A fábula do tigre: O Outro e a “produção” de carne na atualidade
O presente trabalho é fruto das anotações de três palestras por mim proferidas entre 2014 e 2019 [1] sobre o consumo e a “produção” de carne na atualidade. Analiso dentro de uma perspectiva junguiana e pós-junguiana como o consumo da carne evidencia uma realidade de subjugação do animal, e nesse sentido do Outro, principalmente se considerarmos as condições atuais de criação e abate. Gado, galináceos e porcos se tornam simples fornecedores de carne, são retirados da esfera de consideração moral e tratados como coisas que utilizamos para satisfazer os nossos desejos.
Fora as fontes junguianas, recorri a Peter Singer, professor de bioética da universidade de Princeton e autor do livro “Libertação animal “(2013). Apesar deste livro ter sido escrito em 1975, ele continua atual, pois Singer o reeditou diversas vezes acompanhando as mudanças no campo da criação animal e dos abatedouros. O prefácio da tradução brasileira data de 2003.
Além disso, uma pessoa de meu convívio pessoal, me inspirou, através de uma conversa informal no quintal de sua casa, a pensar sobre como a carne chega aos nossos pratos. Numa tarde quis falar sobre um assunto específico com o senhor que cuida da casa de meu pai na ilha de Jaguanum na Costa Verde. Encontrei-o limpando um lagarto que tinha acabado de caçar. Fiquei um tanto impactada com a cena, mas ele apenas riu. Perguntou se eu achava que a carne que comíamos já nascia embalada em plástico. A partir dessa fala comecei a refletir se fazia sentido comer carne se me faltava a coragem de matar animais e aos poucos me tornei vegetariana.
Pensar sobre o consumo de carne na atualidade torna-se uma tarefa delicada, pois esta temática toca em um complexo cultural. Singer e Kaplinsky (2019) definem complexos dessa espécie como agregados autônomos, em grande parte inconscientes e emocionalmente carregados de memórias, ideias e imagens que tendem a se aglomerar em torno de um núcleo arquetípico e serem compartilhados dentro de um coletivo definido. A humanidade há milênios mata e consome animais, mas esta prática tem mudado de configuração, assim como a nossa relação com a natureza. Atualmente animais são abatidos em grande escala e todo aspecto ritualístico da caça e do sacrifício desapareceu. Ademais, a criação de gado para o fornecimento de carne envolve a devastação do meio ambiente. A maioria das pessoas até possui informações a respeito, mas por se tratar de um hábito arraigado prefere não pensar sobre.
Paradoxalmente irei falar sobre essa “mina terrestre” – termo que Singer e Kaplinsky (op.cit.) usam ao se referirem a complexos culturais -a partir de uma fala de Jung (2014) em que questiona a conduta de um tigre vegetariano. Entre 1955 e 1961, Jung concedeu cinco “sessões de perguntas” a um grupo seleto em Winterhur e Küstnacht. Estas sessões foram parcialmente gravadas e publicadas postumamente sob o título “Sobre sentimentos e a sombra” (Vozes, 2014).
Em uma dessas sessões, o autor (op.cit.) expressa o seguinte pensamento:
“Quem não esteve lá embaixo, não esteve na terra. E o que é de fato o sentido de nossa existência? Devemos ser todos tigres, tigres amáveis que só se alimentam de maçãs? Tigres vegetarianos – isso é simplesmente uma anormalidade, algo doentio “
Naturalmente não devemos compreender esta fala literalmente, e sim, trata-se de uma provocação para refletirmos mais profundamente sobre os diversos modos de expressão da sombra[2] na atualidade.
Nesta colocação Jung provavelmente se refere à fábula do tigre de origem indiana e compilada pelo indólogo Heinrich Zimmer no livro filosofias da Índia (1986)
Eis um pequeno resumo do conto:
Uma tigresa prenhe e esfomeada ataca um rebanho de cabras. O ataque se dá de forma tão intensa que acaba antecipando o parto. A mãe morre.
O pequeno tigre é acolhido e criado pelas cabras de modo muito terno. Apesar de ter dificuldade de mastigar as folhas do pasto por causa de seus dentes pontiagudos, ele se adapta à alimentação de sua nova família. Enfraquecido com a dieta vegetariana, desenvolve um temperamento muito dócil. A sua voz é suave e ele apreende a língua das cabras.
Quando já mais crescido, o rebanho é novamente atacado. Desta vez por um tigre velho e feroz. As cabras fogem desesperadas, mas o jovem tigre permanece e olha assustado para aquela criatura que logo começa a questioná-lo: “O que é isso que estás comendo? Por que emites estes sons estúpidos?” (Zimmer,1986)
O velho tigre o conduz até um lago e o faz ver a sua imagem no reflexo da água. Em seguida o força a comer um pedaço sangrento de carne. O animal resiste muito, mas acaba cedendo horrorizado. Assim que sente o gosto do sangue na boca, toma consciência de quem é. Então o velho tigre o pergunta num tom severo: “Agora sabes quem realmente és?” (Zimmer, op.cit) e o leva à caça.
Há uma expressão- tigre de papel-, originalmente chinesa e atribuída à Mao Tse Tung, que se refere a algo que aparenta ser ameaçador, mas não tem de fato eficácia e no fundo é inofensivo.
Na fábula em questão, o tigre se encontra nesse estado “de papel”: Perdeu a sua eficácia e vive domesticado entre cabras.
A sua singularidade e diferença são anuladas e ele leva uma vida de “rebanho”. Literal e simbolicamente. Num sentido simbólico tratar-se-ia de uma condição que para Jung se opõe à ideia de individuação. Enquanto a individuação requer consciência, a escolha livre e própria de um caminho, a vida de rebanho representa uma “submissão e adaptação pouco consciente àquilo que é dado universalmente” (Richter, 2005). Somente quando o tigre devora a carne crua e sangrenta, ele consegue diferenciar-se e tomar consciência de si próprio. Nesse sentido o seu “vegetarianismo” pode ser associado à ausência de relação com o que Jung (1992) compreende por sombra- conceito que cria para descrever os aspectos inaceitáveis e por isso rejeitados da psique humana. A dificuldade de se aceitar a sombra deve-se à forma como esta se apresenta: Por ser reprimida e relegada ao inconsciente, possui um caráter arcaico, inadequado, desagradável ou feio. Porém, compreendê-la exclusivamente como a parte negativa da personalidade seria uma interpretação muito unilateral que não abrange a complexidade desse conceito. Segundo Samuels (1986) a sombra representa uma parte viva da personalidade que “quer viver com esta”. Quando é considerada pela consciência, vivifica e amplia a mesma.
A ferocidade, por exemplo- já que estamos falando de um tigre- muitas vezes configura um aspecto da sombra a ser evitado. Lembro-me nessa ocasião de um paciente que sonhava repetidamente com leões, lobos ou tigres que o perseguiam. Vangloriava-se por sempre escapar dos mesmos, considerando-se vitorioso.
Jung sugere outra conduta perante a fera. Em seus Seminários sobre Sonhos de Crianças (2011) nos convida a uma atitude diferente do que apenas correr.
“Um sonho de perseguição sempre significa: algo quer vir até mim. Quando você sonha que um touro enfurecido ou um leão ou um lobo persegue você, o significado é: isto quer vir até você … A perseguição por um animal não possui necessariamente um significado desfavorável. Afirma apenas que o hostilizamos e assim ele faz o mesmo. Por isso, em seguida, devemos fazer o seguinte gesto: Devemos tirar educadamente o chapéu, fazer uma reverencia e perguntar: O que você deseja de mim? E os senhores verão: o animal terá algo a dizer.”
Em seu texto Matanças (1992), Wolfgang Giegerich, psicoterapeuta e autor pós junguiano, faz uma leitura simbólica da caça primordial. Neste ensaio parte da ideia que antigamente todas as atividades humanas derivavam de um assassinato ritual. A caça primordial não seria uma herança animal do homem, nem poderia ser explicada a partir de demandas básicas: carniças e pequenos animais teriam sido suficientes para as necessidades humanas por carne.
A matança realizada pelos humanos configuraria um ritual, originar-se-ia em necessidades psicológicas e espirituais.
“Não havia guerra, juramento, acordo, contrato, casamento, cruzamento de fronteira, construção de casa – e obviamente nenhum festival sem imolação. É assim que a Europa era na antiguidade, e é assim que é em outros lugares até recentemente.” (Giegerich, op.cit.).
A lança de caça, por exemplo, não seria somente um instrumento prático, mas sim, um portador de significado. Ao caçador primitivo, o animal era familiar: Um parente próximo, um “pai”, um “irmão”. Não haveria, desse modo, uma distinção clara entre sujeito e o objeto: Através do ato de matar o animal – isto é, algo familiar- o homem, sacrificaria parte de si, conheceria a si próprio e adquiriria autoconsciência. “No animal caçado ou imolado o homem conhece a si mesmo.” (Giegerich, op.cit). Jung (1992) compara o processo de conscientização a um ato sacrificial. O autor desenvolve a noção de sacrifício em seu ensaio “O símbolo da transformação da missa”. Segundo a sua acepção, a ação sacrificial envolveria basicamente a doação de algo de minha propriedade: “Tudo o que me pertence traz a marca de ‘meu’, isto é, traz a marca de uma identificação sutil com o meu eu” (Jung, 1979). Esta identificação, porém, é de ordem inconsciente. Para que se torne consciente é necessário um “auto sacrifício”, isto é, a possibilidade de se optar conscientemente por doar parte de si-mesmo sem esperar recompensa alguma. A capacidade de se auto sacrificar indicaria que possuímos a nós mesmos. A perda total seria simultaneamente um ganho, pois “ninguém pode dar o que não tem.” (Jung, op. cit.) Em nossa fábula, o tigre precisa beber sangue para saber quem é. Realiza assim um auto sacrifício, pois abre mão de sua inocência representada pelo modo de vida das cabras.
Atualmente a matança animal não se dá dessa forma, principalmente se considerarmos que ocorre quase que exclusivamente para fornecer matéria prima à rentável indústria de carne.
A relação com a natureza também mudou. Em seu ensaio “O Zoológico”, Giegerich (1988) ressalta que no princípio a natureza era uma selva inesgotável que rodeava o homem. As povoações deste representavam apenas uma pequena ilha no meio da amplidão.
Hoje em dia haveria uma inversão na relação homem- natureza. A natureza passaria a assumir outro significado: Tornar-se-ia ilha transformando-se em reserva ecológica, parque ou zoológico enquanto o homem a circunda.
Esta imagem de uma natureza cercada, porém, não deveria ser compreendida apenas como lugar concreto, e sim, trata-se principalmente de uma perspectiva, um modo de olhar para o mundo natural.
A natureza deixa de representar aquela que gera, alimenta e, por fim, acolhe o homem na morte: Uma Grande Mãe ou deusa que pare e devora.
A terra, antes mãe, passa a ser o “filho problema” que se encontra ameaçado em sua existência: morte e degradação de florestas e rios, animais e plantas em extinção, envenenamento do meio ambiente ou segundo Giegerich (op.cit): “É como se a natureza tivesse se tornado senil e desamparada , dependendo dos cuidados de seus filhos agora adultos.”
Nesse sentido o mesmo autor (op.cit.) nos coloca um paradoxo interessante: No momento em que a natureza precisa ser protegida, ela deixa de ser natureza, pois esta não representa somente a existência de animais, plantas e paisagens ,e sim, aquilo que existe por conta própria, a vida independente de qualquer interferência artificial humana.
Desse modo, apesar de inimigos, o destruidor e o protetor estariam do mesmo lado. Cada um, a sua maneira, colonizaria este “Outro” que seria a natureza.
Retornando à questão da matança animal, Giegerich (1992) afirma que antigamente as carnificinas rituais eram um ato público e não realizadas em segredo. Durante as festividades, todos assistiam o assassinato do animal, viam o sangue jorrar e sentiam o seu cheiro. Atualmente ocorre o oposto. Segundo Singer (2013) mais de 25 anos após a publicação de seu livro “Libertação animal”, a maioria dos norte-americanos continua ignorando a maneira como os alimentos são produzidos, ou seja, a carnificina ocorre em segredo. Os próprios produtores de carne e ovos contribuiriam para isso. O autor (op. cit) relata que foi convidado por uma emissora de TV para um programa que teria como fundo criadouros de animais. Nenhum produtor rural, no entanto, permitiu que as suas instalações fossem filmadas.
Além disso, encobre-se a origem dos produtos. Ignoramos os maus tratos cometidos contra os animais antes destes se tornarem alimento a ser consumido por nós.
“A compra desses alimentos, num mercado ou restaurante, é a culminância de um longo processo, do qual tudo, exceto os produtos finais, é delicadamente afastado de nossos olhos” (Singer, op.cit.) Ou seja, compramos carne de boi, porco ou ave em embalagens limpas de plástico. São carnes que quase não sangram e por isso não há por que associá-las a um animal vivo, que respira, caminha e sofre.
Existiriam inclusive diversos disfarces linguísticos. Comemos bife, não boi, vitela ao invés de bezerro, costeleta e pernil no lugar de porco. O mesmo se refere ao lugar de criação. Singer (op.cit.) nos convida a perceber que imagens a palavra fazenda evoca em nós. Pensamos em uma casa, um celeiro, num galo e suas galinhas ciscando no terreiro, numa porca fossando no pomar com uma ninhada de leitões guinchando e brincando alegremente à sua volta.
Estas suposições confortáveis nada tem a ver com a realidade das instalações de criação ou das fazendas modernas que inclusive já não são mais controladas por simples camponeses ou pequenos produtores. Pelo contrário, grandes empresas transformaram a agricultura em agronegócio: uma criação industrial de animais que os trata como máquinas que convertem forragem barata em carne de preço elevado (Singer, op.cit.)
Quando se busca práticas que geram menos dor como diminuir a brutalidade no trato na hora do transporte ao abate, isto não estaria relacionado a uma preocupação com o sofrimento do bicho, e sim, animais estressados perdem peso e carcaças machucadas rendem menos no mercado. Ruth Harrison, autora do livro “animal machines “e citada por Singer (2013) alerta: “a crueldade é reconhecida apenas quando cessa o lucro.”
Podemos dizer que os animais são retirados da esfera de consideração moral e tratados como coisas que utilizamos para satisfazer nossos desejos. Singer (op.cit.) dá alguns exemplos do trato animal na grande indústria de carne: Por não serem potenciais fornecedores de ovos, pintos machos são descartados por afixamento em sacos plásticos, moídos ainda vivos para serem transformados em ração. Galinhas são confinadas em gaiolas superlotadas, privadas de seguirem instintos como ciscar, construir ninhos ou tomar banho de poeira. O stress e tédio decorrentes desse tipo de criação faz com que se bicam e devoram mutuamente, conduta esta denominada de “vício” pelos produtores. Por as consequências deste tipo de comportamento custarem dinheiro, os pintinhos são debicados com lâminas incandescentes o que muitas vezes resulta em graves ferimentos na boca e narinas.
Outro exemplo são os bezerros mantidos propositalmente anêmicos para fornecerem carne macia e pálida a clientes de restaurantes sofisticados. As vacas, por sua vez, são submetidas a ciclos intensos de prenhez e hiperlactação que duram alguns anos e são finalizadas quando o animal “gasto” é conduzido ao abatedouro.
Também em relação ao abate o aspecto sombrio da produção de carne é ocultado. Nega e esconde-se a violência envolvida por trás de uma fachada limpa. Em seu artigo A higienização em sala de matança e aspecto higiênico sanitário [3]o grupo Beef Point descreve a prática do abate da seguinte forma:
“Para o trabalho de higiene na sala de abate é destacada uma equipe de profissionais, apropriadamente treinada, corretamente equipada (resguardando a integridade física) e uniformizada em cor diferente, que os identifique dos demais funcionários presentes na produção, a fim de que a higiene seja mantida no início das operações de abate, durante e ao fim das mesmas.”
Além do disfarce da violência através de uma linguagem técnica, chamaram a minha atenção as expressões “resguarde da integridade física” e “uniformização em cor diferente”. Ou seja, o profissional que mata o animal não se submete a nenhuma forma de auto sacrifício, não deve correr risco de se ferir nem é imolado psiquicamente. Fora que a sua roupa o destinge dos outros profissionais, não por ocupar uma posição de valor, e sim, provavelmente, para que mantenham distância dele e da ideia de morte.
Voltando para a nossa fábula posso afirmar que nesta a negação da sombra é representada justamente pelo modo de vida vegetariano do tigre que em um primeiro momento não aceita o sangue e a matança. Os consumidores de carne, entretanto, não agem de maneira tão diferente: Comem carne, mas igualmente, em algum nível, rejeitam a ideia de matança, ou seja, não querem saber a respeito desta. Recordo-me, neste momento, de um episódio que se deu alguns anos atrás, em 2016. Em seu programa Tempero de família, o apresentador e chefe de cozinha Rodrigo Hilbert matou ao vivo um filhote de ovelha.
Diversos telespectadores derem voz à sua indignação nas redes sociais e a edição de 16 de março de 2016 da revista Ego[4] fez a seguinte afirmação “Muitas pessoas acharam desnecessário mostrar a captura do animal e, em seguida, ele já morto, de cabeça para baixo e com o sangue escorrendo pelo pescoço, caindo em uma bacia.” Provavelmente entre essas “muitas pessoas” havia diversos consumidores de carne que se incomodaram com a explicitação do abate. Ou como diz Clarisse Lispector (1999) “…a lei manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber…”
Esse comportamento me faz pensar no conceito de culpa coletiva, que se encontra intimamente ligado à ideia de complexo cultural. Segundo Jung (1995), a culpa coletiva não deve ser compreendida sob o ponto de vista jurídico-moral, e sim, como fenômeno psíquico: A existência irracional de um sentimento de culpa subjetivo de ter participado de algo sem ter contribuído para tal objetivamente. Apesar de não realizarmos pessoalmente o abate do animal, incomoda-nos sermos lembrados de que o nosso hábito carnívoro demanda este tipo de ação.
A seguir gostaria de expor uma breve reflexão sobre o que se dá na contramão desse movimento de ocultamento e negação. Em parte, sem cair em generalizações simplistas, pode ocorrer o que Jung (apud Richter,2005), inspirado em Heráclito, compreende por enantiodromia, ou seja, uma conversão no oposto. Quando há uma atitude extremamente unilateral da consciência, forma-se uma contraposição inconsciente tão forte quanto, que interrompe a direção consciente. Por vezes, alguns representantes do movimento vegetariano e vegano assumem uma postura que além de sua função importante de denunciar e investigar maus tratos animais e a destruição do meio ambiente, resulta em acusações pessoais contra aqueles que consomem produtos animais. Chamam o outro de “assassino, alguém que se alimenta de crueldade, de cadáveres e carne nauseabunda”. São declarações que pululam em algumas páginas virtuais representantes da causa. Opto aqui em não apresentar provas de minha afirmação, pois não desejo expor ninguém pessoalmente. O que importa é que quando ocorre este tipo de cisão entre grupos não há possibilidade de diálogo.
Para Singer (2013) a polarização entre os ativistas em prol da libertação dos animais, de um lado, e os pecuaristas e alguns cientistas do outro talvez seja inevitável. Mesmo assim considera essencial que o movimento pela libertação dos animais evite “a espiral viciosa da violência.”
Ao longo de seu livro supracitado não ataca consumidores e produtores de carne. Quando declara que animais de criação levam uma vida miserável do nascimento à morte no abatedouro, não afirma que as pessoas envolvidas nisso são especialmente más ou cruéis. E sim, seguem apenas a lógica que retira os animais não humanos da esfera de consideração moral e os trata como coisas.
Descreve o atual tratamento animal a partir da ideia de especismo que seria o preconceito ou atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie contra os de outras. A questão não seria estabelecer uma hierarquia entre humanos e animais não humanos orientada pela capacidade de raciocinar ou falar, e sim, devemos nos deixar nortear pela pergunta: animais não humanos são capazes de sofrer? Defende assim o direito à igual consideração. “O princípio da igualdade não requer tratamento igual ou idêntico, mas sim, igual consideração.” (Singer, op.cit.)
Gostaria de concluir esta breve exposição com a comparação que Giegerich (1988) faz entre o zoológico e o museu e que reflete bem a ideia de anulação do Outro tão central neste ensaio.
Segundo o autor, no museu a história é “capturada”. É retirada da “selva”, dos vivos costumes tradicionais e posta em vitrines que podemos circundar, olhar de todos os lados sem correr nenhum perigo de nos afetarmos. No museu a história viva, que talvez pudesse nos conduzir a uma experiência numinosa[5], é transformada em “preparado morto”, pois o visitante tem a liberdade de olhar para a imagem sob as diversas perspectivas: a estética, sócio-histórica, teológica, do ponto de vista da técnica de pintura ou da história das religiões. Na igreja, por sua vez, o fiel não tem a liberdade de considerar a imagem a partir de um ou outro aspecto, pelo contrário, a imagem reivindica algo dele que se encontra exposto a esta, o que faz com que a sua única possibilidade e perspectiva consista na devoção. O mesmo ocorreria no caso de um animal selvagem que nos ataca: não podemos simplesmente olhá-lo do modo que desejamos e assim impõe-se o espanto.
O zoológico então seria um museu de coisas vivas. Os animais são mantidos em vida como na medicina organismos são conservados através de aparelhos. Os seres são protegidos contra a morte, a ideia de vida – que transcende o simples funcionamento do corpo-, porém, é assassinada.
Termino a minha reflexão com a imagem do zoológico e do felino encarcerado. Como o nosso tigre, a pantera de Rainer Maria Rilke foi raptada e privada de seu habitat, eficácia e principalmente da consideração moral de uma coletividade que não a enxerga.
A PANTERA[6]
Rainer Maria Rilke
(Trad. Augusto de Campos)
(No Jardin des Plantes, Paris)
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
Referências Bibliográficas:
Giegerich, W. MATANÇAS: O platonismo na psicologia e o elo perdido com a realidade. Disponível em <www.rubedo.psc.br> Acesso em: 05.05.2014
Die Atombombe als seelische Wirklichkeit:Versuch über den Geist des christichen Abendlandes [a bomba atômica como realidade psíquica: ensaio sobre o espírito do ocidente cristão] Suiça: Schweizer Spiegel Verlag,1988
Jung, C.G. Sobre os sentimentos e a Sombra. Petrópolis :Vozes,2014
Zivilisation im Übergang [Civilização em Transição]. Düsseldorf: Walter- Verlag, 1995 ,vol.X.
Zur Psychologie westlicher und östlicher Religion [Psicologia e Religião ocidental e oriental]. Olten: Walter-Verlag AG, 1992, vol. XI.
Seminários sobre sonhos de crianças. Petrópolis: Vozes, 2011
O Símbolo de Transformação na Missa [1942]. Petrópolis: Vozes, 1979, vol. XI/1.
Lispector,C. A Paixão segundo G H. Rio de Janeiro : Rocco, 1999
Richter, L.K.:A concepção de religião no pensamento de C. G. Jung. Dissertação (Mestrado)-Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,2005
SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. RJ: Imago, 1986.
Singer, P. Libertação Animal, São Paulo: Martins Fontes,2013
Singer, T. Kaplinsky, C. Complexos culturais em análise. In: Stein, M. (Ed.) Psicanálise Junguiana, Petrópolis: Vozes,2019
Zimmer, H. Filosofias da Índia, São Paulo: Palas Athena,1986
[1] Seremos todos tigres vegetarianos ou :A questão do mal na psicologia analítica- Simpósio- A sombra em tempos sombrios, Rio de Janeiro, 2014
A Fábula do Tigre: Uma Reflexão sobre o Conceito de Sombra e o Consumo de Carne na Atualidade- Evento Presencial- Jung na Prática, São Paulo, 2017
A fábula do tigre: O outro e o consumo de carne na atualidade- Seminário- o Estrangeiro, o Outro, a Diferença: Perspectivas junguianas contemporâneas. Rio de Janeiro, 2019
[2] Este conceito será elucidado um pouco mais adiante.
[3] www.beefpoint.com.br, acesso em 12.08.2020
[4] Ego.globo.com, acesso em 12.08.2020
[5] Jung compreende por experiência numinosa ou imediata uma vivência anterior a elaboração consciente. Tratar-se-ia do inefável, daquilo que se afasta radicalmente do racional, sendo, assim, totalmente inacessível a uma compreensão conceitual. (Richter,2005)
[6] Disponível em <culturafm.cmais.com.br> Acesso em 22.08.2020