Do dualismo aos transaberes
Como o ser humano ocidental se tornou tão só, desamparado em relação ao cosmos em que habita? A resposta é tão complexa quanto processual, exigindo que apreendamos como o dualismo ocorreu ao longo dos tempos.
A nossa divisão entre Ocidente e Oriente já evidencia esse dualismo, pois aqueles que chamamos “orientais” evitem essa postura: muitos deles apreendiam o imanifesto e o manifesto enquanto complementares. Nós separamos vida e morte, senhor e escravo, e assim por diante. Basta uma divisão para que muitas se instalem. E assim foi: no Império Antigo do Egito, a sociedade se organizava tratando religião, política, filosofia, arquitetura etc. enquanto um contínuo. Já no Império Novo, vários deuses imanentes ao cosmos foram sendo abolidos em prol de um deus transcendente: os deuses deixaram de existir através dos humanos, para que eles obedecessem a apenas um que estava Além. O dualismo desdobra-se na Grécia Antiga, separando filosofia e “ciência” de um lado, mito e rito de outro. Por sua vez, na Idade Média, o Cristianismo vai separar Deus e mundo, e no século XVII, Descartes concebe corpo e mente enquanto naturezas diferentes, enquanto as palavras, que eram antes extensões das coisas, se tornavam apenas representações delas.
O alquimista Isaac Newton publicou em vida apenas seu trabalho científico. Essa edição de sua obra impulsionou a Revolução Científica, que intensificaria ainda mais o dualismo, separando o mundo e sua representação numérica. No século XVIII, Kant levou esse dualismo ao ápice, afirmando que não temos acesso à realidade, apenas a “filtramos” através de nossas mentes. O imanifesto ou os invisíveis deixaram de povoar a experiência cotidiana, migrando para onde eram supostamente mais controláveis, a saber, no imaginário científico: na força de gravidade, no campo eletromagnético e no emaranhamento quântico.
Freud até identificou bem esse desamparo, mas sua solução agravou o problema. Tal desamparo contribuía para que algo supostamente superior e transcendente ordenasse como alguém deveria viver a sua vida, seja ele deus, rei, empresa, padre, chefe, juiz etc. O pensamento da transcendência preparou o ser humano para a servidão.
No mesmo século XVII cartesiano, temos Spinoza, um polidor de lentes, ou seja, destinado a fazer a humanidade a enxergar melhor. Herdeiro de todos que pensaram à margem do Ocidente – egípcios do Império Antigo, Heráclito e Estoicos na Grécia, os bruxos herméticos medievais –, o spinozismo expressa Deus e Natureza enquanto imanentes, entrando em ressonância com certa filosofia oriental. Habitar essa Natureza processual expulsa qualquer possibilidade de transcendência opressora. O ser humano, cósmico, caminharia, assim, rumo à liberdade e à beatitude, a apreensão de que ele é um com a multiplicidade cósmica.
Apreendemos o multidisciplinar como os saberes um ao lado do outro, e o interdisciplinar quando estes se atravessam. Já o transdisciplinar seria um saber híbrido que emerge das relações entre eles. A obra de Spinoza seria transdisciplinar, confluindo filosofia, ética, teologia, ótica e geometria. Muitos autores desdobram esse campo: os filósofos Bergson e Deleuze, o antropólogo Tim Ingold etc. As ressonâncias ao longo dos saberes se pronunciam: com os adventos da cosmologia, da mecânica quântica, da arte moderna, da biologia (sobretudo a epigenética e os novos estudos acerca dos fungos) e a nossa abertura crescente à meditação e toda a sabedoria “oriental”, estamos mais aptos a tecer a transdisciplinaridade.
No compasso da prática africana ubuntu de saber, ou seja, estar atento à imanência ao longo dos processos da vida e do conhecimento, a transdisciplinaridade precisa ocorrer nesta imanência. Para dar um passo além do conhecimento trans-disciplinar, propomos os transaberes, ou seja, o transdisciplinar na vida, em que o conhecimento se desdobre em sabedoria. Essa sabedoria se adquire com intuição, a saber, a imanência ao longo do conhecer e sentir: no corpo, enquanto cosmos.