AFECTOESFERA: O giro epistêmico da porta bandeira e mestre sala no espaço racial
Ergue-se um corpo preto e suas máquinas de guerra no espaço. Tal esforço humano define uma nova gramática epistêmica vinda dos espaçólogos da favela. Daí, a turba monumental mostra o edifício teatral da Roma negra. Desse modo, afetar-se é a condição primeira para criação dos estados psíquicos que toda paisagem pré- humana nos ofereça. Antes do elemento humano nomeado pelas antropologias filosóficas do século XIX, existem condições sensoriais que revelam que estamos mergulhados em camadas de tempo-espaço. Mais ainda camadas, no sentido de durações espaciais e outras filosofias da física. Isso também pode trazer, engenharias ocultadas no (des)limite do extrato do visível no espaço construídas na relação entrem: Entes, seres, objetos, sentimentos e estados de coisas, ainda não organizados pelo entendimento racional do mundo lógico positivista restrito apenas pela ilusão dado pela inteligência cognitiva da dimensão do concreto. Portanto, é razoável poder evidenciar pela via poética do pensamento a suspensão primária que não estamos lidando com um jogo binário de natureza: ideia e forma, e sim, de um novo campo de possibilidade, – uma afectoesfera, recorte da totalidade que se manifesta toda tensão psíquico-mental que produz o ambiente geográfico da paisagem das emoções. Nesse caso, a afectoesfera configura materialidade das ideias no registro cultural das emoções, gerando em si, eixo condutor das ações humanas como lugar de arquétipos, símbolos, filosofias, oralitudes, discursos, práticas coletivas, técnicas, paisagens, constructos e arquiteturas sensoriais na fabricação dos ambientes regidos pela memória de um povo.
Também, nessa perspectiva, todo povo constrói um conjunto de acervo e arquivos emocionais na organização arquitetônica de seus fenômenos de memória, assim, por exemplo, o desenho espacial que a porta bandeira e o mestre sala realizam na execução cartográfica do giro espiralado na produção de espaço-corpo atravessada por uma apoteose dos afetos que suspende o limite geográfico entre avenida, arquibanca e tempo cronológico. É deste lugar, que se ergue um bloco sensorial carregado de emocionalidade que a afectoesfera se faz, logo, o detrimento dessa ação espacial, põem enquanto, fio condutor os conhecimentos da gramática expositiva do chão trazendo os saberes epistêmicos da povologia ancestral dada pela coreografia geométrica dos pés.
Isto certamente coloca o espaço geométrico dos pés modelado pela ação do corpo espiralado regido pela grande ópera a céu aberto evocada pelo povo apoteótico que participa do construtor pedagógico do texto-avenida. A afectoesfera está em todos os objetos cênicos e estéticos da arquitetura humana dos arquivos espaciais do povo preto na cidade suspendida pelo logos vertiginoso temporal.
Em contrapartida utilizamos, a palavra afeto como aquilo que atravessa as disponibilidades dos devires impregnado no ambiente arquitetônico, ou seja, quanto mais carga tencionada pela engenharia das emoções, maior é o feito estético dos textos-corpóreos se integrando na multidão do teatro humano.
Isso mostra então que o corpo – texto é o arquivo disponível dos currículos escolares entre quadra, avenida e apoteoso. Ser texto na avenida, após 522 anos de escravidão mental, põem o corpo preto condutor daquilo que seja próprio; – os currículos da existência, a cidadania integral e as tecnologias africanas na produção do espaço. Uma vez realizada esta diferenciação conceitual, que somos textos na avenida gira mundo, gira tempos, gira corpos, gira espaços a ordem desta constituição de tempos e temporalidades, – é de Exú. Isso que dizer, estamos diante vir-a-ser, devir constante que reúne diversos tempos, espaços, caminhos, trilhas, fendas, brechas e mapas cartográficos dos giros que giram a ginga dos fluxos de temporais nas bordas das baianas. O girara-se, torna mundo, segundos, minutos e tempos, acelerado, (des)ritmados de acúmulos de tempo no espaço. Para, além disso, existe um ponto de vista central, que o corpo preto é construtor temporal dos acúmulos de tempo da/na cidade. Cabe ressaltar, sem dúvida, nesses corpos há naturezas múltiplas de novimentos espaciais da totalidade, – tendo ali, as forças motrizes dos orixás que se integram ao chão, e aos céus; flutuam na avenida num intenso giro epistêmico constituindo um novo anti-horário e fusos horários, onde as coisas de fundam na mesma poética do espaço racial interligados na dialética união baiana.
Paralelamente, os diversos girantes em horários diacrônicos na avenida texto flutuante, instauram um jogo bélico da imagem. Mas para abordar, esse jogo da guerra do plástico (plástica visual), bélico vem do latim, românico e ibérico, bellicus e do substantivo bellum, que significa guerra. Assim, um conflito bélico-plástico é o mesmo que uma guerra. Ou seja, a plástica das indumentárias usa a imagem enquanto amadura (armadilha). Por outro lado, o exercício do pensar o estético, é mostrar como as ideias se disfarçam no tecido material da história camuflada de banalidade no tecido geral do senso comum, e, portanto, é necessário voltar ao pensamento e elaborar novas perguntas do/no presente em curso na cidade.
Convém observar no texto avenida flutuante, o samba é que molda o espaço. Como visto antes, a afectoesfera se constitui enquanto espaço matricial da forma estrutural e relacional no modelamento construtor da cenografia poética da geografia da roda, postulado fundador do princípio originário do pensar o próprio corpo atravessado de movimentos do centro para fora e vice-versa. Mas também, o corpo espacializado pela roda de samba é um veículo de representatividade interior e exterior, cercado de repertórios do cotidiano ou, em termos artísticos, criados a partir de uma subjetividade singular e coletiva, configurada no ritual moldado pelo espaço do samba, este agindo como fio, teia e rede da afectoesfera.
Isso significa que a forma, giro da porta bandeira é uma experiência coletiva e plural de elementos arquetípicos evocados por cada vigilante da cidade ao proteger o bastião da bandeira (mestre sala) na insurgência da guerra do plástico. Com efeito, ao proteger sua bandeira é a defesa estética da vida no giro espacial-espacializante. A roda e o giro retomam o uso coletivo da forma totalizada para uma experiência estética do espaço recortado pela lógica racializada do uso do território. De tal maneira, afectoesfera se faz: no encontro de cada ator-negro espacializando suas experiências próprias e curriculares do uso singular de seus sentidos topográficos, na maneira de conceber uma cidade material e imaterial que se realiza nas experiências libertárias. Cabe lembrar, o filósofo Candeia, em entrevista em 1968 ao canal Cultura, ressalta o samba como uma necessidade do espírito, ou seja, ele mora na filosofia porque o samba é a matéria do espírito.
Neste diálogo, evidencio o elemento religioso e transcendental do samba como dono do corpo, ativado, por sua vez, pela oração profunda deste corpo em giro-roda. Trata-se de se considerar que o corpo religioso em transe é afetado pela espacialidade modelar da geografia da roda de samba, é estruturado em impressão/expressão, percepção, internalização/ externalização e ação/reação, e então o corpo se traduz em movimento. Assim, os corpos físicos e psíquicos dos “sambantes” (aqueles que bailam o movimento espacial da linguagem samba) estão totalmente interligados quando o corpo se coloca como intérprete durante a dança.
O “sambante”, ou, mais genericamente, o atuante, por definição comum, é um artista do corpo. Isso significa, em primeira instância, que ele usa, como território primeiro de trabalho (currículo espacial), seu corpo – corpo físico-celular-nervoso- fisiológico-mental inserido em seu cotidiano, que chamo de corpo-cotidiano – em toda sua potencialidade artística, transformando-o em suporte estético de sua arte – um corpo artístico, que chamo de corpo-multidão. A roda espacializada constrói, a partir de corpos enfraquecidos pela lógica racial do trabalho, corpos potencializados pelo agir do samba na forma de mantra e oração, ativando todas as potências dos chacras do samba.
Com efeito, a palavra chacra, segundo a cultura hindu, significa roda, centro, giro ou algo cíclico, e é descrito por muitos como uma roda de fiar à luz, que conecta o corpo à totalidade (physis – natureza). A roda do samba, espacializada em forma de mandalas, cirandas, infinito e espiral, retoma formas matemáticas da origem antropológica da geo (terra)-grafia (escritura) das culturas humanas ao se geografizar no espaço. É importante esclarecer que no meio, enquanto chacra do samba, está a forma da roda espacializada por sua capacidade de concentração gerada pela meditação corpo, espaço e afeto, desempenhada pela educação estética dada pelo giro da roda como elã vital de uma oração/ mantra de um povo necessitado de se libertar de uma matriz operacional racista e escravocrata que instaurou no corpo negro formas e somas de opressão. O canal aberto pelo giro do dançar da umbigada (samba) em roda abre canais de uma afectoesfera de relações humanizadas no canto/ oração da roda que se geometriza na duração ritmada no espaço estético, cenográfico e antropológico da dança ao desenhar o próprio espaço em si.
Desse modo, atingindo aquilo que seja próprio, demarca-se o regime do samba ao modelar suas formas geométricas que se matematizam no uso integral do espaço estético e epifânico, da mesma forma que se congregam rodas religiosas em mesquitas islâmicas, templos budistas, terreiros de candomblé e no uso das rodas de samba. O uso estético da forma congrega o sagrado em um rito aberto e popular ao se manifestar aquilo que seja profundo num rito cantado em forma de oração e cântico de guerra.
A afectoesfera pode ser entendida também por desdobramentos dessas modalidades do uso integral do samba enquanto estruturador estético da forma. O canto/oração/mantra faz com que o corpo do negro escravizado se torne um templo de experiências estéticas evocadas pela roda cunhada pela epifania de um canto mágico e religioso. Sabe-se que na medievalidade ocidental do século X, cada abade do deserto erguia sua ermida à luz da forma circular (que retoma a forma espiralar), cada abade tinha no seu horizonte religioso que seu corpo era considerado o templo da alma. Expandindo tal alusão, cada experiência de uma roda de samba constitui novas mesquitas e templos da alma contidos no ser negro na cidade. A afectoesfera congrega, portanto, uma grande missa negra a céu aberto, cotidianamente, no rito estético da poética do espaço. É no labor de cada dia que esses currículos espaciais da epifania poética do samba em forma de roda cantam uma oração profunda ao lamento estrutural da escravidão.
Ao se libertar do corpo estrutural da escravidão, a afectoesfera pode, enfim, ser pensada; enquanto território do samba e dos “sambantes”, torna-se um atentar para as possibilidades de o corpo se mover e a intencionalidade que subjaz em cada gesto, como um investimento necessário para que o “sambante”/ator comunique sua arte. O caráter libertário do corpo por ele perseguido cria espaços para cultivarmos uma educação aberta à instauração de novos modos de ser e estar no mundo, que religam o lúdico e o estético, o pensar e o sentir, como dimensões da nossa existência corpórea e que devem perpassar o ensino e a criação em dança. É neste lugar que habita a construção de uma afectoesfera, o território sonoro dos afetos ritmado pelo uso estético do samba na forma-corpo. Portanto, teríamos os afetos como o canal primeiro de realização da missa negra, que, ao utilizá-los como linguagem poética, pode dizer muito mais do que descrições verbais, pois trazem um simbolismo evocado por meio de sequências específicas dotadas de ritmos e formas peculiares, em que cada gesto dançado se estende para além de si, numa continuidade que não se esgota e na qual o “sambante” funda o espaço com seus gestos, abrindo-o ao infinito no giro de cada baiana ao emanar seu axé.
No que se refere ao surgimento do movimento, o “sambante” traz o conceito de endografias (geografias internas) como seu ponto de emergência, como impulso, como desejo, como força vital que se manifesta pela movimentação visível do corpo. O esforço, compreendido então como expressão externa da energia vital interior, apresenta características (fatores) que, quando combinadas nas suas qualidades, geram tipos de vocabulários de movimentos infinitos e aprendizagens diversas do uso no espaço.
É interessante perceber que no giro da roda em forma de mandalas cênicas ressalta-se uma visão de movimento como algo que não se restringe a um fato físico, sendo compreendido como um fato de significação, centro da experiência e construtor de sentidos ao estar imbuído de uma intenção. Encontramos uma ressonância desse compreender na simbiose da porta bandeira com o mestre sala, quando diz que o movimento não é algo meramente mecânico, mas carregado de uma intencionalidade, que lança o sujeito no mundo para atribuir sentidos ao vivido.
A proposta da roda de samba como forma educacional do uso do espaço se personifica nos gestos do corpo negro, que é, em si, um espaço expressivo, origem do próprio movimento de expressão, projetando e fundando as significações no exterior. Assim, a roda, o sambista e o “sambante” compartilham um olhar comum ao entender o movimento como instância indissociada do pensar e sentir, de modo não hierárquico; ou seja, todo movimento é indissoluvelmente movimento e consciência de movimento; ambos, momentos de uma totalidade única e aberta.
O corpo negro espacializado em forma de roda é tratado como uma consciência indecomponível e presente inteira em cada uma das suas manifestações. Neste sentido, a afectoesfera reafirma que o corpo é o pensamento em ação e, não sendo possível separar conceitos e pensamentos da experiência corporal, unifica-os. Com isso, o corpo em roda move-se para mostrar-se, sente-se dançar, vê-se pela multiplicidade de imagens que o movimento produz. Revela seus sentimentos, que é o próprio movimento em transformação ininterrupta de uma nova geografia no espaço.
A afectoesfera, ao denunciar o aprisionamento do corpo a movimentos padronizados, evoca a beleza do dançar em roda que cada um é capaz de descobrir em si a partir dos repertórios advindos das experiências pessoais daqueles que dançam, como também preconiza uma relação democrática para o dançarino, em que todos são valorizados. De modo geral, esses são princípios que devem integrar as relações de ensino-aprendizagem como forma de reconhecimento e respeito às individualidades na educação espacial do negro na cidade.
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