A consciência da obra de arte e o devir outro do criador
O texto trabalha a consciência estética em contraste com o estado normal da consciência, para demonstrar a existência de uma consciência inerente à obra de arte. Assim, busca a sua condição de possibilidade na intercessão das obras de Henri Bergson, Gilles Deleuze / Félix Guattari e Fernando Pessoa; para explicitar os aspectos da consciência da obra de arte, pensando o processo de criação nos procedimentos destes respectivos autores. Ao término da análise mostraremos como a criação da obra é inseparável de um devir do criador, e como a obra de arte pode ser entendida como um processo de experimentação de vida.
A consciência que efetua a criação da obra arte é o meio fluido que conecta o pensamento com o ser do sensível[1] pelo ato de criação que ela torna possível. Assim, ela se mostra fora de seu estado comum quando é revertida por alguma coisa oriunda da sensibilidade. Sendo verdadeira a tese de que a consciência comum trabalha em função dos interesses práticos – estando esses condicionados por opiniões – , deve existir alguma coisa no seio do sensível que venha produzir um efeito suspensivo na ação motriz da consciência, colocando-a a disposição do pensamento. Algo que altere o seu estado normal , vertendo-a à urgência de um pensamento nascido na esfera de um questionamento do sensível.
Com isso, apresentamos dois estados de consciência: um banal – “interesseiro”, utilitário e imerso na opinião – e o outro intensificado por uma atenção oriunda de um impacto sensorial que afeta imediatamente a sensibilidade . Partindo da premissa de que o pensamento na arte – implicado na criação estética – se engendra em circunstancias especiais, torna-se plausível dizer que a consciência –inerente a tal ato – se evidencia na situação de uma exceção que contraria o seu curso corriqueiro. Há, portanto, uma consciência estética ocasionada por uma experimentação que condiciona a criação da obra de arte e faz desta o meio de conservação da sua intensificação. Como explicar tal experimentação? Apresentando, primeiramente, uma definição geral da consciência para colocar em detalhe a diferença da sua condição estética.
Consciência é, em princípio, o intervalo de indeterminação existente entre a percepção do mundo externo, o reconhecimento exigido quando este é percebido para que a ação motora do ser animado em geral e, mais especificamente, do ser humano, se cumpra de forma eficaz. De acordo com Bergson – segundo uma tese exposta no primeiro capítulo de Matéria e Memória[2], a consciência habita o intervalo interno de todo ser movente, sendo acionada por uma hesitação existente entre o ato de perceber, o afeto que ocupa o intervalo subjetivo e a ação a ser executada. Com tal característica, ela marca sua condição seletiva através de uma dupla operação : por um lado, analisa os estímulos que procedem do corpo e escolhe, dentre respostas possíveis, qual a ação que deve ser devidamente eleita para reagir ao estímulo. Para isso, na hesitação existente entre o perceber, o sentir e o agir há o esforço para reconhecer a realidade através da rememoração do passado, cumprindo com as obrigações condicionadas por interesses orgânicos e sociais . Por outro lado, o intervalo – por mais rudimentar que ele possa ser – deve ser chamado de tempo da indeterminação; pois, nele, um certo coeficiente de liberdade se torna possível, acentuando-se toda a vez que o ser se coloca na disposição de um pensamento que cria problemas através de um estado que altere o fluxo da consciência habitual[3].
Sendo assim, podemos dizer, por um lado, que a função habitual da consciência consiste em presidir os interesses práticos que ganham fundamento nas necessidades orgânicas e nos meios organizados pelas opiniões. A regulamentação dos hábitos, o ouvir dizer – ocasionado pela difusão da linguagem – e os diversos interesses orgânicos que necessitam de um cuidado fundamentado na esfera da atenção à vida, tornam a consciência um meio a serviço de um inteligência utilitária, voltada para a manutenção adaptativa do indivíduo ao seu meio.
Por outro lado, nos estados alterados de consciência, existe um pensamento ativado por experimentações sensíveis, isto é, por algo existente no sensível que desconstrói os seus hábitos corriqueiros. Desta forma, isto que força o ser humano a pensar, retira a consciência da sua atenção habitual, colocando-a em estado de pura atenção .Nesse estado, o ser humano contempla o que percebe e objetiva o que sente , colocando-se na esfera do sensível com a aptidão de um pensamento que busca na experiência primária da percepção a gênese da sua criação artística.
E aqui tocamos nos pontos cruciais da nossa análise: dizemos que a gênese da obra de arte supõe um estado alterado da consciência ; que este ocorre graças à existência de algo no sensível que torna possível o ato de criar e que este se dá no estado de uma consciência desligada dos interesses práticos que a ocupam no seio da vida cotidiana. Surge aqui um pathos originário de uma consciência que apreende o sensível , tornando sensível a matéria a ser trabalhada pelo criador. Na apreensão do sensível vemos nascer a condição da criação artística e, com ela, torna-se possível advogar a tese de que a gênese da obra de arte supõe uma análise minuciosa do sensível por intermédio de uma consciência sensorial, isto é, de um fluxo que conecta pensamento e sensibilidade. Nesta conexão, cria-se o meio de análise de sensações obtidas como compostos de afetos e paisagens que irão engendrar condições de possibilidade para a composição inédita de um bloco de sensações que será, como mostraremos mais adiante, a obra de arte entendida como o produto da composição . Além disso, a criação da obra de arte é a experimentação de um criador que entra em devir pela invenção de uma linguagem das sensações . Com isso, queremos dizer que na experimentação da obra há uma invenção de uma nova língua acontecendo ao lado de uma mutação no criador, onde nela a obra criada testemunha pela existência de um devir – outro do artista.
Sendo assim, pode a consciência ser o meio de explorações tanto de opiniões, quanto de pensamentos que acionam sua capacidade de tornar sensível sensações extraídas das experimentações. Quando a consciência efetua as condições de um pensamento que cria sensações através de experimentos, só então ela se apresenta na sua dimensão estética, colocando-se a serviço de uma potência de pensar, isto é, de um inconsciente puro de um pensamento que cria as condições efetivas da obra de arte[4].
Pelo mesmo motivo, a obra de arte advém como a expressão dessa consciência estética, sendo , com certeza, uma consciência artística . Se é verdadeira a ideia de que a arte conserva a sensação , fazendo-a convergir com pensamentos que se modulam na consistência da obra , talvez a pertinência maior desse ensaio consista na expressão da consciência estética através da consciência da obra de arte e do devir daquele que a construiu.
Claro está que a consciência da obra de arte e o devir do criador serão os termos finais do nosso trabalho, cabendo agora delimitar a sua condição no domínio da experiência que cria a obra através dessa consciência aqui nomeada de estética. Diante desta alternativa, torna-se necessário afirmar que esse estado estético de consciência se produz na quebra dos hábitos coloquiais que direcionam a consciência para a ação motriz. É preciso quebrar hábitos para pensar na inversão da tendência motora. É preciso criar condições para pensar de uma outra maneira , criando possíveis através do artifício estético de tornar sensível aquilo que permanece insensível quando a atenção consciente se encontra voltada para ação.
Enfim, é necessário aproximar a consciência da intuição e do afeto, tornando-a sensorial e intensa. É nesse sentido que presumimos – com a nossa cautela inicial – a existência da consciência imediata ao relacioná-la com a experiência sutil da realidade. Mas quais são as suas condições?
Em primeiro lugar, ela deve ser definida pelo estado de contemplação[5] passiva que alcançamos quando voltamos nossa atenção para a esfera da percepção imediata ocasionada pela intuição[6]. Em uma atenção primária ativamos o lado sensorial ao desligá-lo da esfera dos interesses motores, vinculando o Perceber e o sentir (perceptos e afetos ) na sensação obtida através de dados imediatos. Nessa esfera a consciência torna-se intuitiva , uma vez que refrata o meio cristalino onde podem germinar as sensações elementares.
Em segundo lugar, que entremos na consideração do pathos da consciência como a contemplação primária que viabiliza um duplo movimento: a percepção imediata da matéria e a intuição do tempo interior. Na consciência contemplativa assistimos ao desenvolvimento da sensação , aglutinando faces que conjugam o mundo físico com imagens que emergem de um passado puro. Ora, é nesse estado de consciência que a intuição advém como “preensão” imediata do tempo no aprofundamento da duração interna. Com isso, o vivente é conduzido da esfera das representações para a contemplação do tempo na sua riqueza heterogênea; buscando através da percepção imediata o vínculo com paisagens externas captadas em conexão com o afeto.
Em terceiro lugar, que a consciência imediata torne-se o meio que conecta o pensamento com o ser do sensível pelo viés da experimentação. Para isso é necessário um acontecimento singular que coloque em suspensão o procedimento das cognições coloquiais que contaminam o processo do conhecimento. A proposta é criar condições experimentais que forcem o pensamento a pensar , estando a experimentação germinada no seio da pura contemplação.
Além disso, há na pura contemplação a necessidade de um dizer que expressa a sensação analisada, tornando a consciência estética em um meio de análise para a implementação de uma linguagem de sensações. Ou seja, há uma linguagem das sensações que é a expressão das experimentações empenhadas em tornar sensível o ser do sensível ; e isto cria a necessidade de advogar o advento de um uso menor da língua como condição sintática da linguagem da sensação .
Enfim, o enunciador da linguagem da sensação é o pensador nomeado ou como figura estética ( DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 229) ou como um heterônimo(PESSOA, 2001) . Sabendo da ideia de que a obra de arte é uma experimentação , não é possível rejeitar a tese de que tal experimento supõe o devir do experimentador. Assim, sustentamos – para mais tarde entrarmos em um detalhamento mais contundente – que o devir na obra de arte supõe pensadores que serão devidamente nomeados tanto na filosofia , quanto na obra de arte.
Por enquanto, comprovamos que tais experiências ocorrem através desse estado alterado de consciência, e que é possível confirmar a tentativa de validar nosso estudo à revelia de teses construídas com o propósito de desqualificar a consciência . Afinal, já nos são conhecidas as teses que desqualificam a consciência em proveito de um inconsciente puro do pensamento. Elas preconizam a existência de uma pura potência de pensar que pode ser explorada através de uma experiência páthica que introduz o impensado no seio do próprio pensamento. Além disso, a ideia Freudiana de que somos regidos por processos mentais inconscientes colabora pela desqualificação da consciência , ao reduzi-la à condição de um simples sistema psíquico. De toda forma – embora existam diferenças entre as duas concepções descritas acima – a consciência é sempre posta como o sistema que recolhe efeitos , reduzindo a percepção do real e da subjetividade aos investimentos de interesses mesquinhos e egoístas.
Embora tais teses encontrem sua fundamentação em teorias do inconsciente que deflagram um certo gosto pelo involuntário, pelo acaso que possa surpreender a consciência em momentos traumáticos que atestam a presença de um acontecimento real; elas não invalidam a possibilidade de pensarmos em uma consciência rara que seja o palco surpreendente de acontecimentos que possam alterá-la, estendê-la, ampliá-la , por intermédio de um pensamento que a eleve à estranha instância de uma consciência pensante inseparável dos movimentos infinitos da matéria.
Sendo assim, confirmamos os “estados alterados de consciência” pelas experiências plasmadas na convicção de que uma consciência intensificada pode ser o meio de expressão de um pensamento puro alçado à esfera de um plano de consistência. Faremos a nossa demonstração buscando no ser do sensível a condição da consciência rara, e traremos para a análise os autores implicados no laboratório estético da produção da obra de arte.
A consciência rara
Há, no sensível, alguma coisa que faz nascer o ato de pensar no seio do pensamento; isto é, algo que engendre o ato de pensar através de um experimentação. É que nessa inflexão, pensar é um acontecimento que supõe uma ocasião para existir; pois não pensamos no elã de um gosto ou de vontade; nem tampouco de uma forma reta e natural. Para pensarmos é preciso que nos coloquemos em uma situação experimental que condicione o surgimento desse acontecimento que é o ato de pensar.
Ora, isto que torna possível o ato de pensar não é, obviamente, um objeto passível de ser reconhecido; pois quando reconhecemos permanecemos na esfera dos interesses práticos, uma vez que o reconhecimento é uma atividade a serviço de uma ação definida por representações interessadas. Sendo assim, isso que força a pensar acontece quando não reconhecemos uma situação e somos, por isso, forçados a contemplar alguma coisa que intensificou os nossos sentidos. Deleuze tem razão quando diz que aquilo que nos força a pensar é o objeto de um encontro, isto é, um signo que advém de um encontro que mobiliza a sensibilidade, colocando-a em presença daquilo que só pode ser sentido. É assim que ele irá se opor ao reconhecimento, pois o sensível, no reconhecimento , “ nunca é o que se pode ser sentido, mas o que se relaciona diretamente com os sentidos num objeto que pode ser lembrado, imaginado, concebido” ( DELEUZE, 2003, p. 206). A respeito do objeto do encontro, Deleuze dirá que
“ele não é uma qualidade, mas um signo. Não é um ser sensível, mas o ser do sensível. Não é o dado, mas aquilo pelo qual o dado é dado. Ele é também, de certo modo, o insensível. É o insensível precisamente do ponto de vista da recognição , isto é, de um ponto de vista de um exercício empírico em que a sensibilidade só apreende o que poderá ser apreendido por outras faculdades… (DELEUZE, 2003, p.203)
É que na instância dessa experiência sensível, o signo advém de um momento intenso que coloca a sensibilidade no seu limite sensorial e faz com ela só transmita às demais faculdades a violência sofrida no encontro. Assim, aquilo que só pode ser sentido, força a imaginação a apreender aquilo que só pode ser imaginado; esta, por sua vez, força a memória a rememorar o que só ela pode apreender – memória involuntária daquilo que só pode ser lembrado, etc. No limite entreaberto pela experimentação, aquilo que só pode ser sentido, “sensibiliza a alma , torna-a perplexa, força-a a colocar um problema , como se o objeto do encontro, o signo, fosse portador de problema” (DELEUZE, 2003, p. 204).
A primeira conseqüência a ser extraída dessa tese diz respeito à situação da subjetividade violentada pelo objeto do encontro. Ao dizermos que o ser do sensível introduz uma violência intensa na sensibilidade, e que esta transmite às outras faculdades a violência sofrida na esfera do encontro; dizemos, por isso, que tal violência tem como efeito imediato a ruptura com o eixo sensato das faculdades, isto é, com o acordo concordante das faculdades que constituía o senso comum. Como Diz Deleuze,
“ cada faculdade saiu dos eixos … Cada uma, por sua conta , destruiu a forma do senso comum, forma que a mantinha no elemento empírico da doxa, para atingir a sua enésima potencia. Em vez de todas as faculdades convergirem e contribuírem para o esforço comum de reconhecer um objeto, assiste-se a um esforço divergente , sendo cada uma colocada em presença de seu próprio , daquilo que a concerne essencialmente. Discórdia das faculdades, cadeia de força e pavio de pólvora, em que cada uma enfrenta o seu limite e só recebe da outra uma violência que a coloca em face de seu elemento próprio ( DELEUZE, 2003, p.205)”.
Ora, é exatamente este acordo discordante que vai forçar o pensamento a problematizar, isto é, a trabalhar o sensível com problemas que irão tornar sensível o ato de criação da obra de arte. E é aqui, precisamente, que surge a condição da consciência rara: nela prevalece a contemplação do ser sensível conectado ao puro pensamento acionado pela perplexidade da experimentação. Nessa esfera, a consciência contempla, como um fluxo, o ser do sensível e o conecta ao crivo de um pensamento nascido de uma experiência intensa , dando vazão a uma atividade criadora. Uma consciência rara é, portanto, uma consciência intensificada – ou um estado alterado de consciência – por uma experimentação disparatada. Nessa, adentramos imediatamente no plano temporal da subjetividade através de uma intuição fundamental do tempo. Ou seja, por este viés a consciência pode ser informada por uma intuição que a coloca à disposição de um pensamento do tempo , isto é, de um pensamento de um movimento apreendido como dado imediato. Ora, quando a consciência é informada pela intuição vemos crescer a indeterminação do agente na exata proporção que ele deixa de agir e aprende a contemplar , entrando em contato com o ser do sensível conectado imediatamente com o tempo puro como forma da interioridade. Pela suspensão da ação motora a consciência contempla – com maior intensidade – os detalhes do sensível e sente, em estado nascente, o tornar-se sensível da sensação em estado crepuscular. Deixa, por um lado, de ser funcional; tornando-se, por outro, sensitiva , isto é, sensorial; abrindo assim as condições reais de um tempo plausível para as sensações.
Por outro lado, a sensação alcançada pela contemplação dará a condição de fazer com que o passado imediato e o presente que passa fluam no seu interior, criando o meio de uma dupla viagem: há , por um lado, a condição simpática de ligar a sensação imediata a blocos físicos co extensivos à matéria; há, por outro, a intuição premente que nos leva a um aprofundamento mais tenaz de um ser do passado que coexiste com o presente que passa. A sensação é o ponto de junção de um passado puro com um presente que se encontra passando; sendo, nela mesma, um composto de afetos e de paisagens ; já que liga no ser do sensível o imediatamente passado com o futuro iminente. A sensação é um composto de afetos e perceptos que agrega uma duração que faz coexistir elementos afetivos com paisagens imagéticas. Mas o que coloca a consciência na intuição da sensação? E o que queremos precisar exatamente com a definição da sensação como um composto de afetos e perceptos?
Os afetos e os perceptos segundo Deleuze & Guattari
Em Deleuze& Guattari (DELEUZE & GUATTARI, 1997) afeto é o devir não humano do homem, isto é, o devir intenso que retira o ser humano dos seus sulcos costumeiros. Nesse aspecto o afeto deve ser diferenciado dos sentimentos habituais que vinculamos ordinariamente às nossa representações. Já os perceptos são as paisagens não humanas da natureza , isto é, as paisagens não humanizadas que o homem alcança quando se encontra em puro estado de contemplação[7]. Com tais definições, convém ligeiro diferenciar afeto de sentimento e percepto de percepção. Os sentimentos são afetos subjetivados pela integração operada na consciência que os vincula às representações do vivido; já as percepções são perceptos integrados às exigências dos nossos interesses práticos. Assim, o percepto e o afeto antecedem de direito às percepções e os sentimentos que habitam o vivido; e devem se tornar sensíveis na operação estética que destrói os clichês do vivido para alcançar a pureza da sensação sensorial. Extrair o percepto da percepção, extrair o afeto do sentimento, fender o vivido para tornar sensível a pura sensação; são estratégias estéticas que validam as condições de experimentação da obra de arte , sendo estas as condições que retiram a consciência da sua disposição habitual.
Além disso, em tal extração, existe um combate contra as opiniões do vivido e um combate – um tanto arriscado – contra o caos[8] , feito por um pensamento que assume o risco da criação, ao criar as condições nascentes de sensações. Sendo a criação na arte uma tarefa de compositor, e sendo esta composição uma atividade construída com sensações experimentadas; cabe dizer que o criador da obra passa pelos estados intensivos que fazem dele um verdadeiro operador em devir, ao criar para si a possibilidade de sentir a sensação de uma outra maneira.
Ora, o que temos resumidamente com tais características? As condições que viabilizam a definição de uma consciência rara, isto é, de uma consciência estética, distinta da consciência habituada com recursos extraídos dos interesses práticos . A consciência comum é sensório motora; a rara é contemplativa; na primeira reina o interesse prático, conservador e adaptativo do ser humano que administra a realidade com a sua inteligência; na segunda, existe a possibilidade de um pensamento criador que trabalha o ser do sensível para dele extrair novas sensações. Na primeira, ficamos restritos aos comandos das opiniões; sendo a segunda a condição de uma experimentação que faz nascer os objetos da arte através da criação do pensamento. Na primeira falamos como tipos psicossociais históricos; na segunda , entramos na experimentação que faz advir o devir outro do criador.
Assim, a consciência rara é o meio adequado à experiência criadora de um pensamento puro. Mas como é possível tal experiência? Através de um artifício artístico devidamente delineado por Fernando Pessoa no seu laboratório poético, e corroborado por Deleuze e Guattari que constroem a teoria da sensação e consolidam a sua lógica pela intuição artística posta em análise no nosso texto. Vejamos em detalhe o procedimento de Fernando Pessoa.
O laboratório poético de Fernando Pessoa
Em seu livro intitulado “ Fernando Pessoa ou A metafísica das sensações” , José Gil ( GIL, s/d) analisa o laboratório poético de Pessoa no livro do desassossego[9]. Diz que o livro escrito pelo semi-heterônimo Bernardo Soares pode ser entendido como o protocolo laboratorial do desassossego, sendo este o ambiente de germinação das sensações poéticas. Ou seja, segundo o autor há em Pessoa a necessidade poética de narrar a condição da criação da poesia , utilizando os recursos da experiência do desassossego.
Assim, o desassossego é posto como a condição da criação do poema segundo etapas que envolvem toda uma involução de consciência que podemos analisar na confluência com as teses de Bergson. Sejamos pacientes com as suas etapas fundamentais: faremos, inicialmente, as indicações sugeridas por José Gil no primeiro capítulo do seu livro de Fernando Pessoa; e buscaremos, no próprio desassossego , as condições laboratoriais da consciência rara. Nossa meta é conjugar as nuances poéticas de Fernando Pessoa com a contemplação intuitiva da filosofia de Bergson. Tendo feita a conexão teremos, enfim, a demonstração cabal da consciência estética através da conjunção da intuição com a sensação. Vejamos os principais aspectos do laboratório poético.
É no lado de dentro do fora que florescem as sensações mínimas que farão germinar o poema. Lido pelo atravessamento poético tal enunciado pode ser assimilado a uma mera metáfora de sensação. E talvez ele até mesmo o seja, na condição de precisarmos a metáfora no seu poder de operar transporte. Entretanto, na estética de Pessoa o enunciado acima precisa as condições iniciais da experiência do poema através de uma análise minuciosa do espaço entreaberto pela sensação. É que na esfera do sentir primário – ali onde a sensação floresce sem ser acrescida da urgência de ter uma significação – não existe a separação habitual entre um interior e o exterior, entre um dentro e um fora, entre uma realidade regida pelo principio do prazer e um principio de realidade que modera a ambição dos apetites; em suma, não existe a realidade em oposição aos secretos desejos regidos pelo principio do prazer. O lado de dentro do fora é assim o espaço tempo entreaberto por uma sensação que , de direito , conjuga, como já vimos, o afeto e o percepto na sua preensão imediata.
Há um entre – enlace entre o dentro e o fora, um devir que vai na direção do fora em conjunção com uma paisagem interna. A sensação é um composto de afetos e perceptos, isto é , é uma aglomerado de sentires primários investidos em paisagens rítmicas. Ora, vista dessa maneira há na experiência da sensação todo um esforço para sentir que exige da consciência uma outra disposição existencial . Se no curso habitual das nossas atividades a consciência trabalha a serviço dos nossos interesses práticos, se ela funciona, na vinculação com o meio externo, procurando oferecer ao ser humano condições de funcionamento e de efetuação de interesses; na esfera do sentir ela irá se converter à sensação, irá se aproximar do sentir através de uma atenção aplicada à sensação, se colocando a serviço de um pensamento estético.
No laboratório poético de Fernando Pessoa tal procedimento será nomeado de sensacionismo. A invenção da palavra logo diz que aquilo que é buscado se traduz exatamente como uma lógica das sensações. Nessa, há três etapas fundamentais: tornar a consciência sensorial, isto é, procurar anular a distancia entre a consciência e o sentir; tornar a sensação abstrata; isto é, fazê-la entrar na consciência , submetendo-a a uma análise pormenorizada; e tomar consciência da consciência através da escrita fina da sensação analisada. Ou como escreve José Gil:
“ para passar da mera emoção sem sentido à emoção artística , ou suscetível de se tornar artística , uma sensação tem que ser intelectualizada. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação , e esse fato de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; e , depois, uma consciência dessa consciência , isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal – o que dá a emoção artística – essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa ( GIL, s/d, p.31).”
O desdobramento dessas três etapas darão o revelo daquilo que consideramos essencial para a nossa análise. Vejamos a primeira operação .
O que vem a ser exatamente uma consciência sensorial? Uma atenção redobrada advinda da suspensão da ação motora. É que a consciência na sua função habitual preside ações ao escolher dentre ações possíveis a mais eficaz para o ser humano. Normalmente, a consciência se vincula a ação motora e percebe o objeto sobre o qual a ação irá incidir , através de uma escolha puramente funcional e interessada. Entretanto, quando a ação motora não se impõe como necessária, a contemplação como atividade de consciência ganha um relevo, fazendo o humano ter uma atenção redobrada ao voltar a consciência para as faces sensórias. Ora, tal estado de consciência não deve ser entendido como uma postura voluntária , nem tampouco intencional. Na verdade, a consciência sensorial é o estado no qual caímos quando somos inquietados por questões que exigem de nós tal atenção premente. É a necessidade de criar que se torna imperativa, tornando possível a sensação em estado nascente pela via laboratorial da contemplação.No laboratório poético do desassossego a inquietude desejada supõe uma renúncia aos movimentos largos e interessados da vida. Curiosamente, o desassossego exige um estar em sossego para alcançar a inquietude[10]. Ou melhor, é preciso não agir para contemplar e é preciso entrar em contemplação para tornar possível novas maneiras de sentir.
Além disso, a escolha deliberada pela contemplação é apenas a condição de fato para a análise da sensação. Nela, o sujeito vive uma duração intensa na exata proporção em que não sente a necessidade de agir para dela se livrar. Ou seja, ao perceber e sentir ele cria a condição sensorial para fazer com que as sensações mínimas se proliferem, abrindo mão do espaço tempo definido pelas ações motoras. Isto vai resultar no ingresso em um novo espaço tempo? Sim, pois o espaço tempo da criação na arte supõe tão somente o meio amorfo capaz de fazer proliferar as sensações. Trata-se , por um lado, de um espaço tátil; e por outro de um tempo espesso , de uma duração concreta que faz proliferar pela atenção as sensações das coisas mínimas de forma intensa.
Dito assim, é preciso concluir que a consciência sensorial é o momento páthico que torna sensível sensações de coisas mínimas, dando ao experimentador condições espaços-temporais de manipulações de sensações. Ao aproximarmos a consciência da sensação, percebemos uma certa incorporação da consciência que abstrai a sensação ao torná-la sensação de consciência. E aqui chegamos ao segundo procedimento proposto.
A consciência da sensação pela via da incorporação conduz o experimentador a um novo movimento de abstração: nele, é preciso libertar a sensação do objeto para torná-la abstrata ; analisar a sensação abstrata para dela extrair outras sensações; compor as sensações analisadas segundo a lógica especifica da criação poética, para traçar o plano de composição poética. Aqui, toda a analise é feita na consciência que desfia as sensações abstraídas , para tratá-las segundo uma lógica expressiva: buscar as sensações elementares pelo procedimento da destruição dos aglomerados representativos; para criar as condições poéticas de composições inéditas pela possibilidade entreaberta das sensações analisadas. Enfim, analisar e compor sensações abstratas é o processo de criação que torna possível o advento de novas sensações. Ora, ao colocar o procedimento nesses termos , podemos dizer que o poeta cria blocos de sensações analisadas e traça o plano de composição da experiência poética. Tal plano é inseparável do movimento de versificação e funciona como a terra do poema captado pelo poeta através de uma intuição artística. Ou seja, no trabalho de composição da sensação já existe a preocupação preliminar de traçar o vetor que irá se expressar no verso acontecido na terceira etapa da criação poética: tomar consciência da consciência através da escrita analisada pelo laboratório poético. Agora, escrever é exprimir sensações analisadas , conferindo ao verso o estatuto de matéria de expressão para visões e audições que irão habitar a dimensão da palavra .
O que podemos concluir da breve análise empreendida com as três etapas? Que a obra de arte é a expressão escrita de uma consciência que desfia sensações para criar novas sensações, obedecendo a lógica de um pensamento que impõe ao poema suas ideias estéticas; que a obra de arte conserva também o bloco de sensações forjado no laboratório poético; que nessa conservação existe igualmente a preservação do pensamento que ditou a composição; que existe, por isso, uma consciência da obra de arte que nasce na duplicação da consciência que engendrou o traçado do verso e que há, enfim, um devir do criador que é o pensador que operou, ao longo do processo, o traçado do verso .
Percebemos que a lógica da sensação de Fernando Pessoa ressoa com a ideia de Deleuze e Guattari de que a arte cria blocos de sensações e que faz conservar tais blocos na consciência da obra que é produto do trabalho do compositor. Além disso, quando Deleuze&Guattari dizem que a arte cria blocos de sensações através de um combate do pensamento contra o caos, não estão eles retomando em uma outra escala o sensacionismo de Pessoa? Talvez a ideia de criação pelo combate contra o caos já estivesse prenunciada na análise da sensação de Pessoa. Talvez a exploração da sensação de coisas mínimas passe pelo crivo , nada elementar, de um caos entrevisto no ato de criar. Contudo, nossa certeza consiste na evidencia de que não pode haver ato de criação sem uma consciência arrancada dos seus sulcos habituais e plasmada na experimentação pelo trabalho de composição que oferta consistência às sensações da obra. Sendo assim, o exemplo de Pessoa comprova nossa ideia da existência de uma consciência rara e a tese de Deleuze & Guattari torna possível o manejo e a conservação de tal consciência na obra de arte. Cabe agora entendermos como ocorre tal conservação.
A consciência da obra de arte
A consciência da obra de arte é o reflexo de um pensamento construído com a linguagem das sensações. Sendo a arte um poema, diremos que consciência do poema é o meio que faz conservar a obra , dando a ela uma eternidade coexistente com o material. Como dizem Deleuze e Guattari;
“A arte conserva , e é a única coisa no mundo que se conserva. Conserva e se conserva em si , embora de fato não dure mais que seu suporte e seus materiais … A moça guarda a pose que tinha há cinco mil anos … O ar guarda a agitação , o sopro, a luz que tinha tal dia do ano passado… Se a arte conserva , não é a maneira da indústria, que acrescenta uma substância para fazer durar o composto. A coisa tornou-se, desde o início, independente de seu “ modelo” … ela não é dependente do espectador ou do auditor atuais… Ela é independente do criador, pela auto-posição do criado , que se conserva em si. O que se conserva, a coisa ou a obra de arte , é um bloco de sensações , isto é, um composto de perceptos e afetos (DELEUZE&GUATTARI, 1997, p. 213).”
Ou seja, a obra faz conservar aquilo que na vida se dissipa; ela faz durar na textura intrínseca do seu material um bloco de sensações configurados em um meio por nós nomeados de consciência. Na obra , a consciência pode ser difusa, maleável, afeita a consecução de metáforas , de conexões pouco prováveis na vida, mas que se tecem pela composição do poema, sendo, por isso, a consciência autônoma da obra. Queremos, com isso dizer que a obra é, rigorosamente, a expressão consciente de uma minuciosa análise das sensações. Sendo assim, a consciência da obra é o palco das visões e audições que animam o poema , materializando ideias. Ela é o meio de um pensamento páthico versificado e devidamente analisado.
A ideia de uma consciência imanente à obra de arte é evocada por Deleuze e Fernando Pessoa em contextos diferenciados da arte. Por exemplo, no livro Cinema 1 – A imagem movimento – pensando com Bergson uma consciência de direito imanente à matéria[11] – Deleuze dirá que o filme montado e exibido na tela dá a esta o estatuto de uma consciência. Mas como é possível tal comparação? Como pensar uma consciência de direito imanente à matéria? Concebendo – a partir de Bergson – a matéria como um conjunto de imagens móveis. Ao situar as imagens vistas pelos homens no plano da matéria, Bergson concebia tal plano de imanência como portador de uma consciência difusa e virtual. Procedia contraditando a formula idealista que situava a imagem na consciência humana , ao reduzi-la à condição de representação. Em Matéria e Memória , Bergson chega a dizer que a matéria é em si mesma um conjunto de imagens móveis, e que estas supõem, ao menos de direito, uma consciência difusa e virtual. Ora, a consciência do ser humano – através da qual ele seleciona o que vê e pensa no que vai agir – é ,de fato, uma tela negra onde irão se revelar as imagens do mundo segundo os seus interesses. Mas nesse caso, a consciência seletiva do humano foi assimilada a uma tela negra, a um ecrã . A rigor ele reflete e enquadra as imagens do mundo, formando um mundo próprio segundo os seus interesses práticos . Na realidade, a consciência humana opera enquadramentos perceptivos, rememora fatos passados , analisa sensações vividas, investe representações, segundo um desejo particular, e toma decisões no plano efetivo das ações motoras. Ele faz da sua consciência o palco de análises e escolhas que precedem o encadeamento dos raciocínios que serão construídos
É isso que autoriza a Deleuze a tratar a tela de exibição do filme como a consciência da obra? Afinal, não será sobre ela que assistiremos uma composição de imagens empenhadas em refratar o pensamento? Não é nela que assistimos uma seqüência montada de pensamentos e de signos devidamente analisados pelo criação do diretor? Ora, nessa abordagem fica patente a tese de que a tela de cinema – que recebe a luz já montada do filme devidamente analisado – funciona como a consciência do filme, uma vez que se torna palco para a sucessão de imagens e signos que expressarão o pensamento do filme. Em suma, existe uma consciência da obra na tela de cinema. Se ela é o resultado de uma composição estética, devemos, igualmente, dizer que ela é também o meio refletor de pensamentos transmitidos através de blocos de movimento duração.
Já em Fernando Pessoa a consciência da consciência ( GIL, s/d, cap. 2) – terceira etapa do laboratório poético do desassossego – é a linearidade construída do poema . Na língua das sensações que é a forma de expressão do poema, existe a materialização do verso, do ritmo, do som, e dos sentidos que criam o mundo para uma consciência poética. Ou seja, há versificação de uma consciência na obra que será dramatizada por um heterônimo escolhido em função de uma ideia do pensamento. Sendo a obra de Fernando Pessoa um composto de versos escritos por heterônimos diversos , diremos que nessa diversidade há consciências fluidas sortindo ideias plurais de mundos excentricamente descentrados. Ora, nessa arte do fingimento a consciência da obra é o devir do criador , sendo a experimentação o processo laboratorial que confere à escrita o estatuto de sensação analisada. Ou seja, a análise da sensação é concomitante com o devir do criador, sendo o heterônimo o pensador que dará à consciência da obra a sua assinatura. Com isso, construímos com Pessoa a teoria de consciências poéticas tão diversas quanto as obras, mostrando como é preciso relacioná-las a um enunciador que é inventado pelo verso, ou melhor, pelo risco da invenção de um novo verso convocado pela provocação de um pensamento que se constrói no ato de escrever.
E aqui construímos com Pessoa a ideia de consciências poéticas imanentes às obras. Claro está que o recurso poético posto a prova não dispensa a provocação de considerar a obra de Pessoa um artifício poético, uma arte do fingimento que se plasma pela multiplicação das consciências.
Sendo assim, os exemplos extraídos dos procedimentos analisados por Deleuze e Fernando Pessoa fazem com que consideremos a consciência da obra como o meio de expressão de um pensamento plasmado em um material. Se o pensamento em questão é uma linguagem das sensações, e se a lógica das sensações – em ambos os autores – supõe um trabalho de composição e depuração de ideias; é sobre a consciência da obra que este pensamento será plasmado. Com a consciência expressiva a arte conserva um pensamento no monumento da obra.
Que temos até aqui? A ideia singela de que a obra de arte exprime o pensamento das sensações e de que existe uma consciência na tela e no verso como meio refratário desse pensamento. Resta saber o que ocorre na esfera da experimentação. Afinal, na criação já exposta pelo laboratório das sensações não adiantamos o devir do criador pela via da criação? É aqui que buscamos a última questão que gostaremos de analisar nesse texto, para termos , com contundência , a ocasião de opor àquilo que aqui chamamos de consciência estética à consciência normal do bom senso e do senso comum.
O devir outro do criador e a língua inventada na arte
Na consciência comum agimos desempenhado papéis devidamente configurados nas esferas sociais. Somos enunciadores parciais de tipos históricos e bem delimitados. A enunciação do ato de fala pela via da abordagem pragmática, torna o homem um tipo psicossocial definido pelo contexto territorial no qual ele fala. Por exemplo, Eu vos falo na condição de Presidente da República; ou falo na condição de amante, de amigo, de patrão, etc. Em sociedade os seres falantes habitam territórios e se configuram como tipos que marcam o advento de uma formação territorial. Ou seja, os tipos psicossociais são índices de territórios que marcam o meio histórico de uma determinada época. Sendo assim, é justo concordar com Deleuze e Guattari quando eles dizem que cada época possui os seus tipos , se definindo pelos territórios que demarcam a distribuição dos homens no campo social.
Na criação artística – que põe em relevo a intuição que traceja o plano de composição – assistimos ao advento de figuras estéticas – segundo a proposta de Deleuze & Guattari – ou de heterônimos – segundo denominação de Fernando Pessoa . Diferentemente dos tipos psicossociais que são seres históricos e de opinião; os pensadores que constroem o verso e a lógica das sensações das artes em geral são devires que habitam o pensamento empenhado na construção da obra. Eles surgem da experimentação criadora, sendo pensadores inventados no devir da obra. Criam a condição do novo e testemunham pela saúde imanente ao pensamento ao se apresentarem como os enunciadores da obra. Serão pensadores em nós? Serão figuras inventadas na experiência do pensamento? Cremos que sim e acreditamos que eles sejam os verdadeiros intercessores da construção artística.
Em Deleuze e Guattari, as figuras estéticas apresentadas são os devires imanentes à criação das artes Sendo assim, elas devem ser situadas no campo aberto pela experiência artística: se a arte cria blocos de sensações , traça um plano de composição e torna possível um novo horizonte , ela deve , igualmente, ser construída por uma figura estética que se inventa no devir do pensamento e se exprime na língua criada das sensações . Assim, a figura estética é o devir sensível que habita um personagem de um romance , de um filme, de uma dança ou de uma pintura[12]. Mas convém de imediato não confundir a figura estética com os personagens de uma arte. Uma obra de arte pode conter diversos personagens que não são figuras estéticas. Em contrapartida, falaremos de figura estética quando estivermos diante de um personagem que opera o pensamento do criador , funcionando – na trama- como um pensador operador da obra. Acab, por exemplo, é uma grande figura estética inventada por Melville(MELVILLE, 1972). Com ele , assistimos o devir Baleia do capitão na disputa de vida e morte com a monumental baleia branca Moby Dyck. Por outro lado, deve ocorrer também que a figura estética esteja sempre situada em uma experiência limiar, empenhada em um devir sensível apto a criar condições inumanas para o desenvolvimento da trama. É o que acontece, por exemplo, com Gregor Samsa na esplêndida novela de Kafka(KAKFA, 2004): através do devir animal – inominável inseto molecular – há toda uma linha de fuga traçada pelo desejo de escapar das ciladas edipianas da família. Em Kafka , o devir animal de Gregor faz dele uma figura estética encarregada de operar o pensamento libertário e minoritário do escritor. Ou seja, as figuras estéticas interferem diretamente no destino da obra, e participam ativamente do movimento do pensamento do escritor.
Já em Pessoa os heterônimos são inventados pela exigência de um pensamento extremamente plural. Nele, convive a arte de criar outros nomes para o processo imanente à experiência poética. Com a audácia de quem faz da poesia uma travessia existencial, existe também em Pessoa a alegria difusa de encontrar pelo verso as diversidades das enunciações que a mentira poética faz valorar. Assim, na construção do verso , na execução das ideias que o verso adianta ; na sensação analisada e expressa pelo poema há a necessidade de interrogar pelo seu enunciador. Quem é o enunciador do verso? Quem se responsabiliza pela invenção da obra ? Como nomear o devir de uma obra sem recorrer ao enunciador que a faz caminhar? Tais enunciadores são pensadores poetas que recebem a justiça do outro nome, do heterônimo pensador[13].
Embora a questão que origina o texto coloque em ressonância a figura estética e os heterônimos – pois ambos funcionam como devires dos criadores – ; há em Pessoa a singeleza do gesto já que nele a heteronímia inaugura a tentativa poética de por um fim à coerência intrínseca da obra. Sendo assim, a heteronímia é o exercício cabal de um pensamento do plural que ex-centra a obra pelos devires do fingimento. Isto ele diz de forma magistral quando apresenta a sua “consciência da pluralidade”
“Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe ( se é esses outros) . Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha , nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo(…) Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa , e quantos mais haja havidos ou por haver (PESSOA, 1990, p. 81 )
Ou seja, de Alberto Caeiro à Álvaro de Campos; deste à Ricardo Reis – sem esquecer a reinvenção de Fernando Pessoa na célebre viagem da chuva oblíqua – , passando pelos semi heterônimos que animam a obra, para retomar evidentemente o guardador de livros que é o Bernardo Soares; percebemos a diversidade da obra se diferenciar , igualmente, por enunciadores plurais autorizados por um pensamento consagrado ao diverso e tão diverso na forma e no conteúdo.
Enfim, as figuras estéticas ou os heterônimos são devires inerentes à criação artística, que podem receber uma adequada avaliação pelo estilo construído na língua da arte. Sendo a obra de arte inseparável da invenção de uma nova língua, e sendo a criação da obra a expressão de uma linguagem da sensação, cumpre dizer que há na obra a duração de uma linguagem intensa plasmada em uma consciência limpa e conservada pelo artifício de um material inorgânico.
Referências
BERGSON, H. Matéria e Memória . São Paulo: Martins Fontes, 1990._______________. O Pensamento e o Movente . São Paulo: Martins Fontes, 2006.
DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34 letras, 2008
_______________ Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 2006
______________ Cinema 1 – A imagem-Movimento. Lisboa: Assírio & Alvim , 2004.
DELEUZE, G & GUATTARI, F. Kafka – Por uma Literatura Menor.Rio de Janeiro: Imago, 1977.
_________________________________. O que é a Filosofia?. Rio de Janeiro: Ed. 34 letras, 1997.
GIL, J. Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações . Lisboa: Relógio D’água, s/d.
KAFKA, F. A metamorfose in Os Contos Vol. 1 – Lisboa: Assírio Alvim, 2004
MELVILLE, H. Moby Dick. São Paulo: Abril Cultural, 1972
PESSOA, F. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.
PESSOA, F. O Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
____________. Fernando Pessoa – Obra Poética . Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 2001.
[1] Ser do sensível é aquilo que só pode ser sentido pela sensibilidade. Algo intenso que mobiliza a sensibilidade, forçando o pensamento a se exercer. Tal noção, desenvolvida por Gilles Deleuze em Diferença e Repetição, será devidamente apresentada na segunda metade do nosso estudo. Aqui, adiantamos uma definição provisória para estabelecermos um esclarecimento inicial da noção.
[2] Essa definição da consciência de fato pode ser lida ao longo do primeiro capítulo de Matéria e Memória. Ao longo do estudo, o leitor perceberá que Bergson será utilizado em função do intervalo de indeterminação toda vez que nós estivermos situando a consciência no seu aspecto temporal.
[3] Tempo de indeterminação é, igualmente, uma duração interna que em Bergson se mostra como um tempo heterogêneo constituído por uma multiplicidade qualitativa ou virtual. Tal tese , exposta no livro intitulado Ensaios sobre os dados imediatos da Consciência, é aludida no trabalho como a condição preliminar de uma consciência contemplativa. Queremos , com isso, pensar livremente a condição da consciência imediata quando ela se livra dos interesses práticos ou sensório- motores.
[4] Inconsciente puro do pensamento e pensamento inconsciente é uma diferença demonstrada por Deleuze a partir da Ética de Spinoza. De acordo com Deleuze, há em Spinoza uma concepção de pensamento referida a uma potência de pensar que é inconsciente em relação à qual a consciência é efeito, Observem de que aqui não falamos de representações recalcadas, mas antes de uma potência de pensar que pode ativar a consciência quando ela for exercida. Tal exercício será no nosso trabalho a condição da consciência alterada. Sobre o inconsciente puro do pensamento ver Gilles Deleuze, Spinoza, Filosofia Prática – capítulo 2.
[5] A contemplação na arte é explorada por Deleuze e Guattari na conclusão do Livro O que é a filosofia? , para explicitar a condição estética de uma síntese passiva que apreende a sensação em estado puro. Tal ideia já havia sido utilizada por Deleuze no capítulo a repetição para si mesma do livro Diferença e Repetição, e foi retomada na conclusão intitulada Do caos ao cérebro escrito pela dupla. Aqui utilizamos a noção de contemplação, relacionando-a a um momento páthico da consciência estética.
[6] A intuição é visão direta do espírito por ele mesmo. Com tal palavra Bergson propõe uma forma de acesso imediato da duração interna e elabora, posteriormente, o seu método filosófico com o mesmo nome. Aqui utilizamos a intuição como forma de acesso imediato da duração e propomos esta forma como a condição da consciência rara. Sobre a intuição recomendamos a leitura dos dois capítulos iniciais do livro O pensamento e o movente de Henri Bergson.
[7] A apresentação da sensação como um composto de afetos e perceptos inaugura o capítulo sobre a criação artística que Deleuze & Guattari apresentam no livro O que é a filosofia? . Ao longo do texto o leitor terá detalhes sobre os diversos procedimentos artísticos apresentados como exemplos das definições acima propostas. Além disso, na conclusão desse livro – intitulada Do caos ao cérebro –os dois autores irão trabalhar a criação na arte através desse crivo no caos, dizendo como é plausível uma construção de uma lógica das sensações erigida por um procedimento criacionista.
[8] Deleuze & Guattari , Idem, p.
[9] A análise do livro do desassossego feita por José Gil se encontra desenvolvida ao longo dos dois primeiros capítulos do Livro “ Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações . Lá, o autor apresenta os detalhes que fundamentam a ideia de que tal livro seja a exposição do laboratório poético de Fernando Pessoa.
[10] Toda as páginas iniciais do livro do desassossego é uma apologia das “horas lentas e vazias”, onde nela o desassossego cresce. Em Fernando Pessoa a ideia de desassossego se vincula à capacidade de análise das sensações posta como uma conquista do terreno primário dos sentires. Para um esclarecimento geral da ideia, indicamos a leitura das psg 54 – 80 do Livro do desassossego. Nelas teremos a precisão este estranho desassossego na vida anódina de Bernardo Soares.
[11] Existe um capítulo intitulado “a imagem – movimento e as suas três variedades” , onde nele Deleuze aborda o primeiro capítulo de Matéria e Memória de Bergson para extrair da análise uma ideia de consciência virtual imanente ao plano da matéria e a ideia, não menos profícua, de assimilar a tela cinematográfica à consciência limpa do filme. Para maiores detalhes dessa aproximação que analisamos no texto, indicamos Cinema 1 – A imagem – movimento, cap. 4, pgs 93-114.
[12] As figuras estéticas fazem parte da lógica das sensações. Elas são evocadas como explicações dos devires do criador no capítulo em que Deleuze & Guattari tratam da criação na obra de arte. Para um melhor detalhamento de tais figuras indicamos a leitura de Percepto, Afecto e Conceito in O que é a Filosofia? Pgs. 229-232.
[13] Heterônimos poetas são essenciais em toda a obra escrita por Fernando Pessoa. Na Obra poética completa encontramos os poemas de todos os principais heterônimos e de outros não mencionados nesse estudo. Os heterônimos na nossa avaliação são os devires do poeta que foram, brilhantemente, nomeados por Fernando Pessoa. Aqui, propomos uma associação entre tais heterônimos e as figuras estéticas analisadas por Deleuze&Guattari.