agarra-se ao sonho: um sobrevivente.
O poema se constrói, assim, pelas harmonizações, contradições e integrações paradoxais dos contrários imagéticos, que se refletem no plano espiritual e emocional: na terceira estrofe, o eu-real afunda-se em si mesmo, no plano físico e real, enquanto o eu-refletido, a sombra, afunda-se no espaço onírico representado pelo rio. Na mesma estrofe, quando se pergunta sobre qual seria o verdadeiro afogado, o “dentro ou fora”, como são relatados dois afogamentos, surge outro questionamento: “dentro ou fora” de quê? Do corpo? Da água? A pergunta deste eu-poético desdobrado também se desdobra.
Após a exploração de elementos opostos que primeiro se pareiam (“sombra ou clarão”) e depois se harmonizam (“N’água como no espaço em que estou submergido”), obedecendo a um continuum de inter-relações, aprofunda-se mais o entrosamento entre os ímpetos ascendentes e descendentes, através, agora, da ambivalência de um mesmo elemento, algo apenas sugerido nos primeiros versos. Na quarta e na quinta estrofes, a água assume caráter ameaçador; torna-se “lâmina” e expressa “lampejos cruéis” e “ameaças de morte”. Esta atmosfera hostil reflete-se no reflexo, fazendo o eu-refletido, que reside na água (o “espelho duro”), olhar para o eu-físico “com ódio”.
Logo, o movimento hostil se retrai, a este se seguindo o movimento frágil e inconstante da “água trêmula”. Não mais “espelho duro”, a água é agora “mole, maleável como coleante ofídio”. O olhar do eu-refletido, outrora de ódio, é agora de mágoa – e um sorriso o acompanha. Desta forma, pode-se afirmar que a emoção do poema é regida pela matéria – no caso, a água – e por suas feições.
Adotando a água, neste movimento, feições mais pacíficas, com mágoas e sorrisos, ela torna-se consequentemente mais receptiva, mais atraente. O antepenúltimo e o último verso, contudo, alertam que há algo fora de lugar; em “esse corpo sem luz como uma alma com frio”, um elemento físico, o “corpo”, vem caracterizado por um elemento transcendente, a “luz”, enquanto um elemento incorpóreo, a “alma”, aparece atrelado a um elemento físico, a sensação térmica do “frio”, e sempre sob o signo da carência. Este desencontro sedutor chama o eu-poético, que caracteriza a água do rio como “enganosa”; ou seja, fica entre a consciência do perigo e a tentação fascinante; pensamento e sentimento nele duelam. Engendra-se, então, nova ambivalência, que culmina no último verso, em que “se insinua a insidiosa ideia do suicídio”. Um jogo de alternância entre suaves sons sibilantes como sussurros ao ouvido – /s/ e /z/ – e outros cortantes como lâminas – /d/ – reflete o caráter dúbio instaurado pela fatalidade inerente à água e pela atmosfera de embriaguez e sedução.
O devaneio do suicídio pela água, emocionalmente destrinchado no correr do poema como correm as águas de um rio, desemboca nesta tensão entre a racionalidade do temor da morte e o chamado encantador das profundezas, de onde vêm os sussurros sinistros. Esta morte irresistível, a “morte jovem e bela”, define o que Bachelard chama de “Complexo de Ofélia”, em referência à trágica morte por afogamento da personagem homônima do Hamlet, de Shakespeare. Bachelard introduz, ainda, o “Complexo de Caronte”, outro conceito relacionado à morte pela água. Neste, a morte é a travessia, bem como a água leva para longe; não por acaso chama-se o poema “O rio”. Navegando por ele, a morte espreita desde o título, insinuando-se verso a verso, e, na outra margem, apresenta-se transmutada em desejo – o suicídio.
Ivan Junqueira define Dante Milano como o poeta do “pensamento emocionado” e corrobora a afirmação de Sérgio Buarque de que, em Dante, “seu pensamento é sua forma” – e esta leitura é exaustivamente repetida nos poucos estudos existentes sobre o poeta. Que a poética milaniana é profundamente “pensamenteada”, não há como refutar, mas acrescenta-se aqui uma nova proposta, que pretende não desdizer o que já se disse, mas integrar-se a estas leituras. Como se ressaltou no exame deste poema, a ambivalência é aspecto fundamental do universo poético de Dante. Assim, parece lícito agregar à ideia de “pensamento como forma” a sua contraparte: a emoção como sua matéria e brotando desta mesma matéria – hipótese em plena consonância com a expressão “pensamento emocionado”, de Junqueira, que já insinuava os caminhos desta pesquisa ao afirmar que
Dante Milano cultiva uma poética do pensamento, o que não significa, de modo algum, que sua expressão haja renunciado à emoção. Quem nele sente, porém, é o pensamento. Em outras palavras, sua poesia busca […] transformar o ato de sentir em emoção pensada, e o ato de pensar em reflexão sentida (JUNQUEIRA: 2004, p. XLIX).
O eu-poético milaniano, portanto, não apresenta emoções refreadas pelas rédeas do pensamento lógico, como defendem alguns críticos, mas evoca ambos os fatores, ora fazendo um sobrepor-se ao outro, alternando-os, ora realizando uma refinada integração aparentemente paradoxal, mas fundamentalmente harmônica.
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Referências
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
__________. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, 2003.
__________. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
__________. O direito de sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand, 1994.
FARIA, Maria Lucia Guimarães de. Bachelard e a imaginação material e dinâmica. Litteris, nº 3, 2009.
_________. Bachelard e a permanência da poética. Tempo brasileiro, nº 171, 2007. pp. 53-74.
JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. (Organização de Sérgio Martagão Gesteira). Rio de Janeiro: ABL, 2004.
MILANO, Dante. Obra reunida. (Organização de Sérgio Martagão Gesteira). Rio de Janeiro: ABL, 2004.
RODRIGUES, Claufe & MAIA, Alexandra. 100 Anos de poesia: um panorama da poesia brasileira no século XX. Rio de Janeiro: O Verso Edições, 2001.
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Rafael Mendes é mestrando em Literatura Brasileira (UFRJ).