Do dispositivo da sexualidade ao direito à diferença
DOI: 10.22481/el.v19i1.9151
Link do DOI: http://doi.org/10.22481/el.v19i1.9151
RESUMO
Ao analisar os dispositivos de sexualidade, as relações de saber e poder que eles incluem, o biopoder e as práticas de resistências derivadas de tais procedimentos normativos, Michel Foucault construiu uma ética das relações consigo, buscando uma explicação conceitual para a origem ou fonte das resistências encontradas na contrapartida das demais relações de sujeição. Todavia, na sua pesquisa histórica as relações consigo foram explicitadas nas análises empreendidas por ele no meio grego e romano; mas as condições efetivas de tais relações no mundo atual não foram descritas dado o falecimento prematuro do referido autor. Pois bem, neste texto buscamos as condições de possibilidade das relações consigo no mundo atual, para construirmos uma ética do direito à diferença, consolidando-a na contrapartida dos discursos identitários e coercitivos ditados pelos dispositivos de poder.
PALAVRAS-CHAVE: Dispositivo; Sexualidade; Biopoder; Resistência e ética.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
1 Introdução
Ao analisar os dispositivos da sexualidade no mundo contemporâneo, Foucault (2006 [1976]) propõe que nós tratemos tais meios heterogêneos como focos de experiências constituídos por relações de saber, poder e resistências. Como um grande pensador de relações – já que é este o seu ponto de partida – ele situa os dispositivos como meios produtores de sujeitos que emergem parcialmente sujeitados aos procedimentos normativos de saberes e aos focos estratégicos das relações de poder; já que atestam uma capacidade de resistir e inventar possibilidades de vida. É que, em Foucault, os sujeitos se constituem em tais relações e resistem nas diversas situações em que são por elas determinados. Por outro lado, ele pensa a vida pela sua capacidade de resistir a um biopoder posto como uma tecnologia de poder que captura os seres vivos ao se efetuar como um conjunto de relações que procuram gerir a vida e controlar a população. Sendo assim, as resistências encontráveis nos sujeitos em particular e na vida em geral darão a chave de articulação das práticas de liberdade que iremos definir como as relações consigo. Ao entendermos que tais práticas de liberdade constituem o âmbito daquilo que Foucault passa a designar como ética, talvez seja pela análise da resistência que a possibilidade de relações consigo tornem viáveis a produção de um sujeito ético.
É bem verdade que no livro A Vontade de Saber (FOUCAULT, 2006 [1976]) – primeiro volume da série História da Sexualidade – as resistências já se encontram presentes, mas as relações consigo ainda não são descritas. Na verdade, elas só surgem quando Foucault – ao procurar desvendar a fonte das resistências apresentadas neste livro – encontra os meios para o seu estabelecimento em uma ética erigida no mundo antigo. Todavia, como a consecução das relações consigo advém, sem dúvida, das resistências encontráveis nos dispositivos; talvez a melhor maneira de ter delas uma boa compreensão consista em um esclarecimento das relações de resistência notadas tanto nos dispositivos de sexualidade quanto na esfera do biopoder que se encontram presentes no mundo contemporâneo.
Quanto ao procedimento utilizado do método de Foucault, mostraremos, primeiramente, como relações de saber e poder se organizam em torno de dispositivos que colocam o sexo em discurso para identificar os sujeitos por intermédio de um saber extraído da sua própria confissão. Assim, Foucault mostra como tais dispositivos de sexualidade constroem os sujeitos que supostamente eles analisam por intermédio de um discurso que é fornecido pelo próprio sujeito que fala de si. Com este procedimento, diremos que a sexualidade é uma produção complexa que decorre de certos dispositivos específicos e mostraremos, em seguida, como a noção de sexualidade irá decorrer de técnicas combinadas de saber e poder implementadas por práticas discursivas. Sendo assim, as ciências sexuais – que se erigem na Europa nos últimos dois séculos – se encarregam de produzir sujeitos sujeitados através de técnicas combinadas de saber e poder efetuadas em limiares científicos produtores de verdade. Finalmente, um biopoder será situado como uma função que visa gerir a vida da população e que se exerce ao lado do anátomo poder – função descrita no livro Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987 [1975]) – que se exerce no interior dos dispositivos. Assim, das ciências sexuais ao biopoder, traçaremos o percurso analítico empreendido por Foucault ao longo deste livro.
Pelo lado das resistências apresentadas acima, nossa estratégia consistirá em colocar em evidência que as resistências encontráveis no contemporâneo deflagram a possibilidade de pensar exercícios e práticas espirituais que inauguram o domínio de uma ética no âmbito do pensamento de Foucault. Compreendendo a ética como uma prática de liberdade, Foucault delimita o campo das relações consigo através de um desvio de extremada importância na sua pesquisa histórica que consiste em pensar tais relações no mundo antigo em dois estudos desenvolvidos nos livros O Uso dos Prazeres (FOUCAULT, 1988 [1984]) e o Cuidado de si (FOUCAULT, 2014 [1984]). Isto decorre – segundo os nossos critérios – da exigência metodológica de saber se é possível pensar a relação consigo de uma maneira diferente da nossa, levando em conta as práticas sexuais decorrentes de dispositivos diferentes do nosso. Com a consecução de tal pesquisa ele implementa um trabalho ético no mundo antigo concebido como um conjunto de práticas de si ou de exercícios espirituais empreendidos por sujeitos que visam mudar a sua conduta na cidade e a sua postura diante dos outros. E assim surgem as relações consigo analisadas no mundo antigo como as condições históricas das práticas de liberdade.
Já sabemos que as relações consigo não foram pensadas no mundo moderno porque a pesquisa de Foucault permanece incompleta pelo seu falecimento em 1984, no momento em que publica os últimos livros sobre ética antiga. Todavia, aquilo que fez com que Foucault mudasse a direção da sua pesquisa é justamente o ponto onde pretendemos iniciar a nossa com a seguinte questão: podemos pensar as resistências hoje pela via da produção de modos de vida construídos por intermédio de práticas de si?
Assimilaremos, no decorrer deste trabalho, que práticas de resistência e relações consigo sejam inseparáveis, procurando caminhos para pensarmos tais relações como exercícios éticos de produções de diferenças decorrentes das resistências aos dispositivos heteronormativos produtores de identidade. Além disso, buscaremos igualmente situar tais resistências no campo de uma vida que se insurge contra o biopoder. Com isso traçaremos nosso percurso descrevendo três procedimentos: analisaremos os dispositivos da sexualidade e o biopoder para compreendermos as práticas de resistência; buscaremos as fontes de tais resistências nas prováveis práticas de si – que são analisadas por Foucault no contexto da filosofia grega e greco-romana – e, finalmente, colocaremos em curso na contemporaneidade tais práticas de liberdade como procedimentos produtores de diferenças. Ao longo da explicitação destes processos, traremos as considerações de Gilles Deleuze – que além de amigo de Foucault é também um grande pensador da diferença em si mesma – e, em seguida, veremos, pela via da resistência ativa, o problema da diferença ser evocado pela inflexão de quatro dobras. Dito isto, vejamos a noção de dispositivo exemplificada no âmbito da sexualidade, para tornarmos contundente a nossa argumentação.
2 Dispositivo de sexualidade, anátomo poder e biopoder
O que é um dispositivo de sexualidade? Quais são as práticas ou as linhas que compõem tal noção? Como explicitá-las segundo as linhas prescritas na nossa introdução? Em primeiro lugar, podemos dizer que há – em todo e qualquer dispositivo de sexualidade – um conjunto de práticas heterogêneas que supõem discursos sobre o sexo, meios não discursivos, instituições, decisões regulamentadas, enunciados, produções de verdade acerca das atividades sexuais e técnicas de obtenção de um saber específico sobre o sexo. Neste nível, o dispositivo é um meio de saber ou uma vontade de saber sobre o sexo, sobre a verdade que ele comporta e o sujeito que o enuncia. Tal vontade coloca em cena um discurso e dois personagens: um que fala de si submetido a regras contratuais pré-estabelecidas e um outro que escuta garantido por uma metodologia e por recursos epistemológicos que criarão a condição da produção do saber no dispositivo. E embora saber seja falar e ver – e em Foucault estas duas dimensões sejam irredutíveis – são as formações discursivas que irão deter um primado através da atribuição de sentido às formações não discursivas.
Por outro lado, há em todo dispositivo de sexualidade um jogo de poder cuja natureza essencialmente estratégica consiste em uma “certa manipulação de relações de forças, de uma intervenção racional e combinada destas relações, seja para orientá-las em uma certa direção” (FOUCAULT, 1994, p. 299) ou desviá-las de outras. Neste nível o dispositivo é o meio onde se desenvolvem relações de poder definidas como práticas produtoras de afetos e estratégias ortopédicas de conduta. Aqui Foucault define o poder como uma correlação de forças e diz que na relação as forças possuem o poder de afetar e de se serem afetadas. Nesse nível o poder produz afetos ativos e passivos que definem as ações e as ações produzidas pelas primeiras em um jogo de forças sempre relacional.
Além disso, o dispositivo “é um conjunto de estratégias de relações de forças que condicionam certos tipos de saber e por eles são condicionados” (FOUCAULT, 1994, p. 300). Desta vez, Foucault estabelece uma pressuposição recíproca entre o saber e o poder, para mostrar que embora exista uma diferença de natureza entre os dois, na prática eles se encontram sempre conjugados. Ou seja, não há saber que não pressuponha relações de poder no seu meio, nem poder existindo sem um meio regulamentado pelo saber. Ou como diz Agamben o dispositivo “resulta sempre do cruzamento de poder e de relações de saber (AGAMBEN, 2009 [2005], p. 29). O poder como estratégia e o saber como regulamento se conjugam em todo e qualquer dispositivo e aparece com veemência no dispositivo de sexualidade articulados pelos discursos sobre o sexo. Aqui o poder detém um primado em relação ao saber e determina, em certos momentos, o saber que será produzido.
Existem também práticas de resistência, que se definem pelo poder que certas forças possuem de criar possibilidades de ações fora das estratégias delimitadas pelas relações de poder. Neste âmbito, as resistências vão ganhar em Foucault uma definição singular já que elas irão se distinguir da reação. Ou seja, a capacidade de resistir de uma força surge na contrapartida da reação implementada pela relação de poder. Sendo assim, resistir é diferente de reagir e talvez se torne o índice de um trabalho de si que logo iremos desenvolver. Todavia, já é possível argumentar que resistir é criar uma nova possibilidade de agir e de reexistir fora dos mecanismos implementados pelos dispositivos.
E aqui uma relação com o fora pode ser notada topologicamente na credibilidade da existência de forças oriundas de um lado de fora das relações apreendidas em um diagrama de poder. Ou seja, é na relação da força com as forças oriundas do lado de fora do diagrama que a possibilidade de um lado de dentro se torna pensável na esfera do pensamento. Desta maneira, as resistências encontradas nos dispositivos atestam a existência de práticas derivadas dos exercícios combinados de saber e poder que viabilizam a existência das práticas de si que serão contempladas no momento em que estivermos analisando topologicamente a constituição de um dentro concebido como uma dobra deste fora. Por este viés – como diz Paul Veyne – “dispositivo é menos o determinismo que nos produz que o obstáculo contra o qual reagem ou não reagem o nosso pensamento e a nossa liberdade” (VEYNE, 2009, p. 102).
Sendo assim, existem nos dispositivos de sexualidade possibilidades de relações consigo que resultam das resistências encontráveis nos seus meios normativos. Tais relações são analisadas nos dispositivos das cidades gregas e romanas, quando Foucault assume, na sua história da sexualidade, a tarefa de pensar as relações consigo a partir de uma dupla derivação tanto do saber instituído quanto das relações de poder; e neste momento final as relações consigo consolidam uma interioridade de expectativa ou de exceção que chamaremos na ocasião de uma memória do fora.
Enfim, um dispositivo é um meio heterogêneo de práticas de saber, poder, resistências, forças oriundas do fora e práticas de si, que funciona como um foco de experiência para estas atividades. Na versão original de Foucault uma abordagem dos dispositivos viabiliza uma análise minuciosa das práticas constituintes das diversas posições que os seres falantes podem ocupar; viabilizando, igualmente, as resistências e suas fontes éticas no âmbito das relações consigo.
Entretanto, no livro A Vontade de Saber – que é o texto onde Foucault descreve os dispositivos de sexualidade – ele trata a noção no âmbito das ciências sexuais e descreve quatro meios heterogêneos ou quatro domínios específicos produtores de verdade que se edificam por vias diversificadas de saberes, poderes e resistências. Tais verdades são consolidadas por métodos, procedimentos de confissões, técnicas de exames, relações de forças produtoras de afetos, estratégias de adestramento e práticas de resistência apreendidas na contrapartida das relações normatizadas e codificadas pelo par saber/poder.
Com tais meios heterogêneos quatro dispositivos são edificados por intermédio de discursos normativos que extraem a verdade do sexo e dos sujeitos que praticam das atividades sexuais, colocando as mesmas na esfera de um discurso que será avaliado por um determinado especialista. No decorrer deste processo toda uma trama discursiva vai, aos poucos, constituindo parcialmente os sujeitos que a ela se submetem.
E assim surgem meios efetivos de histerização do corpo da mulher; práticas pedagógicas da sexualidade infantil; processos psiquiátricos do prazer perverso e meios de socialização da conduta conjugal1. No primeiro caso temos o corpo da mulher integrado ao campo das práticas médicas e descoberto como um corpo saturado de sexualidade; já no segundo temos uma implementação pedagógica do sexo da criança – com mecanismos de vigilância que se encarregam continuamente do desenvolvimento deste germe sexual chamado infância -, no terceiro, encontramos mecanismos sociais e fiscais encarregados de regulamentar as práticas conjugais – promovendo regras indispensáveis para a responsabilização dos casais – e, finalmente, temos todo um processo de análise clínica de todas as formas de anomalia que podem afetar o impulso sexual. Em tais preocupações com o sexo, que segundo Foucault ganha um destaque maior ao longo do século XIX, “quatro figuras se esboçam como objetos privilegiados de saber, alvos e pontos de fixação dos empreendimentos do saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso” (FOUCAULT, 2006 [1976]. p. 116).
Tais dispositivos são assim descritos por consolidarem práticas normativas de saber sobre o sexo, verdades do sexo construídas por intermédio de práticas discursivas; um olhar sobre o corpo sexuado como a condição visível da avaliação feita pelo agente de saber e as práticas de poder implicadas em tais focos de experiência. Todavia, assinala Foucault, não devemos acreditar que tais dispositivos sejam construídos com o propósito de assumir um controle sobre a sexualidade, nem tampouco de uma luta deliberada contra ela. Na verdade, eles antes se encarregam da própria “produção da sexualidade “…sendo esta o nome dado por dispositivos históricos que articulam, na esfera do discurso, grandes estratégias de produção da verdade. Ou seja, o discurso sobre a sexualidade produz parcialmente os sujeitos a ele submetidos por intermédio de técnicas combinadas de saber e poder que articulam a verdade sobre o sexo.
Os saberes produtores de verdade sobre o sexo – noções que analisaremos ao colocarmos em cena suas devidas regulamentações – se organizam em um limiar epistemológico significado na insígnia geral das ciências sexuais. Com elas, Foucault descreve as técnicas da produção do verdadeiro no campo ocidental, propondo uma curiosa distinção deste procedimento e a arte erótica.
Já a função de poder depreendida de tais dispositivos é conceituada como um anátomo poder; e definida como uma física de uma ação de uma força sobre outra, onde nela o poder funciona como uma relação física produtora de afetos e de ações possíveis. Convém lembrar que tal função já se encontrava descrita no seu livro anterior intitulado Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987 [1975]). Por outro lado, uma outra função do poder ganha pleno desenvolvimento no decorrer do século XVIII: o biopoder. Com ela, Foucault analisa uma função de poder que visa a gerir a vida da população em geral pelo critério do controle da saúde sexual, da taxa de natalidade e do crescimento demográfico. Na verdade, tanto a anátomo política quanto a biopolítica são funções de poder sobre a vida que se desenvolvem a partir do século XVII em duas formas principais que não são antitéticas e constituem todo um feixe intermediário de relações. O primeiro polo “centrou-se no corpo como máquina, no seu adestramento, na ampliação das suas aptidões, na extorsão das suas forças, no crescimento paralelo da sua utilidade e docilidade (FOUCAULT, 2006 [1976]
- 151). Neste polo os procedimentos de poder irão caracterizar as disciplinas do corpo humano pelo procedimento de uma anátomo política. Já no segundo, que se forma mais tarde, o procedimento de poder se “centra no corpo espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 2006 [1976], p. 152). Neste nível, a duração da vida, a longevidade, a taxa de natalidade, o controle das doenças sexualmente transmissíveis constitui, conjuntamente, uma biopolítica da população.
Ora, com a análise dos dispositivos e as duas funções de poder acima descritas já podemos avançar nos problemas assumidos ao longo do A Vontade de Saber. Agora, interessam-nos perguntar como os dispositivos das ciências sexuais irão produzir a verdade dos sexos? E como eles irão se articular no entorno de uma biopolítica?
3 As Ciências sexuais, os dispositivos da sexualidade e a biopolítica
Em A Vontade de Saber Foucault diz que existem, “historicamente, dois procedimentos para produzir a verdade do sexo” (FOUCAULT, 2006 [1976], p. 65): por um lado, existem aqueles que se dotam de uma arte erótica e, por outro, aqueles que praticam uma ciência sexual. No primeiro, a verdade é extraída do próprio prazer do praticante, “encarado como uma prática e recolhido como experiencia” (FOUCAULT, 2006 [1976], p. 65). Aqui ele coloca a ressalva de que nas sociedades da China, do Japão e da Índia o prazer é levado em consideração
em si mesmo e deve ser conhecido por um saber que recai no âmbito da própria prática sexual, para trabalhá-la no seu domínio específico, procurando ampliar e intensificar os seus efeitos.
Desta maneira, tal saber permanece secreto em proveito da sua eficácia e a verdade que do prazer se extrai confere ao praticante uma virtude adquirida por um conhecimento que lhe é transmitido pelo seu mestre. Sendo assim, a relação com o mestre detentor de tais segredos é fundamental; pois somente ele pode “transmiti-lo de modo esotérico e ao cabo de uma iniciação em que orienta, com saber e severidade sem falhas, o caminhar do discípulo” (FOUCAULT, 2006 [1976], p. 66).
Ora, os efeitos dessa arte erótica devem promover naquele sobre quem recaem seus privilégios, um domínio absoluto do corpo, um gozo excepcional, uma criteriosa atenção ao uso destes prazeres; postas como práticas de iniciação e de transfiguração. Cabe lembrar que tais efeitos – que Foucault atesta terem sido esquecidos no ocidente – serão reaproveitados no livro subsequente intitulado O Uso dos Prazeres que colocaremos em análise mais adiante.
Todavia, a nossa civilização é, com certeza, aquela que desenvolve uma ciência sexual; ou melhor, ciências que desenvolvem procedimentos de produção da verdade do sexo que se ordenam em função de uma forma de poder-saber bem distintos das artes das iniciações. De acordo com o seu procedimento genealógico esta forma adota o modelo da confissão, que desde a idade média figura entre os rituais mais importantes da produção da verdade, mas que ganha diversos desenvolvimentos técnicos podendo se apresentar por intermédio de diversas modalidades: assim, o procedimento dos métodos de interrogatório e inquérito; a instauração dos tribunais de inquisição; a implementação criteriosa de exames no âmbito das sociedades disciplinares e as diversas modalidades de confissão postas em discurso por procedimentos médicos e pedagógicos os mais variados, dão à confissão da verdade a condição formal de individualização dos sujeitos pelas práticas de saber e poder. E assim, ela difunde amplamente os seus efeitos “na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera cotidiana e nos rituais mais solenes” (FOUCAULT, 2006 [1976], p. 67-68).
Por outro lado, o procedimento da confissão – como técnica de extração da verdade do sexo – dá a Foucault a possibilidade de demonstrar – contra a hipótese repressiva – que a produção da verdade é infiltrada pelas relações de poder. Ao conceber o poder como uma estratégia que existe conjuntamente com o saber – aqui visado como a prática formal de extração da verdade – Foucault coloca em evidência os mecanismos sutis que operam nas diversas práticas de confissão.
Mas o que se evidenciava na descoberta de diversas práticas de confissão adaptadas às exigências dos dispositivos que aqui analisamos? Uma Vontade de Saber que atravessa todos os dispositivos da sexualidade com técnicas de confissão da verdade, sem dúvida extraídas dos velhos elementos da antiga pastoral cristã. Podemos verificar tal asserção? Sim, se entendermos que o elemento da confissão serviu e ainda serve como um procedimento de produção parcial de uma verdade formalizada pela confissão daquele que coloca os seus atos em discurso. Neste procedimento, o diagnóstico da verdade procurada supõe, por um lado, alguém que fala de si produzindo um sentido na ordem do
dizer e, por outro, alguém que escuta no que é dito um dizer que exige um método de interpretação. Ora, é a produção de um novo sentido pela interpretação do sentido latente existente naquilo que é dito, que ocasiona toda uma produção de saber cuja suposição dará a quem escuta a chave mestra da elucidação da verdade. Como diz Foucault, “a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado” (FOUCAULT, 2006 [1976], p. 70) sendo, igualmente um ritual desencadeado por relações de poder, uma vez que sua prática ocorre pelo endereçamento, ao menos virtual, a um parceiro que não se reduz necessariamente ao interlocutor, mas a uma instancia que requer a confissão “impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar” (FOUCAULT, 2006 [1976], p. 71) ; através de um ritual onde a verdade é produzida pelos obstáculos e pelas resistências que serão suprimidos pela via criteriosa da interpretação.
Nestes termos, a confissão permanece ainda hoje como uma matriz que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo. E se durante muito tempo ela permanece vinculada à prática da penitência; aos poucos vai se difundindo ao perder sua situação ritual exclusiva. E assim, tal procedimento será verificado na pedagogia do século XVIII; na medicina do século XIX, nas relações entre crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e psiquiatras, delinquentes e peritos, se difundindo de diversas maneiras por intermédio de diversas técnicas e métodos de obtenção da verdade. Neles os peritos encarregados de obter a confissão constroem procedimentos os mais variados de interpretação, movidos pela vontade de saber a verdade do sexo. Sendo assim, as verdades produzidas não se reduzem tão somente à avaliação do ato sexual propriamente dito; mas resultam das suas reconstituições pelos pensamentos e pelas obsessões que o acompanham, os desejos que os motivam e os prazeres que eles visam.
E aqui, no ritual instituído pela pastoral cristã, a confissão vai, aos poucos, se consolidando em rituais construídos com esquemas de regularidade cientifica que colocam em evidencia as regras que Foucault enuncia da seguinte maneira: em primeiro lugar é preciso estabelecer uma “codificação clínica do fazer falar”; em seguida, criar “ o postulado de uma causalidade geral e difusa “ justificado pelo princípio de que existe uma latência intrínseca à sexualidade; que exige a “figura de um especialista capaz de estabelecer regras metodológicas de interpretação” e que seja, por isso mesmo, “dotado da capacidade de criar operações terapêuticas por procedimentos de medicalização”2.
A ideia geral de que o sentido do ato deve ser interpretado e devidamente tratado por procedimentos terapêuticos de medicalização cria um rico domínio de investigações sobre o segredo dos atos sexuais e a consequente rede complexa e, por isso mesmo, diversa, dos vários procedimentos que corroboram para a instauração das ditas ciências sexuais.
Ora, são tais procedimentos que dão a Foucault as condições de elaborar, em domínios os mais diversos, os dispositivos derivados do dispositivo geral de sexualidade que conjuga procedimentos hermenêuticos de saber com formas sutis de relações de poder. Nesta ocasião, o anátomo poder se encontra presente em todos os aspectos normativos de produção de um saber sobre o sentido verídico das práticas sexuais; e as relações de poder ditam os aspectos ortopédicos que acompanham a regra geral da colocação do sexo em discurso.
Por outro lado, todo um biopoder ganha a sua justificativa no domínio geral de um dispositivo que busca um controle ostensivo da vida, tanto no campo da conduta sexual quanto no terreno do controle da população. Como já sabemos, as duas funções se complementam implementando estratégias de controle dos corpos, das condutas, das atividades sexuais no âmbito das doenças sexualmente transmissíveis, do controle da população para a manutenção de um rendimento econômico satisfatório, das taxa de natalidade, para um melhor desempenho político da população e no nível interno dos dispositivos de sexualidade, através de procedimentos anatômicos indispensáveis para a produção individual de sujeitos dotados da capacidade de um conhecimento ostensivo das suas condutas sexuais ditadas pelos procedimentos normativos dos quatro dispositivos diretamente ligados ao problema especifico da sexualidade.
Assim, a biopolítica da população e a anátomo política dos dispositivos da sexualidade promovem estratégias de controle da vida e do sexo pela ressalva cientifica de saberes e poderes justificados como indispensáveis para a defesa da sociedade. É totalmente legitima tal justificativa? Ou nela não se esconde estrategicamente as armadilhas de um poder que perde a sua transparência ao se exercer em todos os domínios?
Que dizer dos dispositivos de histerização do corpo da mulher? Seriam as histéricas seres de protesto ou vítimas de um diagnóstico construído por uma sociedade que prima pelo seu bom funcionamento? E a sexualidade infantil seria uma descoberta das pequenas ereções e inervações já presentes no infante? Ou uma tentativa cabal de exercer sobre o infante um controle ostensivo e pedagógico indispensável à regulamentação da sua perversão polimorfa? Diremos que as duas coisas, uma vez que o protesto histérico e a sexualidade infantil são fatos evidentes, mas são nos dispositivos de sexualidade formalizados e submetidos a um discurso que irão normatizá-los e integrá-los às estratégias de saber e poder. Já os prazeres perversos foram diagnosticados e tradados com medidas terapêuticas psiquiátricas. Entretanto, não seriam tais prazeres definidos como perversos exatamente por que contrariavam a lógica de uma boa obtenção do prazer nos ditames de uma sociedade disciplinar? Ora, nesta inflexão a implantação perversa torna-se inseparável de todo um aparato de saber poder que individualiza o sujeito ao produzir verdades sobre as suas condutas sexuais. Se objetarmos dizendo que tais práticas de fato existem; convém não esquecermos que os seus sentidos são forjados no momento em que elas são postas na ordem do discurso.
Neste caso, a entidade perversa, a perversão polimorfa infantil e as histéricas e os seus corpos com sintomas materiais de conversão devem comparecer, a um só tempo, como práticas de prazer, prazer saber extraído de tais práticas e saber poder na regulamentação e ordenação de tais atos. E toda uma vontade de saber se difunde pelos dispositivos da sexualidade ao mesmo tempo em que um biopoder passa ao encargo de um aparelho de estado que assume a tarefa de gerir a vida ou deixar os sujeitos expostos à possibilidade de morte.
A disciplina exercida sobre os indivíduos delineados nos dispositivos de sexualidade se completa na gestão da vida exercida por um biopoder difuso e sem transparência. Juntos, eles orquestram, por intermédio de dispositivos diversificados, a gerência da vida da população e a conduta do bom cidadão domesticado pela subjetivação de saberes que ditam a norma de uma conduta na esfera dos atos sexuais.
Entretanto, toda essa análise criteriosa dá a Foucault uma dupla possibilidade de investigação que resulta em uma guinada fundamental no seu estudo sobre a sexualidade: se por um lado a verdade do saber sobre o sexo se encontra permeada pelas relações de poder que descrevem, normatizam e produzem os sujeitos a elas submetidos; por outro, as resistências encontráveis nesse domínio assinalam a presença de um desejo em um sujeito que não se vê totalmente reconhecido nas normas prescritas pelos saberes oficiais.
Mas de onde originam tais resistências? Estão elas enraizadas em potência oculta da vida que só se manifesta quando esta se insurge ao ser apanhada nas armadilhas do poder? Ou a capacidade de resistir – que sem dúvida alguma advém da potência da vida – não se manifesta nos indivíduos em todos os momentos em que estes se debatem contra as estratégias de poder regulamentadas pelas práticas formais de saber?
Tanto em um caso quanto no outro as resistências existem e é delas que surgem a possibilidade de existências postas em outros meios. No caso geral da vida é a resistência que torna possível a problematização de uma outra maneira de viver. No âmbito específico dos seres viventes são elas que testemunham por uma vida não impregnada pela logica histórica do par saber/poder.
Ora, é em tal impasse que Foucault problematiza a ética das relações consigo, buscando o seu desenvolvimento efetivo no estudo historiográfico do uso dos prazeres do povo grego e do cuidado de si entrevisto na análise do relato greco-romano. Ao articular uma nova lógica para pensar as relações consigo ele demonstra o rico domínio das práticas de si com uma topologia cuja descrição deve ser feita de forma criteriosa para não cairmos nas ilusões de conceitos universais que fomentem a crença em uma postulação metafisica.
Além disso, é preciso saber como é possível entrar em uma relação consigo em uma era onde o sujeito é posto sob o domínio da eficácia e do rendimento normal da sua conduta sexual e econômica. Será possível resistir às solicitações que o mundo impõe sem cair na marginalização que a sociedade possa porventura lhe atribuir? Mas como é possível resistir no mundo atual? O que significa isto? Será possível e desejável se relacionar consigo? Em que termos? Em quais circunstâncias?
Dado o duplo interesse no qual caímos pelo desenvolvimento dos aspectos normativos dos dispositivos da sexualidade, convém esclarecermos, primeiramente, o que entendemos por ética do cuidado de si, para respondermos às questões suscitadas no parágrafo anterior.
4 As relações consigo: uma topologia ética
A ideia central que define a ética no pensamento de Foucault pode ser apresentada da seguinte maneira na topologia do seu pensamento: enquanto prática de liberdade, a ética é o domínio das relações consigo que condiciona as resistências encontradas nos meios sociais. Sendo assim, dos gregos aos modernos os processos de subjetivação irão se definir sempre nas relações consigo que impliquem uma problematização de si e um vergar da força sobre si.
É bem verdade que as relações consigo podem variar com a história, mas as suas condições irão sempre reaparecer no âmbito da subjetivação. Ou seja, o afeto de si por si, ou a dobra da força, é a condição da subjetividade pela qual é possível emergir sujeitos éticos, isto é, sujeitos que praticam a liberdade.
Entretanto, o processo é mais complexo pois exige uma descrição criteriosa destas dobras que irão se estabelecer no âmbito de uma ontologia especifica das relações consigo. Assim, é mais provável que assinalemos a existência de diversas dobras implementadas nas relações consigo e que elas sejam apresentadas em uma sequência plausível para o entendimento do processo geral de subjetivação. Com isso, podemos dizer que a ética em Foucault supõe uma quadrupla matriz de problematizações de si, que devem ser tratadas – como sugere Gilles Deleuze no seu livro intitulado Foucault (DELEUZE. 2005 [1986]. p. 111) – como quatro dobras da subjetividade.
Existe, primeiramente, uma dobra material configurada na relação que o sujeito estabelece com o corpo, o desejo, a carne e os prazeres em geral; existe, igualmente, uma dobra eficiente, cuja preocupação consigo é definida nos termos específicos de um combate agonístico de si por si; há uma dobra da verdade, cujo critério seletivo de subjetivação da mesma dará forma e inteligibilidade a tal combate e uma dobra do fora, que resulta na produção efetiva de uma memória garantida pela subjetivação do lado de fora3.
Sendo assim, é a produção de uma memória que configura a meta das diversas relações que os sujeitos travam consigo, entrando em diversos processos de afecções de si por si. Neles, se encontram em jogo o domínio das práticas de subjetivação que irão consistir na produção de um sujeito ético e expressivo, capaz de exercer sobre si um domínio que lhe dê possibilidades de escolher o termo mais conveniente para a sua decisão. Detalhemos tais dobras.
No que tange à dimensão material de nós mesmos, a nossa dobra material, cremos que uma devida atenção às solicitações do corpo não pode ser dada sem que um certo intervalo de indeterminação seja trabalhado graças à suspensão temporária das ações motoras. Por outro lado, cuidar de si é evitar os medos, as angústias, os temores que inibem as decisões do sujeito por um período indefinido. Seja na contrapartida de uma ação compulsiva; seja na contramão de uma inibição irrestrita; cuidar de si é escolher o momento de decisão, diminuindo a pressão que inibe o ato e a compulsão que o precipita. Assim, quem cuida de si procura se problematizar para extrair da decisão possíveis comprometimentos morais ou imperativos sexuais oriundos do campo social no qual vivemos.
Claro está que neste cuidado toda uma ética da conduta sexual se encontra inscrita com a devida indeterminação que torna o sexo relativamente independente das prescrições promovidas pelo âmbito dos dispositivos da sexualidade. Na indeterminação assim conquistada, cria-se o vetor de uma ação para além das determinações prescritas pelos saberes e poderes que orquestram o discurso da sexualidade.
Por outro lado, tal exercício não teria eficácia se ele não fosse prescrito com uma certa severidade do sujeito. Afinal, nunca é possível, nem mesmo desejável, que exista uma coerência espontânea entre os desejos de um sujeito e as determinações éticas oriundas do seu pensamento. Neste caso, cuidar de si é sinônimo de entrar em uma relação agonística consigo, onde nela as decisões do pensamento suprimem os preconceitos moralizantes oriundos dos dispositivos normativos que vigoram em uma sociedade. Aqui, a dobra eficiente deve se encarregar dos elementos agonísticos resultantes dos combates a serem travados pelos sujeitos.
E aqui o combate agonístico ganha pertinência no interior do próprio sujeito que procura as condições subjetivas das suas decisões pelas verdades cruciais com as quais ele tem que se relacionar para dar forma e contexto ás suas atividades. Se uma certa relação com a verdade é exigida, que ela seja assimilada como uma verdade do sujeito que se coloca à prova para dar forma as suas decisões facultativas. Nessa dobra da verdade há um duplo propósito: construir a forma que garantirá as decisões do sujeito e configurar um modo de vida belo que fará da vida do sujeito uma obra de arte.
Ora, o que temos até aqui? Problematizações de si feitas em níveis de relações consigo que envolve práticas físicas, decisões problemáticas, verdades eleitas e domínios estéticos de beleza inseparáveis das condições formais de tais determinações. Pelo escrutínio criterioso destas modalidades de problematizações, podemos dizer que cuidar de si é criar determinações subjetivas para tomar decisões no momento certo, de uma maneira bela e verídica, constituindo um sujeito que ao incluir elementos estéticos na configuração da ética, dará à vida uma estética da existência.
Além disso, cuidar de si é decidir, na condição de homem do desejo, quando é necessário fazer acontecer na esfera prática as decisões tomadas na esfera do pensamento. É nesse caso, que a memória do fora deve servir de fundamento para tais decisões e deve ser posta em produção como efeito de práticas reiteradas e repetidas de um exaustivo trabalho de si por si.
Ao cuidar de si a memória é produzida para garantir, na dimensão da palavra, a ocasião oportuna de uma decisão a ser tomada. No horizonte de tais decisões uma dobra final fará consistir em uma memória do fora pela construção de uma interioridade de expectativa ou de exceção. E assim indiciamos as quatro dobras indispensáveis para a produção de um sujeito ético. Que elas variem com a história isto Foucault já mostrou ao longo dos seus trabalhos sobre as relações consigo. Entretanto, a questão que nos interessa, neste momento final de artigo, consiste em saber se é possível pensar as relações consigo no mundo atual? Aqui, criaremos hipóteses experimentais, descrevendo os procedimentos que faremos constar na nossa conclusão.
5 As relações consigo no mundo atual: produção de diferença e estilo de vida na era do biopoder
Nesse final da nossa investigação temos pela frente duas tarefas indispensáveis: situar o dispositivo da sexualidade na era do biopoder e pensar pela via da resistência uma maneira de se relacionar consigo. Sendo verdadeira a tese de que o poder produz saber e este normatiza as condutas dos indivíduos para fazê-los funcionar nos diversos dispositivos postos em dia pelas sociedades de controle da sexualidade; torna-se igualmente crível a ideia de que as práticas de si devam também se edificar. Desta forma, não poderemos colocar em prática a topologia das práticas de si sem levarmos em consideração as novas armadilhas sedutoras do biopoder que imperam nas ditas sociedades atuais. Coloquemos em evidência estas últimas para termos com precisão as noções de resistência e cuidado de si com as quais findaremos a nossa argumentação.
A biopolítica da população e o anátomo poder dos dispositivos das ciências sexuais constituem conjuntamente as duas funções de poder que vigoram nas sociedades atuais. Nelas, a produção de sujeitos com identidade fixa e de uma população administrada por mecanismos sutis de controle da vida fazem valer estas duas funções como exercícios complementares de forças que suscitam, imediatamente, focos de resistências sempre múltiplos e plurais. Os exercícios de poder – que se encontram em toda parte – primam pela identidade na estratégia da determinação de sujeitos e de uma população gerida por aparelhos administrativos de sujeição.
Como em Foucault – e isto nós já sabemos – não há poder sem resistências e resistir é criar novas possibilidade de existências; para situá-las, com precisão, frente às estratégias de poder que se instauram na modernidade, é preciso pensá-las como focos de experiência que criam vacúolos de indeterminação e produção de diferenças que escapam à lógica das identidades fixas e da vida regulamentada e moldada pelo dispositivo do biopoder.
Sendo assim, é preciso situar as resistências na luta contra a produção feérica de gadgets, contra os meios de industrialização dos sexos, contra as tecnologias do sexo e da vida construídas pela indústria especializada que cria formas padronizadas de viver e contra o biopoder que procura gerir a vida da população. Assim, resistir é criar possibilidades de existir fora das estratégias de poder combinadas com práticas de saber que normatizam a vida, controla os corpos dos seres viventes e atribuem identidades fixas aos sujeitos sexuados;
Além disso, o direito de se insurgir contra as disciplinas normatizadoras são práticas inventivas que desconstroem a categoria de sexo construídas pelos discursos da sexualidade tão bem analisados pelos dispositivos analisados por Foucault. Para tanto, é necessário desconstruir a maquinaria do sexo e da vida que colocam em conexão elementos díspares para criar a impressão de uma unidade inviolável de uma matriz natural, mas que é, na verdade, uma produção conjugada de saber e poder articuladas por práticas normativas e produtoras de identidade.
Assim, ao desarticularmos os elementos que o poder reúne, ao desfazermos os elementos que ele procura conjugar para estabelecermos relações tão prováveis quanto aquelas que são ditadas pelos dispositivos de poder; criamos possibilidades ativas de resistência e de modos inéditos de vida que poderemos apresentar pela via da produção de diferenças com direito à metamorfose e à variação. Tais diferenças devem, não obstante, ser entendidas como diferenças de modos de vida que se produzem na contrapartida dos mecanismos que querem construir padrões identitários fixados por oposições duais – como por exemplo, homem/mulher; hetero/homo, masculino/feminino, etc. Ou seja, trata-se da produção de uma diferença em si mesma entrevista na contrapartida dos dispositivos produtores de identidade fixa e do poder normalizador da vida. A este respeito, Deleuze tem razão quando diz que a luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfos (DELEUZE, 1985, p. 113).
Desta maneira, é na tensão existente entre o poder que individualiza e identifica e as resistências que produzem diferenças que a construção da subjetividade moderna deve se estabelecer. É bem verdade que Deleuze – nessa análise criteriosa de Foucault – partilha da ideia de diferença desenvolvida pelo filósofo. Afinal, o direito à diferença retirado da construção de Foucault converge com a produção da diferença certa vez problematizada no seu livro intitulado Diferença e Repetição (DELEUZE, 2006 [1968]). Claro está que neste livro Deleuze problematiza a construção de um conceito puro de diferença, o que torna a sua inflexão singular e distinta daquela que ele depreende de Foucault. Entretanto, – mesmo considerando as distinções existentes entre os autores -, a evocação da diferença como direito conquistado pela subjetividade moderna, faz de Deleuze um filósofo aliado da proposta depreendida da ética de Foucault.
Em que sentido podemos justificar tal afirmação? No sentido em que os dois autores sempre se preocuparam com a possibilidade de pensar de uma outra maneira o presente, rompendo com a representação do nosso tempo que fixa uma forma ortodoxa daquilo que devemos pensar. Assim, tanto em Deleuze quanto em Foucault a problematização do presente se constitui como um ato de pensamento que busca criar as condições do novo e, com elas, desestabilizar o presente, as armadilhas construídas no presente pelos dispositivos de saber e poder que investem na esfera da vida e da sexualidade. Além disso, ao conceber o ato de pensar como uma problematização do presente, Deleuze e Foucault buscam – cada um de uma maneira distinta – pensar o problema da diferença pela via da produção, tendo no horizonte as ideias de mudança e metamorfose. Assim, – muito embora as inflexões de Deleuze permaneçam distintas daquelas que iremos arguir neste trabalho -, as considerações do filósofo devem constar como apreciações do trabalho de Foucault que extrapolam a esfera de uma mera constatação. Ou seja, o direito à produção da diferença, à metamorfose e à mudança são pontos comuns encontráveis nas duas filosofias.
Dito isto podemos afirmar que da sexualidade normatizada às resistências, dos corpos dóceis às produções de diferenças, dos sujeitos sujeitados às disciplinas aos combates efetivos de si por si, das verdades normativas às produções efetivas de verdades subjetivadas e das criações de possibilidade de vida construídas na contrapartida das vidas reduzidas ao presente histórico; encontramos as condições de um cuidado efetivo de si implementado pela produção de uma diferença.
Que tais diferenças se determinem em quatro dobras da subjetividade é o que pretendemos definir para findar a nossa argumentação. Em primeiro lugar pelas dobras materiais que condicionam a produção dos corpos fora das matrizes duais dos dispositivos de poder/saber. Nestes termos, a produção da diferença começa em corpos não normatizados cujos circuitos intensivos são produzidos no vetor das experimentações. O cuidado decorrente dos usos dos prazeres deve ser criteriosamente avaliado na contrapartida de um prazer delimitado pelo jogo de saber e poder que constrói corpos dóceis, segundo a engrenagem apresentada em Vigiar e Punir e consolidada em A Vontade de Saber. Assim, o direito ao corpo como produção de diferença deve atender a uma economia libidinal dos prazeres que não esteja ligada aos dispositivos normativos da sexualidade.
Em segundo lugar, pelas dobras eficientes das relações agonísticas de forças travadas no interior do próprio agente. Aqui, na instancia eficiente o essencial consiste em remover todo e qualquer elemento normativo e identitário para construir as condições desmedidas que serão trabalhadas por combates internos ao próprio agente. Em Foucault uma agonística das relações de forças travadas no interior da subjetividade deve aquiescer a um trabalho de si por si empreendido com o propósito de vergar certas forças – submetendo-as ao domínio de outras – para obter um triunfo sobre si. Sendo assim, a eficiência em questão consiste em uma produção de um corpo ativo cujo prazer seja vivenciado pelo sujeito através de um combate que cria a determinação interna indispensável para cuidar de si na contrapartida da vida restrita e disciplinada pelos dispositivos que vigoram na modernidade. Neste combate agonístico o cuidado de si prescreve o indispensável para um bom uso dos prazeres, que deve consistir pela formalização de um saber devidamente subjetivado na próxima dobra.
Em terceiro lugar, existe a dobra da verdade propriamente dita, ou se quisermos a subjetivação da verdade da desmedida na contrapartida das verdades normativas construídas pelos dispositivos de poder. Aqui, o trabalho deve consistir, conjuntamente, na desconstrução graduada de toda uma verdade de poder pela construção subjetiva de um poder da verdade que sustente, nesta dobra formal, um modo de vida de um sujeito diferente, trabalhado na esfera de uma verdade que lhe seja adequada. Cabe acrescentar que a verdade não pode existir sem beleza – algo que Foucault já havia assinalado no seu criterioso estudo desenvolvido no Uso dos Prazeres – e que a ética apreendida nessa conexão deve ser definida como uma estilística da existência.
Finalmente, a dobra do fora ou a interioridade de expectativa; que na era do biopoder irá se apresentar como expectativa de desprendimento ou memória absoluta de uma fora inscrito na pura dimensão da imanência. Mas será tal imanência absoluta pertinente à obra de Foucault? Ou não estaríamos problematizando o filósofo com elementos extraídos das considerações de Deleuze? Será plausível dizer que uma memória do fora seja pertinente a inflexão de Foucault? Ao entendermos que um modo de vida ou uma maneira ética de viver estabelece uma interioridade de expectativa ou de exceção que determina a teleologia do sujeito ético; talvez a memória do fora seja aqui a expectativa de uma vida livre, longe de marcações binárias e de opressões produzidas pelos dispositivos históricos de poder e saber. Nesse nível, é plausível dizer que ela espera do fora a finitude e o desprendimento; buscando na urgência de vida a invenção de uma maneira de viver desprendida das marcações identitárias que habitam a nossa história.
Convém acrescentar, para finalizarmos a nossa proposta, que não estamos reivindicando um retorno aos gregos, nem tampouco propondo a sua imitação. Ao fazermos constar no nosso vocabulário a noção de diferença, buscamos avaliar a sua condição na desmedida do cuidado de si indispensáveis para a constituição de um processo de subjetivação. Assim, o que mostramos, pela repetição cabal das quatro dobras, foram as condições de possibilidade dos sujeitos éticos que se constituem, indubitavelmente, pela dobra de um fora absoluto que constitui uma memória do fora em um mundo onde a convicção da existência de um fora parece, aparentemente, se encontrar liquidada. Nesta memória do fora uma diferença se edifica, tendo o devir e o acaso subjetivados como interioridade de expectativa ou de exceção. Neste dentro absoluto um sujeito se constitui e se impõe como uma diferença afirmada e plasmada pela produção desta memória.
Como a metodologia adotada adveio do método foucaultiano, findaremos dizendo que ao término da consecução concertada destas quatro dobras tivemos as relações consigo construídas como práticas produtoras de diferenças ou como produções de subjetividade diferentes. Seguindo o método de Foucault e, com certeza, aplicando a sua metodologia no presente, cremos ter sugerido algumas pistas indispensáveis para pensarmos as relações consigo no mundo atual. E com isso concluímos a nossa argumentação.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. O que é um Dispositivo? In: O que é o Contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Ed. Argos, 2009. Trabalho original: 2005.
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. São Paulo: Ed. Graal, 2006. Trabalho original: 1968.
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Ed. Brasiliense 2005. Trabalho original: 1986.
DELEUZE, G. O que é um Dispositivo? In: Dois Regimes de Loucos. São Paulo: Ed. 34 letras, 2016. Trabalho original: 1988.
FOUCAULT, M. Surveiller et Punir. Paris: Ed. Gallimard, 1975. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987.
FOUCAULT, M. Histoire de la Sexualité: I La Volonté de Savoir. Paris: Ed. Gallimard, 1976.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1 – A Vontade de Saber. São Paulo: Ed. Graal, 2006.
FOUCAULT, M. Histoire de la Sexualité: II L’ usage de plaisir. Paris: Ed. Gallimard, 1984.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 2 – O Uso dos Prazeres. São Paulo: Ed.Graal, 1988.
FOUCAULT, M. Histoire de la Sexualité: III Le Souci de Soi. Paris: Ed. Gallimard, 1984.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 3 – O Cuidado de Si. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2014.
FOUCAULT, M. Dits et Écrits Vol. III – Paris: Ed. Gallimard, 1994.
VEYNE, P. Foucault – O Pensamento, a Pessoa. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.
Recebido em 31 de março de 2021. Aceito em 2 de maio de 2021. Publicado em 22 de julho de 2021.