Do Caos ao Cosmos: Vida e pensamento na criação de uma arte desmedida
Introdução
A criação de uma obra de arte não figurativa[1] resulta da conjunção de uma vontade embriagada que ativa o pensamento, forçando-o a pensar no combate contra o caos. Como pensar é criar seres de sensações duráveis que darão consistência interna a uma obra que resiste neste combate entrevisto acima, talvez seja preciso narrar a sua gênese procurando na vontade a sua condição empírica.
Assim, a gênese do ato de pensar resulta da relação que faz o pensamento ser ativado por uma vontade estimulada por forças oriundas do fora que violentam primeiramente a sensibilidade. Ao ser violentada por uma intensidade que a faz sentir o que só pode ser sentido, a sensibilidade transmite essa violência às demais faculdades da alma, forçando a imaginação a imaginar além dos seus limites, a memória a rememorar involuntariamente o que só pode ser lembrado e o pensamento a pensar fora do modelo do reconhecimento.
Ao subtrair o pensamento da ação deste modelo, convertemos sua operação à construção de problemas que surgem da intempestividade ocasionada pela embriaguez de uma vontade estimulada na experimentação. Mas como podemos pensar essa vontade embriagada ? Não estaríamos aqui evocando um estado elevado da vontade como a condição experimental que ativa o pensamento, forçando-o a criar uma arte desmedida? Como podemos explicá-la ? A vontade de potência ou de poder” (wille zur macht )[2] é apresentada por Nietzsche como princípio imanente e condicionante das forças constituintes dos corpos. Como neste autor os corpos são compostos de forças, sendo essas existentes em hierarquias definidas por relações; a vontade – como princípio condicionante das relações de forças – manifestar-se-á na capacidade que uma força tem de afetar e de ser afetada por outras forças. Sendo assim, dada uma relação de forças há sempre um princípio condicionando essa relação. É por vontade que uma força se relaciona com uma outra força; que uma força pode se relacionar com uma outra força, sendo a vontade esse querer imanente à relação. Além disso, percebemos que uma vontade se exerce sempre sobre uma outra vontade, procurando expressar–se, manifestar-se, afirmando a sua diferença pela criação de novos valores e pela atribuição de sentidos. Nesses termos, a vontade é para Nietzsche vida que se afirma querendo um aumento de potência.
É bem verdade que na filosofia de Nietzsche a vontade de potência pode se manifestar com duas tonalidades que definem dois modos de existência: ela pode se manifestar no seu apogeu como pura afirmação; ou pode se manifestar como uma vontade de negar a vida em geral, para justificar um modo de vida negativo legitimado pela criação da ficção de um mundo verdadeiro, eterno, transcendente, posto como modelo exemplar das atitudes humanas ao configurar para elas ideais normativos de condutas. Nesse caso, a vontade de negar é um querer dominar, colocando a vida em geral a serviço de valores superiores apresentados como verdades eternas.
Mas quando a vontade se manifesta no seu apogeu, isto é, no seu grau mais elevado – vontade embriagada e puramente afirmativa – o pensamento ativado por essa afirmação é pura criação afirmativa. Ora, é dessa vontade embriagada que partimos para pensar a violência sofrida pelas faculdades percorridas por experiências intensas. Afinal o que são tais faculdades senão forças que só funcionam quando ativadas por outras forças? Se o processo que ativa o ato de pensar e força o pensamento a criar pelo crivo do caos advém da embriaguez; podemos dizer que esta configura o estado de alma imanente ao acordo discordante que violenta as faculdades; e que tal estado supõe estímulos oriundos das experimentações da vontade. Ou seja, as faculdades violentadas pelas experiências intensas iniciadas no campo da sensibilidade são a expressão no seu conjunto de uma vontade embriagada que força o pensamento a pensar na disjunção ocasionada pela violência de um encontro. Sendo assim, os fatos que emergem dos encontros vem a funcionar como um estímulo para a vontade de potência ocasionando uma embriaguez que percorre todos as faculdades tornando possível a criação da arte pelo pensamento. Como diz Nietzsche
para haver arte, para haver alguma atividade e contemplação estética, é indispensável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A suscetibilidade de toda a máquina tem de ser intensificada pela embriaguez: antes não se chega a nenhuma arte. Todos os tipos de embriaguez tem força para isto, por mais diversamente ocasionados que sejam. Sobretudo a embriaguez da excitação sexual, a mais antiga e primordial forma de embriaguez. Assim também a embriaguez que sucede todos os grandes desejos, todos os afetos poderosos; a embriaguez da festa, da competição, do ato de bravura, da vitória, de todo movimento extremo; a embriaguez da crueldade, a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certos influxos meteorológicos, por exemplo, a embriaguez primaveril; ou sob influencia de narcóticos; a embriaguez da vontade, por fim, de uma vontade carregada e avolumada. O essencial da embriaguez é o sentimento de acréscimo da energia e da plenitude. (Nietzsche, 2006, pgs 67-68)
Para nós o essencial da embriaguez é o sentimento de uma vontade avolumada por experiências intensas que ocasionam no pensamento problemas que configuram o ato de pensar. Ali onde pensar é criar problemas que emergem da ruptura com os pensamentos estabelecidos no reconhecimento da realidade e dos seus valores. Ora, quando pensar advém da ruptura com a realidade constituída de ficções e valores consolidados pela opinião, ele então se configura como um ato de criação determinado por um modo de vida ativo percorrido por movimentos nômades e inatuais. Um modo de vida que ousa criar, rompendo com os valores estabelecidos e consolidados pelo bom senso e pelo senso comum. Nesse modo de vida a embriaguez desempenha um papel central: é dela que advém os motivos territoriais que compõem a desmedida de uma obra que salta do caos a um princípio de ordem e abre, por outro lado, tais componentes territoriais a universos de possíveis postos como grandes ritornelos cósmicos[3]. Além disso, em uma obra desmedida – ou nômade como aqui pretendemos nomeá-la – os elementos sonoros são de grande importância, pois, com eles conjugados com as figuras estéticas teremos na obra de arte a condição musical da embriaguez dionisíaca.
Mas antes de entrarmos no pormenor desse aspecto dionisíaco da obra de arte, convém entender que a desmedida de uma arte não figurativa só ganhará total contundência e intempestividade com a compreensão do combate que o pensamento empreende contra a opinião. Nesse caso, necessitamos de um entendimento rigoroso desta forma de pensamento. Diremos que na opinião o pensamento se encontra subjugado à tarefa de reconhecer a realidade com duas atividades que são exigidas para a consecução dessa sua operação: por um lado, ele procura pela via do senso comum atribuir identidades fixas às coisas; por outro. ele visa pelo bom senso antecipar acontecimentos futuros pautados na crença de que eles sejam a repetição regular de diversos acontecimentos passados semelhantes. Se no reconhecimento da realidade existe um modelo recognitivo que o pensamento toma de empréstimo do senso comum para atribuir identidade às coisas; nele as faculdades do espírito funcionam em acordo para a realização de tal atribuição, tendo na identidade do eu pensante o princípio condicionante da identidade do objeto condicionado. Assim, a imaginação reproduz o que a sensibilidade apreendeu, a memória busca a lembrança equivalente a imagem reproduzida pela imaginação e o entendimento legislador – garantido pela identidade do eu pensante – vai procurar o conceito com o qual a identidade será atribuída a coisa conhecida por intermédio de um juízo. Por outro lado, o bom senso permite ao homem fixar uma boa direção para o entendimento, pois dá a ele a possibilidade de antecipar fatos futuros pela crença de que fatos semelhantes ao previsto estavam se repetindo com regularidade no passado. Sendo assim, quando buscamos no bom senso e no senso comum as duas formas com as quais pretendemos construir uma obra de arte, talvez o decréscimo desta aventura advenha do fato dela não ter assumido a sua vocação inatual. Afinal, uma arte razoável pode perfeitamente se impor como representante de um ideal de uma maioria, já que a maioria segue o ideal de uma boa opinião. Mas daí teríamos da arte uma definição restrita e comprometida com aquilo que ela pretende representar: uma arte com clichês, construída com opiniões e feita na lógica da mercadoria, segundo critérios comerciais figurativos. Ora, uma arte industrial empenhada em construir os pilares da representação não é outra coisa senão uma arte comprometida com os ideais de um mercado internacional, e garantida com meios promovidos pelo estado – nação que procura na arte estratégias eficazes de conquista do mercado.
Mas será esta a vocação de uma arte desmedida ? Ou não seria ela antes a determinação de uma dupla ruptura contra o caos e a opinião ? E aqui voltamos a nossa orientação principal que consiste em pensar a violência daquilo que nos força a pensar. Assim, quando a violência irrompe rompendo com o acordo facultativo, as faculdades saem dos eixos pois são forçadas a trabalhar no limite da suas respectivas potências. As intensidades que percorrem todas elas produzem um êxtase que é expressão de uma vontade intensificada que ativa o pensamento e o coloca em relação com forças oriundas do fora. Com a vontade embriagada, a imaginação se torna livre, a memória se torna involuntária e o pensamento se torna criador. Com o desregramento das faculdades – e a embriaguez das suas intensificações – uma imagem artística de um pensamento desmedido – o pensamento do fora – se torna viável. Nela, o ato de pensar acontece fora do seu circuito habitual e a criação advém do combate que o pensamento trava contra o caos. Nesse combate o pensador entra em devir inventando os meios para dar a obra sua consistência. Ou seja, no pensamento do fora, o pensador se torna nômade ao se livrar da opinião e dos fazedores de opinião que se empenham em construir uma imagem dogmática da representação no terreno do próprio pensamento filosófico. Mas como podemos sustentar essa convicção? Talvez construindo de uma forma mais detalhada o liame da representação com a forma estado.
Sendo assim, quando mais acima falávamos do combate contra a opinião, já assinalávamos seu estatuto normativo. Tínhamos de perto a convicção de que representação na esfera do pensamento já esposava princípios oriundos do aparelho do estado, mas não possuíamos ainda a ocasião para estabelecer tal liame. Pois bem, a representação como imagem do pensamento fundada na opinião, oferece ao estado os princípios legislativos com os quais ele irá se instaurar e recebe deste uma gravidade que ele jamais teria por si só. Nessa aliança, o pensamento se apóia no estado e este se dilata no pensamento. Como dizem Deleuze e Guattari,
o estado proporciona ao pensamento uma forma de interioridade, mas o pensamento proporciona a essa interioridade uma forma de universalidade: “ a finalidade da organização mundial é a satisfação dos indivíduos racionais no interior de Estados particulares livre”. É uma curiosa troca que se produz entre o Estado e a razão… visto que a razão realizada se confunde com o Estado de direito, assim como o estado de fato é o devir da razão…Desde que a filosofia se atribuiu ao papel de fundamento, não parou de bendizer os poderes estabelecidos, e decalcar sua doutrina das faculdades dos órgãos de poder do Estado. O senso comum, a unidade de todas a faculdades como centro do cogito, é o consenso de Estado levado ao absoluto” (Deleuze & Guattari, vol V, 1997, pgs 44-45).
Como no mundo atual o estado nação intervém na regulamentação da arte visando a disputa de um mercado internacional, ele irá se dilatar em um pensamento da interioridade empenhado em representar os seus valores na construção de uma obra de arte figurativa e comercial. E isto explica o decaimento da arte quando ela se mostra favorável às expectativas internacionais, se apresentando como uma mercadoria a serviço de um capitalismo mundial de mercado.
E aqui chegamos ao esclarecimento de que o combate contra a opinião é, igualmente, uma denúncia contra uma imagem do pensamento que defende a representação apoiada no ideal do estado posto a serviço de um mercado mundial. Se o resultado da denúncia é o combate contra o caos, nele, o pensamento do fora deve fazer a vez de um pensamento nômade que se confirma ao criar o novo para escapar à representação. Ao afrontar o caos e criar a obra, o pensador inventa uma figura estética que expressa o devir da sua experimentação e evoca, enfim, um povo por vir delimitado no afazer do mundo inaugurado pela obra como um povo minoritário, raça nômade irremediavelmente menor.
Aqui, várias questões nortearão nosso empreendimento: não seria na experimentação dos signos vistos como objetos de encontros que definiríamos o processo que relaciona o pensamento com as forças oriundas do Fora? Não existiria um estímulo para a vontade de potência subtendida nesse processo que desencadearia o processo de criação? O pensamento do fora na criação artística não se relacionaria com uma criação nômade? Na criação nômade de uma obra de arte desmedida não percorreríamos um vetor que vai do caos ao cosmos? E nesta experiência não constataríamos igualmente um devir do experimentador e a invenção de figuras estéticas diversas? Entretanto, todas essas questões serão devidamente respondidas quando nós soubermos na ocasião respondermos à última questão que colocaremos sobre o pensamento da representação: afinal, para que servem as opiniões e do que elas nos protege? É dessa serventia que elas extraem as forças com as quais os poderes de estado deverão implementar a sua lógica.
Do caos à criação
E tudo começa com o crivo no caos. Dele, o pensamento cria as variedades com as quais constrói os seres de sensação que compõem a obra de arte.Ao romper com a opinião, o pensamento cria a possibilidade de crivar o caos para dele extrair suas determinações estéticas. Sendo assim, na arte o pensamento só combate o caos ao crivá-lo, por ter empreendido um combate preliminar contra as opiniões para se livrar, como vimos, das representações que inspiram uma imagem dogmática do pensamento apoiada no ideal do Estado. Ou seja, o ato de criar de um pensamento nômade exige sempre um duplo combate: um contra as opiniões e o outro entreaberto com o vislumbre do caos. Entre os dois engendra-se o ato de criação. Ao combater a opinião o pensamento se livra de obstáculos, mas no confronto com o caos ele mantém uma certa afinidade. Afinal, é dele que saltam as determinações volúveis que o pensamento deve crivar. Do combate contra o caos o pensamento cria a obra de arte; e escapa das opiniões que povoam o vivido. É que na criação da obra de arte devemos descrever o ato de pensar como uma experimentação que se furta ao vivido e desafia o caos.
Ora, um pensamento ativado em um duplo combate, se encontra, como vimos, referido a uma vontade de potência avolumada pela experimentação. Assim, é desta vontade de potência que emerge a intensidade capaz de ativar o pensamento, colocando-o em confronto com as forças do caos. A vontade de potência, princípio imanente que condiciona as relações de forças e intensifica as faculdades do espírito, faz com todas elas se coloquem fora dos seus eixos, ao engendrar, para cada uma delas, uma forma superior de funcionamento. Assim, quando dissemos que as faculdades são capazes de uma forma superior, isto é, que existia uma forma superior para a imaginação, para a memória e para o pensamento, estávamos referindo este leque de atividades ao princípio da vontade como vida que o ocasionava no campo empírico da experimentação.
No entanto, tal vontade avolumada necessita agora da descrição de um estímulo externo que deflagre o ato de pensar no pensamento e produza a condição de sua criação. Nesta nova inflexão, pensar – tal como todo e qualquer verbo no infinitivo – é um acontecimento que advém ao pensamento através da violência ocasionada por um objeto de um encontro que ative a vontade. Objeto de um encontro que ao intensificar a vontade ativa igualmente o pensamento, fazendo-o funcionar. No caso específico do pensamento na arte, tal acontecimento é resultado de uma contemplação estética que coloca o artista em contato imediato com o sensível, isto é, com o que torna sensível uma experiência inaugural do ato de pensar ao criar novas sensações pelo impacto ocasionado na sensibilidade. Ao ter visto e sentido algo intenso demais, o artista foi forçado a pensar pelo impacto de um ser do sensível que deflagrou o ato de criar no seio do próprio pensamento por intermédio de uma vontade estimulada por algo intenso no sensível.
Sendo assim, de todo artista é preciso dizer que ele é um experimentador, narrando sua experimentação como uma atitude de uma vontade que procura sentir e contemplar algo no sensível para ter o grau indispensável de potência que o faça a pensar fora dos mecanismos representativos da opinião. Enfim, pensar é um acontecimento que se engendra no pensamento por uma violência ocasionada pelo “objeto de um encontro”. Quando pensamos fomos forçados a criar sensações para dar ao sensível um novo horizonte de possíveis; mas fomos igualmente forçados a pensar pela força de um “ser do sensível” que nos colocou em um estado de contemplação intenso, de uma embriaguez, onde nela fomos forçados e ver e a sentir o mundo de uma outra maneira.
E aqui chegamos novamente a inquietação que fizemos constar na nossa introdução: do objeto de um encontro ao ato de pensar todo um processo experimental se impôs ao pensamento ativado por uma vontade avolumada que coloca o vivente em uma situação de vidente que viu e sentiu, pela via da contemplação, algo de intenso e grandioso.
Mas o que vem a ser o objeto de um encontro? O ser do sensível que retira a mente da instancia da opinião, colocando o pensamento em confronto com o caos. Mas o que é precisamente o ser do sensível? Algo que só pode ser sentido, isto é, um signo intensivo que resulta da violência de um encontro sofrido pela sensibilidade e que transmite às demais faculdades a intensidade inerente a tal violência. Sendo assim, da sensibilidade violentada ao pensamento ativado fomos forçados a pensar por intermédio de um objeto de um encontro que intensificou a vida, retirando-a da esfera delimitada pelas opiniões. Ao pensarmos no ser do sensível, contemplamos intensamente sensações e nos tornamos compositores do sensível. Quando contemplamos intensamente o ser do sensível somos confrontados com visões inseparáveis de afetos, com paisagens concomitantes com devires que colocam a vontade e o pensamento fora do domínio do reconhecimento. Se neste domínio funcionamos com um gigantesco guarda sol que nos protege do caos, talvez isso explique uma certa praticidade da opinião que venha justificá-la no campo da representação e daquilo que a representação justifica: o ideal do pensamento atrelado ao Estado de direito mantendo a promessa de um caos à distância. É aqui que a pergunta, para que servem as opiniões ?, deve ser, enfim, respondida: na opinião queremos uma ordem para nos proteger do caos e lutamos sem cessar para não perdemos nossas ideias. Afinal, quão doloroso não deve ser um pensamento acometido por ideias que fogem, que mal se esboçam na razão de um instante? Como dizem Deleuze & Guattari
é por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contigüidade, causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa fantasia de percorrer o universo no instante… Mas não haveria nem um pouco de ordem nas ideias, se não houvesse também nas coisas ou estado de coisas, como um anti caos objetivo… ( Deleuze,G. & Guattari, F. 2010, p 237)
Mas se a arte, como dizíamos a pouco, surge pela ruptura com as opiniões, se ela se erige de um caos como uma estrela dançante – como queria Nietzsche –, se é preciso sempre ter um pouco de caos dentro de si para poder criá-la e se ela funciona como um estímulo para a vontade de potência; não deveremos dizer do pensador que ele será sempre aquele que rasga o guarda sol da opinião para fazer passar um pouco de caos em estado puro? Nesse caso, não seria a potência de uma vida avolumada, isto é, de uma vontade embriagada o grande motor desse pensamento do Fora?
Sim, e é neste rasgão que ele extrai das percepções vividas e dos sentimentos corriqueiros, os perceptos e os afetos com os quais ele irá preencher um vazio caótico pleno de determinações que procedem por velocidade infinita, um virtual que não é um nada, mas pura multiplicidade de elementos sem consistência, onde um elemento só aparece tendo o anterior desaparecido. “São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem”(Deleuze & Guattari, 2010, p. 237).
Convém dizer que nesta inflexão não assimilamos o caos a uma desordem, nem contrapomos sua realidade a uma suposta ordem construída pelo ato criador de um ser transcendente. Aqui, pensar é crivar o caos, exercendo em tal atitude um filtro indispensável para a emergência de sensações. Esta é a atividade primária de um pensamento que extrai do caos as variedades indispensáveis para o trabalho de criação da obra de arte. Como dizem Deleuze & Guattari: “ o artista traz do caos variedades, que não constituem mais uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da sensação, sobre um plano de composição, anorgânica, capaz de restituir o infinito. (Deleuze & Guattari, 2010, p. 238). Nesse ser do sensível, ele salta do caos a um princípio de ordem, organiza os elementos direcionais por intermédio de componentes sonoros ritmados e compostos com figuras que irão esboçar um primeiro tempo de um ritornelo posto como matriz elementar de um esboço de obra[4]
Ou seja, a arte desmedida começa quando o pensador compõe – a partir do caos – um composto anômalo de sensações com os quais ele constrói a sua obra. Sendo a sensação um composto de afetos e perceptos e estando esta posta em entrelace com outras sensações por intermédio de movimentos aberrantes, existe na construção dessa obra de arte uma composição deformante de sensações que se consolida quando a obra ganha consistência adequada para manter as forças do caos do lado de fora. A vontade de potência do pensador quando cria os seus monumentos de sensações consiste, rigorosamente, na operação de um crivo que faz saltar o pensamento do caos a um esboço de ordem, isto é, a um centro estável que dará inicio à construção da morada nômade.
Por isso, sustentamos que essa atividade artística consiste em uma criação de um bloco de sensações, onde nela extraímos das percepções do vivido puros perceptos concebidos como paisagens inumanas da natureza – paisagens não humanizadas pela opinião – e puros afetos entendidos como devires inumanos do homem. Na composição dos afetos e dos perceptos livres dos clichês da opinião, afrontamos o caos para, com ele, erigirmos o plano de composição das sensações trabalhadas e empenhadas para a criação da obra de arte. Nesse contexto, o pensador é um compositor que aplica o pensamento sobre uma matéria sensível, para, com ela, trabalhar as sensações criadas pelo crivo no caos. Assim, ele externa a sua vontade avolumada traçando o plano de composição das sensações.
Entretanto, convém detalhar direito a anomalia do procedimento que faz surgir o monumento artístico a ser criado. Se, por um lado, a vontade embriagada do artista abre uma fenda no guarda sol da opinião, por outro ele pretende fazer passar um pouco de caos livre para enquadrá-lo em uma luz brusca, uma visão que aparece através da fenda. Assim, é por destruições necessárias dos clichês da opinião que uma reserva de caos torna possível a criação de novas sensações. Como dizem Deleuze & Guattari,
A arte luta efetivamente com o caos, mas para fazer surgir nela uma visão que a ilumina por um instante, uma Sensação… Uma obra de caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião, a arte não é mais feita de caos do que de opinião; mas se ela se bate contra o caos, é para emprestar dele as armas que volta contra a opinião, para melhor vencê-la com armas provadas… A arte não é o caos, mas uma composição do caos, que dá a visão ou sensação, de modo que constitui um caosmos, como diz Joyce, um caos composto – não previsto, nem preconcebido… A arte luta com o caos, mas para torná-lo sensível. ( Deleuze e Guattari,2010 pgs. 240 – 241)
Como diz Paul Klee o objetivo da arte é tornar visível pela criação aquilo que não seria possível sem a obra de arte. Em Deleuze & Guattari a arte torna sensível pensamentos que se incorporam em uma matéria trabalhada para exprimir os afetos e os perceptos que entraram no composto de sensações. Assim, de um grande artista é preciso dizer que ele é um compositor que compõe sensações para dar ao pensamento uma incorporação sensível ao criar, pela composição, uma morada territorial construída em proteção ao caos. Nesta, ele institui uma abertura que segue o vetor de um infinito cósmico entreaberto na própria construção da morada. Agora, com a retomada do título “Do Caos ao Cosmos” justificamos o movimento de um pensamento que cria uma obra de arte pelo crivo do caos para seguir o vetor do infinito em uma abertura para o cosmo. E este é, na nossa inflexão, o afazer de um pensamento embriagado que inaugura uma nova possibilidade cosmológica. Uma possibilidade, diremos, enfim, nômade
A Construção de uma morada e o devir do criador
Na arte o crivo no caos é a condição de um pensamento que cria as suas variedades sensíveis para trabalhá-las no entorno de um centro estável. Nesse nível, a criação começa com a construção de um território que consiste na livre exploração de meios diversos através de atos e de gestos empenhados na produção de uma matéria expressiva. Tal trabalho consiste em proteger as forças do meio que se encontram ameaçadas pelas forças do caos, mantendo estas do lado de fora pela construção de uma morada tornada expressiva. Ou seja, há na construção de um território uma série de atos e gestos implicados no propósito de fazer a obra consistir. Sendo esta um composto territorial desmedido, estando este entreaberto para um plano de composição que contêm elementos sonoros e figuras, talvez a desmedida dessa obra exija de nós a compreensão desse do movimento complexo da criação. Mas como podemos detalhá-lo ? Concebendo a criação dos compostos de sensações como uma atividade inseparável do traçado de um plano de composição que plasma a obra em um horizonte de possíveis.
Assim, a obra de arte começa a ser criada no momento em que a composição de sensações evoca uma terra pela construção de um território erguido como monumento artístico. Ao compor sensações – afetos e perceptos – o artista coloca as forças da terra no entorno de um território para manter as forças caóticas a uma certa distancia. Assim, a arte surge na construção de um território ritmado por atos e posturas que tornam as forças terrestres expressivas. Existe arte toda vez que investimos em um meio por intermédio de atos tornados expressivos e compomos com tais movimentos, monumentos estéticos que são agregados de sensações. O compositor de sensações reage ao caos com tais variedades sensíveis abrindo horizontes através de uma morada territorial[5].
Ora, ao pensarmos dessa maneira, teremos, com certeza, uma unidade de composição que pode ser emprestada a todas as artes. Sendo verdadeira a ideia de que a obra de arte é um composto de sensações, devemos dizer que tal composição se encontra na pintura, na música, na dança, na literatura, no cinema, na poesia e nas artes plásticas em geral; e que todo grande artista – como um grande compositor – investe o sensível para acalmar o caos dando a ele uma estabilidade estética. Ou seja, o artista reúne no sensível uma matéria de expressão com a qual ele cria as sensações que extraiu do vazio mental para dar uma consistência estética ao monumento artístico. Mas a obra como um composto de sensação tem prosseguimento no momento em que a morada prossegue na construção de um território. Ao construir a casa, a morada na qual o monumento se erguerá, o artista torna expressivo um meio ao fazer surgir um monumento de sensações. Ora, com tal empreendimento não constitui exagero imputar à arquitetura a condição de primeira das artes; nem tampouco pensar no horizonte sonoro das artes em geral, a música como aquela que irá fazer consistir um imenso ritornelo cósmico na nossa versão de uma arte desmedida.
Por enquanto, a proteção da morada, que mantêm à distancia as forças do caos por forças terrestres tornadas expressivas são concomitantes ao trabalho expressivo de um artista que torna sensível um pensamento estabilizado por sensações. O monumento artístico que se instaura na terra ganha um suporte sensorial e criva o pensamento, fazendo nascer um território existencial.
Sendo assim, do caos ao centro estável, surge a morada com a composição territorial: as sensações cintilam no espaço entreaberto pela obra e o monumento se consolida conjugando afetos, perceptos e ideias estéticas traçadas por um pensamento incorporado na região da obra. Além disso, a criação da obra de arte pela vontade de potência do criador confere a este um devir sensível cuja consistência será sustentada pelas figuras estéticas que ele inventa para habitar a obra. Ao tornar expressiva uma matéria qualquer, evocando-a com posturas, cantos e paisagens; o artista constrói os seus monumentos povoando-os com personagens rítmicos e paisagens pictóricas ou melódicas. No entrelace das sensações, no corpo a corpo em que elas se atam, se desatam e se impõem, o monumento vibra através de um material tornado consistente e determinado como uma moldura que comporta uma abertura para o infinito. Os personagens rítmicos, por sua vez, farão o movimento da obra testemunhando o devir outro do criador, um devir inseparável de uma experiência estética que coloca a mudança no cerne do próprio pensamento[6].
Nesta inflexão, devir não é uma transformação como se concebe no âmbito da experiência vulgar pois não nos transformamos em uma outra coisa; nem tampouco ele é uma imitação concedida como representação de um protótipo real. Por exemplo, no devir-mulher de um homem não há transformação do homem em mulher, não existe o termo final no qual devimos. Nem há igualmente um homem imitando uma mulher. Na experiência da criação artística o devir do criador tem uma consistência nele mesmo como o agente de enunciação da obra criada. Não existe o termo mulher do criador, mas o devir-mulher acontece na figura estética que coloca a obra em movimento, ou melhor, que participa ativamente do movimento da obra. Assim, pode haver um devir-mulher na criação de uma obra de arte, mas pode, igualmente, haver devires – animais, vegetais, imperceptíveis ou moleculares, etc. Serão, não obstante, minoritários como linhas de fuga de uma minoria que recusa a língua padrão construída para mobilizar a opinião.
Os devires acontecem na obra e consistem de afetos e perceptos que animam as figuras estéticas que dramatizam a arte. As figuras estéticas testemunham o devir do criador ao se tornarem os agentes pensadores que colocam em andamento a obra. No caso de uma arte desmedida, as figuras estéticas testemunham pelo movimento aberrante que compõe a obra, se manifestando em cenas nômades as mais variadas. Assim, dos falsários de Orson Welles, que compõem uma variedade de figuras estéticas cinematográficas – apresentadas pela figura do narrador no seu majestoso filme F for Fake ( Deleuze, As potencias do falso In: Cinema II – A Imagem-Tempo-, às figuras que animam a literatura guerreira de Kleist[7]; dos personagens interpretados por um vigarista no barco do romance “O vigarista” de Helmann Melville (Deleuze, As potencias do Falso In Cinema – A imagem- tempo) às figuras que são pintadas de forma brilhante por Francis Bacon na sua pintura de sensações[8], assistimos a textura de uma arte desmedida não compromissada nem regulamentada por uma vontade de verdade, mas que faz do falso, como veremos, a mais alta potência da criação. Nela, uma embriaguez contamina o processo, levando-o ao horizonte de um gigantesco ritornelo cósmico, pensado em Nietzsche, como veremos, por intermédio da música.
Mas como a invenção de uma figura estética pode expressar o devir de um criador nômade? Pela disposição de um pensamento empenhado em construir um mundo possível através da obra. Nesse caso, para não cairmos na solução fácil de reduzir o devir a uma representação do pensamento – coisa que é sempre possível quando se reduz a obra de arte a uma representação da realidade – convém esclarecer que ao inventar uma figura estética, o pensador nomeou um devir outro da experiência estética posta como uma experimentação do pensamento.
Nesse caso, o devir existe toda vez que criamos para além da nossa expectativa coloquial. Há devir na arte e na filosofia e eles se externam por intermédio dos pensadores dessas disciplinas que expressam a mudança ocorrida na criação. Na filosofia a criação do conceito é inseparável da invenção dos personagens conceituais e na arte o monumento é animado pelas figuras estéticas. Mas seria o mesmo devir? Ou não existe uma diferença sutil entre os personagens conceituais inventados pela filosofia e as figuras estéticas inventadas na arte? Acreditamos que sim, pois na arte o devir sensível das figuras estéticas contém a consistência dos blocos de sensações, isto é, as figuras estéticas são seres de sensações; já os personagens conceituais habitam um plano conceitual e se apresentam como puros pensadores encarregados de dar pleno movimento ao conceito. Nesses termos, seguimos Deleuze e Guattari quando diferem o devir nas artes do devir na filosofia: segundo os autores
as figuras estéticas ( e o estilo que as cria) não têm nada a ver com retórica. São sensações: perceptos e afetos, paisagens e rostos, visões e devires. Mas não é também pelo devir que definimos o conceito filosófico, e quase nos mesmos termos? Todavia as figuras estéticas não são idênticas aos personagens conceituais. Talvez entrem uns nos outros, num sentido ou no outro, como Igitur ou como Zaratustra, mas é na medida em que há sensações de conceitos e conceitos de sensações. Não é o mesmo devir. O devir sensível é o ato pelo qual algo ou alguém não para de devir – outro (continuando a ser o que é ) girassol ou Ahab, enquanto que o devir conceitual é o ato pelo qual o acontecimento comum, ele mesmo, esquiva o que é. Este é heterogeneidade compreendida numa forma absoluta, aquele alteridade empenhada numa matéria de expressão, O monumento não atualiza o acontecimento virtual, mas o incorpora ou o encarna; dá-lhe um corpo, uma vida, um universo. É assim que Proust definia a arte – monumento, por esta via superior ao “vivido”, suas “diferenças qualitativas”, seus “universos” que constroem os seus próprios limites… Estes universos não são nem virtuais, nem atuais, são possíveis, o Possível como categoria estética (um possível senão eu sufoco ) ( Deleuze, G. & Guattari, F., 2010, pgs 2019 -210)
Ora, a existência desse universo de possíveis, de um plano pleno de possibilidades traçado pela composição da obra de arte; torna o devir na arte a expressão de uma morada entreaberta para um fora. Se o território configura a existência do monumento ao conferir-lhe um composto de sensações, na arte é preciso que ele se plasme sobre um cosmo infinito apresentado na nossa inflexão como um horizonte de possíveis. Ou seja, é preciso abrir a morada para forças cósmicas que comporão com a casa o infinito de um mundo possível[9].
Sendo assim, no devir do artista existe o desafio de construir o monumento para tornar possível uma nova maneira de pensar por intermédio de sensações. Ao compor sensações o pensador criva o caos e constrói, é bem verdade, a obra, mas agora ele deve abrir o composto para forças cósmicas traçando, com elas, um universo pleno de possibilidades.
O que temos então ? Um duplo movimento inerente a criação da obra de arte: em um primeiro momento dissemos que o objetivo da arte era tornar sensível e agora dizemos que ao tornar sensível ela, igualmente, torna possível uma nova maneira de existir ao criar o plano de consistência nômade fora das demarcações estatais. Sendo assim, a finalidade da arte é tornar possível e isto exige um escrutínio especial dessa noção.
Ao tornar possível a arte cria possibilidades de vida
O Possível na arte não deve ser confundido com a categoria lógica que se opõe ao real. Pois na lógica o possível só possui uma realidade mental. Assim, quando dizemos que algo é possível estamos quase sempre nos referindo a um acontecimento que pretendemos realizar, mas que se encontra na nossa mente como uma representação desprovida de uma realidade externa. Nesses termos, o possível é o que ainda não se tornou real e depende, para acontecer, da intenção de um sujeito que procura realizá-lo. Quando realizamos um possível buscamos, com relativa segurança, meios adequados de garantir as nossas intenções. Pela via da realização asseguramos nossa estabilidade diária, mantendo os nossos esquemas habituais e as nossas moradas existenciais.
Já na arte o possível torna-se uma categoria estética e, com ela, ganha uma nova inflexão: tornar possível agora não é mais realizar as intenções já consolidadas na opinião; mas antes abrir horizontes tornando viável uma nova maneira de viver. Ao tornar possível a arte cria possibilidades de vida com o seu universo de sensações. Ela abre os horizontes da vida dando a esta um potencial ativado por novas sensações construídas na abertura de um mundo possível.
Nesse caso, tornar possível e realizar possíveis são expressões com sentidos diferentes e vetores opostos: quando realizamos possíveis, queremos, com tal atividade, manter a morada cotidiana estável; mas quando tornamos possível já não pretendemos tal garantia; entramos no mundo da criação e procuramos, com a obra, criar novas moradas estéticas. Sendo assim, tornar possível é a tarefa da nova morada estética que emerge do esgotamento dos possíveis inerentes do mundo banal. Quem cria possíveis realiza o impossível quando nada é mais possível, ou seja, quando o possível posto como reserva de opiniões e clichês se esgotou. Por isso, pensar na arte é criar possíveis através de monumentos de sensações construídos no vetor de um infinito cósmico.
No pensamento do fora, criar possíveis é inseparável de um combate contra as possibilidades ofertadas pelo campo social. Nesse nível, a criação deve ser compreendida como uma experimentação política que privilegia o novo e traça o plano infinito da composição das artes. Nessas políticas das artes desmedidas um movimento nômade prevalece no vetor traçado pela obra que resulta de uma vontade de potência que enaltece o sensível precipitando o devir. Aqui, a embriaguez da vontade de potência busca a imanência plena pela afirmação de um eterno retorno de um instante visto como a sua expressão. Em Nietzsche, o eterno retorno do instante é visto como eterno retorno de um ser que se afirma de um devir. Ele ocorre para a embriaguez de um modo de vida que afirma o querer que se diz de um instante, para todas as vezes.
Com Nietzsche, tal inflexão ganhará um novo relevo: a arte plasmada pelo devir combate o caos e se enlaça no cosmos, sendo a expressão de um eterno retorno do devir conservado por um bloco de sensações. A conservação da obra e a sua restauração supõem repetições de gestos, de posturas, de atos e cantos que no conjunto conferirão uma duração que conserva um agregado de sensações que emergiram de instantes dispersos e caóticos. Entretanto, ao criar possíveis a arte traça uma linha de fuga na direção de um infinito cósmico. Constrói, por um lado, uma ronda, uma pista, um ritornelo estéticos condizentes com a duração do composto de sensações; mantém a casa das sensações plasmada sobre um território e conecta essa morada com forças cósmicas.
É no enlace das sensações, nas composições consistidas em uma moldura pictórica ou cinematográfica, em um espaço traçado pela dança ou composto por afetos e perceptos sonoros – paisagens melódicas e personagens rítmicos – que as artes constroem monumentos que são verdadeiras moradas estéticas. A construção de uma morada pela pintura, pela dança, pelo cinema e pela música colocam em cena gestos e atos que encenam – pela repetição ritmada dos compostos – a textura do movimento que dará consistência à obra de arte. No entanto, o devir desmedido de uma obra acontece quando ela se conecta com o infinito cósmico, buscando um horizonte de composição fora das demarcações políticas e estatais das artes que representam os Estados. É aqui que sua vocação política se torna evidente: na desmedida de uma arte construída pelo crivo do caos e aberta para um horizonte cósmico, assistimos a expressão de um pensamento do fora motivado por uma vontade embriagada que faz do devir o seu plano de composição. Como devemos configurar esta política ?
Conclusão: Do Caos ao cosmos: Embriaguez, pensamento nômade e arte desmedida
Pela concepção de arte construída por Nietzsche na sua tentativa de unir pensamento e vida – vista aqui como vontade de potência. Com efeito, o filósofo consagra à arte uma dupla tarefa: ser um estimulante da vontade de potência; e ser a mais alta intensidade dessa vontade. Como estimulante da vontade de potência vê-se, com clareza, que Nietzsche busca recurso na arte para criticar os valores da vontade de negar. Ao dizer que a arte redime o sensível ele busca na obra a expressão de uma vontade afirmativa cujo produto transmite a desmedida da qual ela nasceu. Ou seja, sendo a arte uma expressão da embriaguez da vida ela produz – com seu composto de sensações – os afetos e os perceptos que estimulam a vontade a ativar o pensamento.
Ocorre que em Nietzsche é a filha da embriaguez que se apresenta, igualmente, como a mais alta potência da vontade. Nesse caso, a arte aparece como a criação de uma vontade embriagada que força o pensamento a combater o caos rompendo com a opinião. Ou seja, é a embriaguez de uma vontade que aciona o pensamento, forçando-o a pensar fora das medidas instituídas pelo bom senso e pelo senso comum. Com tal atrevimento pensar é criar uma obra de arte pelo crivo inaugural do caos. Sendo assim, é nesse duplo procedimento que assistimos, com relativa clareza, o movimento de uma vontade desmedida que desafia a opinião para criar uma estrela dançante através de um pensamento do fora que criva o caos.
Nessa política da vontade de potência a recorrência ao fora define a exterioridade de um pensamento nômade. Ao abordar o pensamento de Nietzsche, Deleuze, certa vez, situou o pensador como um nômade, relacionando o seu procedimento a um pensamento do fora consagrado à criação de valores ativos ou, se quisermos, à criação de novos valores construídos pela mudança de qualidade na vontade de potência. Assim, Nietzsche foi situado na aurora da contracultura e a arte – professada no par Dionísio e Apolo – foi incorporada no seu estilo com o advento do poema e do aforismo(Deleuze, Pensamento nômade in A ilha Deserta, 2006). Nessa circunstancia, Deleuze queria apresentar o pensamento do fora como um nomadismo filosófico e apresentava o afazer de Nietzsche como uma anomalia guerreira, colocando tal exterioridade no vetor da afirmação da vida e do devir.
Em um outro livro, Deleuze, em colaboração com Félix Guattari, retomou Nietzsche para explicitar a exterioridade da máquina de guerra na esfera da noologia. Explicitaram tal procedimento no platô – Tratado de nomadologia – a máquina de guerra ( Deleuze & Guattari, vol V, 1997) – e situaram Nietzsche ao lado de Kleist e Artaud . Nesse platô, curiosamente, o pensamento do fora foi a expressão de um modo de vida nômade que se apresentava na forma de um contra pensamento que testemunhava a existência de uma máquina de guerra. No texto, Deleuze e Guattari situam Nietzsche contra os filósofos funcionários públicos, ao dizerem que
a noologia entra em choque com contra-pensamentos, cujos atos são violentos, cujas aparições são descontinuas, cuja existência através da história é móvel. São os atos de “um pensador privado” por oposição ao professor público: Kierkegaard, Nietzsche, ou mesmo Chestov…Onde quer que habitem é a estepe ou o deserto. Eles destroem as imagens… Todavia, “pensador privado” não é uma expressão satisfatória, visto que valoriza uma interioridade, quando se trata de pensamento do fora. Colocar o pensamento em relação imediata com o fora, com as forças do fora, em suma, fazer do pensamento uma máquina de guerra, é um empreendimento estranho cujos procedimentos precisos pode-se estudar em Nietzsche… ( Deleuze & Guattari,vol. V, 1997, p. 46 )
Ou seja, em Nietzsche o pensamento do fora é uma máquina de guerra que encontra na filosofia a oportunidade de criação de conceitos nômades; mas que busca sua efetuação na arte da embriaguez pela elevação da vontade de potência. O que queremos insinuar com tal enunciado? Estaria Nietzsche porventura colocando a arte no porvir da filosofia? Não cremos, uma vez que ele também critica manifestações artísticas contidas por representações morais. Na realidade, a busca de Nietzsche por uma arte nômade é inseparável da sua vontade de potência embriagada. Se por um lado, ela cria na filosofia conceitos afirmativos pela afirmação do devir; por outro, ela busca na construção de uma obra de arte o equivalente estético da embriaguez desmedida vista aqui como a mais alta potência da vida. Ou seja, como filósofo artista, Nietzsche faz apelo a artistas nômades que constroem na obra de arte o equivalente da filosofia da máquina de guerra. Como é tal obra de arte?
Trata-se de uma arte que contesta a vontade de verdade que constrói o mundo moral, se apresentando na sua mais alta potência ao criar monumentos falsos para enaltecer a vida. Nessa mais alta potência do falso ela aparece como a expressão de uma vontade embriagada que quer abandonar a pátria e partir na direção do cosmos. Um caosmos construído à revelia de uma ciência normativa sujeitada a um ideal de verdade ? Sim, pois a vontade de verdade em Nietzsche é um sintoma de uma vontade esgotada de si e apresentada como uma vontade de negar o devir. Na contrapartida dela, Nietzsche pensa a criação da obra de arte como a expressão de um pensamento intempestivo ativado por uma vontade avolumada que busca no movimento infinito a condição nômade do seu vetor na direção do cosmo. Uma arte apátrida, uma arte cósmica feita na evocação de um povo nômade, de uma raça bastarda e irremediavelmente menor. Além disso, uma obra de arte desmedida, onde nela são inventadas as figuras estéticas as mais variadas para desempenharem os movimentos rítmicos de uma vida que se critica ao criar o vetor do seu movimento.
É que na arte nômade as figuras estéticas devem denunciar aquilo que na vida expressa o mais baixo grau da vontade de potência; e apresentar a mais alta potência do falso por intermédio de figuras estéticas não comprometidas com a negação do movimento e da mudança. Figuras estéticas, convém lembrar, que não julgam mais a vida, mas fazem desta a fonte da criação, da novidade e da mudança.
Ora, uma arte que enaltece o novo e busca pela criação das sensações a invenção de mundos possíveis, não é uma arte construída pela ambição de uma vontade de verdade. Nela, há um predomínio do falso consagrado como a mais alta potência da arte que evoca o novo e a possibilidade de ruptura com as verdades estabelecidas. Mas o que pretendemos com a intensificação de todos esse enunciados? Dizer, finalmente, que a arte nômade é, com certeza, uma potência do falso voltada contra a vontade de verdade que animam os procedimentos artísticos contaminados de moral. Assim, a obra de arte desmedida aparece aqui como a mais alta potencia do falso de uma vontade embriagada que aciona o movimento infinito de um pensamento que percorre o universo com a construção de um ritornelo cósmico.
Na ronda cósmica deste grande universo, a obra desmedida se abre para as forças cósmicas que anunciam o plano de composição da arte. Assim, do caos ao cosmos vemos o terceiro elemento se configurar na adjacência de uma obra cuja desmesura faz ver e sentir as forças sonoras e as imagens do universo que esboçam nas suas texturas variadas o infinito com o qual a arte se conecta ao romper com os modos sensatos de viver. Na morada extemporânea de uma arte desmedida retomamos um cosmos traçado como o devir de um pensamento que se plasma sobre um plano infinito de composição. Se denominamos tal procedimento pela desmedida da sua motivação, o fizemos, por notarmos na anomalia da criação estética a vocação nômade de uma arte errante que sai do caos e coloca a terra na direção de um horizonte cósmico. Nesse horizonte, prevalece, enfim, uma vontade de estabelecer uma convergência final entre o conceito de ritornelo construído na filosofia de Deleuze e Guatarri e o horizonte da música entrevisto na embriaguez dionisíaca de Nietzsche.
Comecemos por este último: ao fazer da embriaguez da vontade a condição fisiológica da obra de arte, Nietzsche se encontrava, na ocasião do escrito O crepúsculo dos Ídolos, retomando uma tese já exposta no seu primeiro livro intitulado O nascimento da tragédia. Neste texto, ambicioso e difícil, a embriaguez foi postulada a partir de um impulso apresentado pelo conceito de Dionísio, visto como uno – primordial e responsável pelo espírito da música. Ao lado desse impulso, Nietzsche situou Apolo como o impulso responsável pela bela aparência, pelo principio de individuação e pela unidade formal do belo. Assim, os dois impulsos da arte – “os deuses” Apolo e Dionísio – constituíam a condição de uma distinção entre as artes figuradas – tais como as artes plásticas – que eram postuladas pelo conceito apolíneo; e as artes não figuradas da música condicionadas pelo impulso Dionisíaco. No nascimento da tragédia Apolo – deus do sonho e responsável pela bela aparência – e Dionísio – deus da embriaguez evocado no transbordamento musical – apareciam como os dois impulsos condicionantes da experiência estética que se conjugavam na arte trágica.
Já no “Crepúsculo do ídolos”, Nietzsche introduziu uma tenaz modificação no livro anterior ao afirmar a existência de uma embriaguez apolínea. Nessa formulação final o dionisíaco e o apolíneo passaram a se distinguir no cerne da embriaguez como experiência primordial e a diferença passou a se estabelecer entre os modos de embriaguez. Segundo Nietzsche,
a embriaguez apolínea mantêm sobretudo o olhar excitado, de modo que ele adquire a força da visão. O pintor, o escultor, o poeta épico são visionários par excellence. Já no estado dionisíaco todo o sistema afetivo é excitado e intensificado; de modo que ele descarrega de uma vez todos os seus meios de expressão ( Nietzsche, 2006, p. 69)
Em Nietzsche, a partir da conclusão extraída do texto acima, é possível relacionar uma embriaguez a toda e qualquer experiência artística. Há, não obstante, uma vantagem atribuída ao espírito da música, uma vez que, nela, a embriaguez aparece na sua total intensidade livre de toda e qualquer tentativa de figuração. Ou seja, uma música dionisíaca deve expressar o mais alto grau de intensidade de uma vontade de potência embriagada quando ela se apresenta como uma música desmedida plasmada sobre o universo. Claro está que esta música não deve ser contida por um procedimento tonal que submeta os seus elementos a simplicidade de uma ária melódica e de um motivo harmônico. Na diagonal constituinte de uma música desmedida, uma abertura para o universo se instaura pelo movimento que rompe com a moldura da casa musical, instaurando a abertura para as forças do cosmos.
Ora, de acordo com essa construção nada impede que uma obra de arte desmedida possa ter também a pretensão musical de romper com os limites figurativos que mantém a arte na esfera restrita da figuração. Sendo assim, quando isto acontece, é possível falar de uma arte desmedida que conjuga elementos sonoros com a deformação das suas figuras; inventa figuras estéticas e traça – na deformação do seu procedimento – o vetor de marcha em direção ao cosmo por intermédio de um processo nômade de construção de um grande ritornelo cósmico.
Não é possível dizer que uma obra de arte desmedida equivalha ao procedimento da construção de um grande ritornelo. Mas é possível, com certeza, admitir que no traçado de uma grande morada construída com blocos de sensações, um ritornelo cósmico se encontre em andamento através de artistas que traçaram um plano de composição sonoro ou de artistas que entenderam que no plano de composição das sensações as figuras e os sons são inseparáveis de composições de pequenos ritornelos que serão carregados por um grande ritornelo cósmico. A esse respeito, o que Deleuze e Guattari dizem sobre uma arte desmedida na música que rompe a moldura tonal da casa para plasmá-la na abertura de um cosmo contém o essencial da nossa argumentação:
Passa-se da Casa ao Cosmos ( segundo uma fórmula que a obra de Stockhausen retomará). O trabalho do plano de composição se desenvolve em duas direções que engendrarão uma desagregação da moldura: os imensos fundos da variação contínua que fazem enlaçar ou se unir as forças tornadas sonoras, em Wagner, ou os tons justapostos que separam e dispersam as forças agenciando suas passagens reversíveis, em Debussy. Universo Wagner, Universo Debussy, Todas as árias, todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquadrados, infantis, domésticos, profissionais, nacionais, territoriais, são carregados no grande Ritornelo, um potente canto da terra – o desterritorializado – que se eleva com Mahler, Berg ou Bartók. E sem dúvida o plano de composição engendra sempre novas clausuras, como na série. Mas, sempre, o gesto do músico consiste em desenquadrar, encontrar a abertura, retomar o plano de composição, segundo a fórmula que obceca Boulez: traçar uma transversal irredutível à vertical harmônica como à horizontal melódica que conduz blocos sonoros à individualização variável, mas também abri-las ou fendê-las num espaço-tempo que determina sua densidade e seu percurso sobre o plano. O grande ritornelo se eleva à medida que nos afastamos da casa, mesmo se é para retornar à ela, já que ninguém mais nos reconhecerá quando retornarmos. ( Deleuze & Guattari,2010, p.226)
Aqui concluímos a nossa hipótese de uma arte desmedida com a seguinte inflexão: se no universo da música a embriaguez ditou o meio do traçado de um grande ritornelo, na esfera da composição artística a deformação de uma arte desmedida tende ao traçado de um plano de composição que inclua elementos sonoros. Sendo assim, a composição passa ser a única definição da arte e a estética da embriaguez o seu movimento singular. No texto por nós proposto caminhamos na direção de um plano de composição pelo traçado de um ritornelo cósmico; pois fizemos, é bem verdade, considerações intempestivas com Nietzsche para escolhermos o nosso objeto. Assim, fizemos do pensamento do fora um pensamento nômade e buscamos, enfim, na música a inspiração para construção de um movimento criativo desmedido traçado no vetor instaurado pelo combate contra o caos indo na direção de uma linha errante cósmica.
E aqui, para terminarmos a nossa intervenção – marcada pela insensata criação que autoriza o novo pela via do disparate – diremos que a vocação dessa arte desmedida se mostra no apelo que ela faz a um povo menor que exprime a sua potência de criar o novo para fazer fugir a realidade estabelecida e configurada pelos poderes estatais e capitais. Uma arte nômade é uma arte menor, mas extremamente extravagante. Menor por não agradar aos anseios de uma maioria que busca a estabilidade do presente, extravagante por buscar na potência de um povo menor a altivez de uma vida que busca a fuga da realidade opressiva pelo traçado de um movimento cósmico.
Referências Bibliográficas
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DELEUZE, G & GUATTARI, F. Acerca do Ritornelo In. Mil platôs, vol IV. São Paulo: Ed: 34 letras, 1997
DELEUZE, G & GUATTARI, F. Tratado de nomadologia – A máquina de Guerra in Mil platôs, vol V. – São Paulo: Ed: 34 letras, 1997.
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NIETZSCHE,F. O nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1992
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RANCIÈRE, J. O Inconsciente estético. São Paulo: Ed: 34 letras, 2009
[1] Figurativo é o estilo de certas obras de arte que aparecem como a expressão de um pensamento poético que diz que a função da arte é imitar a natureza, isto é, realizar aquilo que a natureza por si mesma não foi capaz de fazer. Tal estilo apóia-se, no nosso entendimento, em uma forma de pensamento inspirada na poética de Aristóteles que defende que o ideal da representação da natureza deva ser o destino superior da obra de arte. Aqui, questionaremos tal ideal, defendendo a ideia de uma arte não figurativa que busca o novo pelo combate contra a opinião. A crítica ao figurativo na arte pode ser perfeitamente lida no ensaio de Gilles Deleuze sobre Francis Bacon – capítulos 1 e 2 – e na abordagem de Jacques Rancière – escrita no livro o inconsciente estético, capítulos 1 e 2 , quando este contrapõe a concepção da estética à poética de Aristóteles.
2 – Vontade de poder segundo certas traduções diretas do alemão. Aqui mantivemos a expressão vontade de potência, para estabelecermos uma diferença sutil entre a vontade vista no seu mais alto grau de potência e a vontade no seu mais baixo grau. No primeiro caso teríamos a vontade de potência como uma virtude que doa; no segundo teríamos a vontade de potência como uma vontade de poder assimilada a um querer dominar. Assim, vontade que doa ou querer dominar apareceriam como graus distintos da vontade de poder. Sobre essa diferença entre os graus na vontade de poder recomendamos a leitura do Assim Falou Zaratustra – de Nietzsche: II – “ Da superação de si mesmo” pgs: 108 – 111 e Nietzsche e a Filosofia – de Deleuze: cap. 2 pgs 76-80.
[3] Ritornelo é um conceito construído por Deleuze e Guattari no mil platôs que será utilizado no nosso ensaio. Derivado da notação musical tal conceito se constitui em um triplo movimento que pode ser descrito de duas maneiras simultâneas: em primeiro lugar, o ritornelo tem três aspectos simultâneos envolvidos na sua construção; em segundo lugar, ele possui componentes expressivos atravessados por um vetor que vai do caos à construção de um território e deste à abertura para um plano de composição que constitui um universo cósmico. No primeiro aspecto, salta-se do caos a um esboço de ordem, traça-se sobre o centro uma morada e abre-se a morada para as forças cósmicas; no segundo aspecto, tal simultaneidade se explicará pela construção de um território constituído por componentes sonoros e figuras expressivas que comporão personagens rítmicos e paisagens melódicas. Cabe acrescentar que o ritornelo não será conceituado diretamente no nosso trabalho, mas será utilizado na construção dessa obra de arte desmedida. Nesse sentido, faremos várias alusões ao conceito ao longo da nossa construção, sendo essa primeira abordagem apenas um esclarecimento inicial do gigantesco ritornelo cósmico que a arte não figurativa deve expressar. Acerca do ritornelo recomendamos a leitura do Mil platôs – de Deleuze & Guattari, vol 4 – Acerca do Ritornelo, pgs 115 -117
[4] primeiro momento do ritornelo inerente a construção de nossa arte desmedida. Assinalamos mais uma vez que a construção desse texto como um ritornelo, exige, no seu procedimento, ritmos construídos com a repetição de certos movimentos que vão ganhando a expressividade ao longo do seu desenvolvimento. Sendo assim, toda a vez que estivermos próximos de um novo movimento assinalaremos tal procedimento em uma nota de rodapé.
[5] Segundo momento do ritornelo com o duplo movimento de construção da morada e de organização interna da abertura para as forças cósmicas. Aqui, leremos a construção de um plano de composição seguindo a descrição feita por Deleuze & Guattari no livro “O que é a filosofia?”
[6] personagens rítmicos e paisagens melódicas são evocações de aspectos de um ritornelo sonoro pensado pelos dois autores no platô “Acerca do ritornelo”. Aqui, eles são evocados como componentes de um território artístico e são concebidos como seres de sensação. Nesse caso, um personagem rítmico deve ser entendido como uma figura estética inerente a uma composição sonora de sensações; e a paisagem melódica deve fazer a vez dos perceptos que consistem no território da obra.
[7] Tratado de nomadologia – A máquina de Guerra – Descrição da literatura de Kleist nas considerações noológicas do pensamento do fora.. 48
[8] Deleuze, G. Francis Bacon, A lógica da sensação. Cap. 1
[9] Terceiro e último momento na construção de um ritornelo cósmico. Com ele, mostraremos a convergência buscada com o devir música de Nietzsche através da apresentação da embriaguez por intermédio do impulso dionisíaco. Faremos, no devido momento, a construção da arte desmedida ser imanente à textura de um gigantesco ritornelo cósmico que pretendemos justificar no texto.