Lições de Cosmologia para não-especialistas (das leis físicas às leis cósmicas) – 6: É o espaço-tempo uma substância?
Resumo: A moderna versão de interação entre corpos de qualquer natureza requer que esse processo seja descrito como a troca de partículas elementares que são características típicas de cada interação. Assim, por exemplo, a interação entre corpos carregados eletricamente se faz por troca de fótons, os grãos elementares da luz. Ou, para usar o termo técnico, os quanta de luz. Essa forma de entender toda forma de interação coloca de imediato a questão: e a gravitação? Se ela for pensada como um campo de forças (como o campo eletromagnético) isso implica que deve existir seus correspondentes quanta, que chamaríamos grávitons. Mas se aderirmos exclusivamente à versão geométrica da relatividade geral isso significa que o espaço-tempo deveria ser pensado como uma substância.
- O século 20 viu surgir em seu começo duas grandes e profundas alterações na descrição que a física faz sobre o mundo: a teoria da relatividade especial e a teoria quântica da matéria. A teoria da relatividade especial, se desenvolveu a partir de observações feitas sobre a velocidade da propagação da luz. Considerações feitas a partir de experiências com o eletromagnetismo levaram a proposta de que haveria uma velocidade máxima de propagação de toda forma de energia e essa velocidade máxima é aquela associada à propagação dos fenômenos eletromagnéticos. O desenvolvimento formal dessa ideia levou cientistas como Poincaré, Lorentz Minkowski, Einstein e outros a elaborar novos conceitos que desembocaram em 1905 na síntese feita por A. Einstein na teoria da relatividade especial. A principal consequência pode ser resumida na frase: não pode existir nenhuma forma de energia que se propague com velocidade superior à da luz. Como consequência importante, cada observador possui uma caracterização do tempo dependente de seu estado de movimento ou repouso. Ou seja, cada corpo possui um seu tempo próprio.
Um tal princípio criava uma enorme dificuldade na descrição de Newton da interação gravitacional até então dominante. Com efeito, a descrição newtoniana do processo de interação gravitacional não requer nenhum agente físico capaz de transportar o fenômeno da gravitação. Em verdade, a questão de propagação nem sequer se colocava, pois a imagem mental da força gravitacional aceita então entre os cientistas admitia a instantaneidade de sua atuação. A profunda modificação da formulação newtoniana produzida pela teoria da relatividade geral em 1915 embora tenha alterado e muito, essa visão, não eliminou completamente uma certa dose metafisica associada a esta força. Dito de outro modo, menos radical: não produziu um cenário onde a transmissão da gravitação se faria também por algum intermediário corpóreo, alguma substância material, mesmo se diáfana como o fóton nos processos eletromagnéticos.
A principal distinção introduzida pela formulação de Einstein da gravitação, capaz de adaptá-la à teoria da relatividade especial, só requeria que essa ação não fosse instantânea. Deveria assim haver uma propagação através do que Poincaré chamou ondas gravitacionais.
- Quando Einstein elaborou sua teoria da gravitação, na segunda década do século 20, a teoria quântica estava em seus começos. Ainda não havia realizado o grande movimento de unificação da quântica com a relatividade especial. A Teoria Quântica dos Campos, um modo completamente novo de interpretar a ação das forças sobre os corpos, só apareceria algumas décadas depois.
Com efeito, mais tarde, quando a mecânica quântica havia adquirido um status formal elevado junto à comunidade científica e deu nascimento à teoria quântica dos campos, o modo de interpretar interações entre os corpos foi profundamente alterado. Esse processo, a interação entre corpos, tradicionalmente identificado como uma força, passou a ser descrito como uma troca de minúsculas partículas, os quanta dos campos de interação. Um tal procedimento foi bastante bem sucedido ao nível das interações entre partículas elementares e até mesmo na força clássica de longo alcance, o eletromagnetismo. Nesse caso, os fótons carregariam a informação através do espaço-tempo da ação (da força) eletromagnética.
Dito de outro modo, quando dois corpos carregados interagem via processo eletromagnético, isso é entendido como troca de fótons, os grãos elementares do campo eletromagnético.
Entretanto, quando Einstein sugeriu que a matéria ou energia sob qualquer forma produzia uma curvatura no espaço-tempo a comunidade científica de então não considerou necessário imaginar que a matéria estava agindo sobre alguma coisa (material), mas sim sobre essa quantidade matematicamente precisa, a “geometria” do espaço-tempo.
Como as consequências de aceitar essa hipótese geométrica para a descrição da força gravitacional foram boas e produziram melhores explicações do que a teoria newtoniana sobre alguns processos astronômicos, essa singular característica isolada da gravitação não foi entendida como uma dificuldade, ela foi simplesmente ignorada.
A ideia de que a gravitação é uma força especial, à parte das demais, pois universal, se consubstanciou e impediu que aparecesse a questão: é o espaço-tempo uma substância? E, através dessa substância corpórea (o espaço-tempo material) a matéria e energia sob qualquer forma interagiria gravitacionalmente através dessa descrição matemática, sua geometria.
O século 20 foi cenário de transformações profundas na descrição do mundo físico. Por um lado, houve a materialização de todo tipo de processo de interação através da quantização das forças seja do mundo microscópico seja da interação eletromagnética. Somente a gravitação resistiu a esse processo, embora tenha havido inúmeras propostas para sua possivel quantização.
Alguns cientistas tentaram ultrapassar essa dificuldade e mostrar como seria possível adequar a relatividade geral à mesma estrutura formal que as demais interações. Em um primeiro momento, isso foi tentado introduzindo-se um campo tensorial, esperando que em um momento ulterior seria quantizado e então identificado com uma partícula de spin-2. Essas diversas propostas entretanto não tiveram sucesso.
E continuamos não respondendo à questão fundamental: é o espaço-tempo uma substância?
Mesmo depois de mais de 100 anos de sucesso da teoria da relatividade geral, não causa nenhum desconforto entre os cientistas a ideia de que a matéria e energia sob qualquer forma atuam sobre alguma coisa que não é nem matéria nem energia: a geometria do espaço-tempo.
Em verdade, a teoria da gravitação proposta por Einstein em sua Relatividade Geral produziu um modo de descrição totalmente distinta das demais interações ao identificar a força gravitacional à geometria do espaço-tempo, ou seja, considerou a hipótese na qual a descrição do espaço-tempo atribuiria propriedades típicas de uma substância. Sua característica principal se identifica com sua geometria. A matéria, sob qualquer forma, assim como todo tipo de energia atua sobre esse espaço-tempo alterando a forma dessa geometria. Por sua vez, esse espaço-tempo, através de sua geometria, atua sobre os corpos, alterando seu movimento. Ou seja, se trata de um processo de interação geometria-matéria.
Ela deu origem a uma figura estranha na descrição da física: a geometria do mundo como uma estrutura material ao qual todos os demais corpos podem influenciar e influenciando tudo que existe, matéria e energia sob qualquer forma.
Essa interpretação transformou a descrição do espaço-tempo de uma figura de representação à uma imagem típica da matéria.
Isso criou de imediato a questão: devemos entender/interpretar a geometria do espaço-tempo como uma forma especial de substância? Ou seja, o espaço-tempo tem propriedades que permitem que ele seja considerado como uma substância?
Substância é matéria, que se define como aquela que age sobre outra substância. Nesse sentido, a geometria seria uma substância. Mas assim como a substância átomo se compõe de outras substâncias (as partículas nêutron, próton, eletron) seria a geometria, enquanto substância, composta?
Jean Largeault nos ensina que substance est formé d´après le latin sub et stare. La substance est ce qui se tient (permanence) sous (des apparences ou des qualités changeantes).
É possível que tenhamos de considerar que existe efetivamente um intermediário material capaz de carregar a informação da interação gravitacional. Pode ser que ele tenha a aparência de um campo que admita uma descrição geométrica ou uma combinação de vários campos. Ambas as possibilidades estão sendo estudadas. Embora haja uma maioria que prefere a descrição do campo da forma como Feynmann propôs, um campo de spin-2. No entanto, outras possibilidades apareceram recentemente sob novas formas associadas a uma descrição na qual a geometria seria simplesmente consequência da ação de campos escalar e/ou spinorial. Em qualquer caso, a métrica seria construída com esses campos. Ela não teria uma dinâmica própria, mas sim herdaria a dinâmica dos campos que geram o fenômeno que chamamos gravitação. Isso nos leva a ultrapassar a teoria da relatividade geral.