A Experiência do Fora contra a Imagem Ortodoxa e Estatal da Filosofia. O pensamento Nômade de Deleuze e Guattari
Considerações iniciais:
A experiência do Fora[1] se diz de uma forma de pensar onde nela o pensamento só funciona quando for violentado por forças oriundas de uma experimentação. Como em tais circunstâncias estas experimentações produzem encontros contingentes que forçam o pensador a sair da esfera da representação, pensar em tal experiência é criar problematizações e conceitos que valorizem o novo, a diferença e o devir situado em um lado de fora distinto das dimensões sedimentadas da história. De uma outra maneira, a experiência do fora ocorre em uma forma de pensar cuja atividade se faz pela ruptura que um pensador estabelece quando combate pressupostos morais que habitam uma imagem ortodoxa e estatal da filosofia, para fazer do pensamento uma experiência errática que positive a produção de uma diferença em si, não inscrita no universo da representação. Nela, o ato de pensar acontece pela criação de uma experiência limite resultante de um combate contra as opiniões e ortodoxias existentes na aliança que certas filosofias fazem entre o pensamento e o ideal do estado. Se em tal ortodoxia a filosofia constrói, em tempos diversos, a convicção de que pensar seja o exercício natural de uma faculdade que se diz de um pensador que busca representar a realidade estabelecida; na experiência do fora é o questionamento do mundo estabelecido que faz advir um pensamento que só funciona quando problematiza a realidade para criar as condições de uma diferença inovadora por intermédio de atos criadores. Assim, a experiência do fora se diz de um pensamento que combate ideais sustentados por certas filosofias; configurando-se em uma forma de pensar que tem na criação a melhor maneira de escapar das armadilhas de um estado que se entranhou na filosofia. Ou seja, contra as filosofias que sustentam consensos na esfera de um pensamento para apoiar os ideais do estado, na experiência do fora encontraremos a experimentação de um pensamento extemporâneo e inatual.
Dito assim, configuraremos a experiência do fora em um combate contra uma imagem ortodoxa e estatal do pensamento, situando-a em uma experimentação que a filosofia alcança quando rompe com os ideais dogmáticos da representação justificados por alguns postulados e configurados em três ilusões que perpassam sua história: a ilusão da contemplação – construída na idade antiga pelo fundador de uma República filosófica – a ilusão da reflexão – trabalhada pelos pensadores do Cogito cuja crítica encontra em Kant a sua filosofia transcendental e estatal – e a ilusão da comunicação – cuja idade advém com a fenomenologia que faz consolidar um idealismo intersubjetivo que possibilita uma comunicação transcendental vinculada a uma opinião originária.
Cabe acrescentar que a experiência do fora propõe uma reversão da imagem ortodoxa do pensamento, buscando na aurora da filosofia o momento em que uma imanência é negada, uma diferença em devir é banida pela escolha de um pensador que se consagra aos ideais normativos de uma República filosófica, cujo pensamento constrói vocações estatais[2]. Neste caso, a experiência do fora é uma aposta na diferença e na radicalização da mudança pelo enaltecimento de um pensamento imanente construído por pensadores do devir. Todavia, para que tal aposta venha a se configurar como um gesto errático de uma filosofia intempestiva, torna-se preciso percorrer o trajeto da imagem dogmática ao longo da sua história.
Assim, ao sustentar as ideias de que pensar seja alcançar as condições de uma contemplação da realidade, de uma reflexão moderna e crítica que faz apelo a um sujeito que toma para si a tarefa de refletir com ideias a priori as condições da representação do mundo externo ou de uma boa comunicação contemporânea posta como a condição de acesso da realidade pela via de um consenso universal; a filosofia se deixa atravessar por três ilusões que habitam o pensamento ao dizer que pensar seja o exercício natural de um faculdade e que o sujeito pensante seja o responsável por uma boa representação da natureza e de uma realidade socialmente consolidada.
Além disso, a filosofia se compromete com a ideia de que a realidade fixa, ordenada, dotada de uma essência pré-estabelecida – que precisa ser descoberta e inventariada pelas representações do pensador -; supõe valores universais que se consagram como verdades eternas. Neste caso, ao pensarmos que a tarefa do pensamento se torna nesta configuração uma atividade que busca restaurar os direitos de um real já estabelecido; não podemos negligenciar aqui a posição de um pensador que tomou para si a responsabilidade de ser um representante dos valores universais dela. Nesse sentido, o ideal de uma representação passa a ser buscado por uma filosofia que valoriza um mundo moralmente consolidado, procurando preservar os valores que ela supõe serem universais, garantindo aqui sua conveniência com o consenso estatal.
Ora, quando o pensador se faz o representante da realidade é a filosofia como representação que se erige como um dogma que diz que sua função é a de representar a realidade com postulados universais consolidados para a fundamentação de um reconhecimento da situação do homem na mesma. Mas de onde o pensador extrai a convicção de que existe uma realidade dada a ser contemplada, refletida ou comunicada? Da opinião, por um lado – da Doxa como dizem os Gregos – e da forma estado construída pelos manipuladores da opinião. Neste sentido, quando uma forma estatal se desenvolve no pensamento com o propósito de majorar certas opiniões, ela oferece a filosofia a forma com a qual ela irá se constituir; colocando o pensador como o representante de um pensamento cujo ideal instaura uma ortodoxia dogmática e moral; ao pensar em uma maneira de justificar a realidade dada pela sua correção e moralização. Mais quais são as formas que a filosofia retira da opinião para construir tal ortodoxia moral? As formas do Bom Senso aqui entendido como norma de partilha e do Senso Comum posto como regra de identidade, cujo comprometimento de direito disfarça o conteúdo da opinião, para elevar a doxa a uma ortodoxia moral de uma imagem dogmática configurada nas três idades acima enunciadas.
Dentro desta perspectiva a experiência do fora constitui a ideia de que pensar seja questionar a realidade através de experimentações que engendrem as condições da criação pela invenção de problemas construídos fora do lema da representação. Com tais invenções do pensamento, conceitos são criados através do risco que o pensador experimenta quando combate a ortodoxia moral para enfrentar as forças do caos que habitam o cerne da experiência do pensar. Neste sentido, pensar é combater as opiniões para enfrentar o caos por intermédio de um crivo que faça nascer o novo na experiência da criação. Além disso, na experiência do fora o real se configura pela existência de forças que escapam à história e se situam em um devir não histórico situado fora da representação estatal, mas que pode ser problematizado pelo pensamento e trabalhado pelas problematizações nascidas das suas experimentações.
Dito desta maneira, tal experiência caracteriza uma forma de pensar inatual, isto é, um pensamento do Fora, cuja intempestividade nasce dos problemas que um pensador inventa quando problematiza o seu tempo ao combater as opiniões, para sair da ortodoxia dogmática do pensamento e inventar as condições do novo pelo ato de criação de um nomadismo plasmado no devir e nascido de um crivo no caos. Sendo assim, a experiência do fora é uma crítica à filosofia estatal pelo enaltecimento de um devir oriundo da existência de um nomadismo filosófico, sempre intempestivo e inatual. Como a configuração deste pensamento supõe uma crítica ao ideal da representação – sempre inerente ao pensamento ortodoxo das imagens dogmáticas-, pensar pela experiência do fora é construir as condições do novo pela criação de conceitos concebidos como acontecimentos e lançados na esfera de um plano de imanência a ser traçado fora das organizações que presidem a imagem ortodoxa do pensamento.
Finalmente, a experiência do fora se diz de um pensamento nômade que afirma um modo de vida guerreiro, sua diferença radical e em devir, pela invenção de personagens que enalteçam tal criação através de uma filosofia intempestiva e minoritária. Na noologia filosófica de um modo de vida nômade todo um procedimento minoritário fará a configuração de uma filosofia da diferença como a condição de uma reinvenção de si em um devir-minoritário.
Dito isso, convém esclarecer que o pensamento do fora é uma expressão introduzida por Maurice Blanchot (1987/1984/ 1969) – que com ela pensa a experiência da criação literária – mas que é retomada por três grandes pensadores que relançam a ideia para introduzi-la na esfera de um pensamento que problematiza o seu tempo em proveito de uma nova maneira de pensar. Tais pensadores – tais como Foucault (1988), Deleuze e Guattari(1997) – constroem de formas diferenciadas as condições de um pensamento do Fora, trabalhando o pensamento na esfera de um real que problematiza a história para a construção de um devir.
Todavia, como a consecução do nosso artigo se configura na contrapartida de um combate traçado contra a representação estatal, trabalharemos aqui a noologia de Deleuze e Guattari, para criarmos as condições de uma experiência do fora a ser verificada ao lado da história pela apresentação de pensadores nômades, intempestivos e inatuais configurados na linhagem evocada pelos dois pensadores aqui trabalhados. Neste caso, o artigo trará as intercessões de Nietzsche e Artaud, assim como as contribuições de todos os nômades da história que romperam com o seu tempo para contribuir com a criação de um mundo em devir.
Com a argumentação assim estabelecida, diremos que o artigo será construído em três etapas: em primeiro lugar , criaremos as condições da experiencia do fora – com a sua diferença e seu nomadismo afirmados – pelo combate contra a imagem ortodoxa do pensamento – o que irá nos conduzir a uma crítica a história pela via da ortodoxia configurada na idade da contemplação – onde surge a ortodoxia moral e estatal do pensamento – , da reflexão crítica e da comunicação ; em seguida, mostraremos o nomadismo desta forma inatual de pensar, para, finalmente , construirmos as características inatuais desta filosofia intempestiva através da seguinte asserção: a experiencia do fora configura um pensamento nômade de pensadores guerreiros e voltados para as diferenças que entram em devires minoritários. Nesta etapa final, a filosofia da diferença será configurada por um pensamento nômade que enaltece os devires minoritários das minorias politizadas.
- – A experiência do Fora em um combate contra a Imagem ortodoxa e estatal da filosofia.
Em Mil Platôs – especificamente na parte em que tratam do tratado de Nomadologia; a máquina de guerra – Deleuze e Guattari (1997) articulam a imagem ortodoxa do pensamento com o aparelho de estado, para criarem as condições noológicas do pensamento do fora pela via da experiência nômade. Constroem a intempestividade de tal experiência criticando a forma de um pensamento conformista que funciona segundo um modelo emprestado do aparelho de estado; mostrando, como certas filosofias trabalham o pensamento para enaltecer uma representação da ordem com ideias extraídas da organização estatal. Assim, como dizem os autores, “haveria, portanto, uma imagem do pensamento que constituiria o objeto especial de uma noologia e que seria como a forma-estado” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 43) desenvolvida pela filosofia.
Aqui, tais pensadores apresentam um vínculo noológico de certas filosofias com a forma estado, criticando as condições de uma filosofia ortodoxa pela politização empreendida pelo pensamento do fora. Nela, eles dirão que uma curiosa troca passa a ocorrer entre o pensamento e o estado, onde nela surge as condições da imagem ortodoxa que aqui queremos precisar. Com efeito, o pensamento nesta troca vai ganhar uma gravidade ou uma eficácia que ele não teria por si mesmo; mas o estado também irá lucrar ao se desenvolver na esfera do pensamento. Como dirão Deleuze e Guattari,
“vê-se nitidamente o que o pensamento ganha com isso: uma gravidade que ele jamais teria por si só, um centro que faz com que todas as coisas, inclusive o estado, pareçam existir graças à sua eficácia ou sanção própria. Porém, o Estado não lucra menos. Com efeito, a forma-estado ganha algo de essencial ao desenvolver-se assim no pensamento: todo um consenso. Só o pensamento pode inventar a ficção de um Estado Universal por direito, de elevar o Estado ao universal de direito…É uma curiosa troca que se produz entre o Estado e a Razão … visto que a razão realizada se confunde com o Estado de Direito, assim como o estado de fato é o devir da razão” (Deleuze e Guattari, 1997, páginas 44-45)
O que tais autores constroem de fato é a articulação entre a imagem ortodoxa e o aparelho de Estado, propondo na troca uma inflexão política para a crítica que aqui estabelecemos. Neste aspecto, a imagem ortodoxa do pensamento terá, com certeza, uma história, mas a forma de pensar talvez implique uma certa tendência universal que a filosofia em tempos distintos foi levada a legitimar. Nesse caso, torna-se possível dizer que existem filosofias do estado, pensadores que buscam no estado os recursos de um bom senso e de um senso comum, recebendo daquele o aval de um consenso universal.
Ora, ao pensarmos desta maneira já podemos confirmar desde já a ideia de que a experiência do fora seja inseparável de um pensamento nômade e que a exterioridade da máquina de guerra já se encontra assim em um combate contra a ortodoxia desde o mundo antigo[3]. Sendo assim, acreditamos que a noologia de um pensamento nômade pode ser politicamente localizada ao longo da história e que criar conceitos em tal experiência é construir as condições políticas de existência fora das normas ditadas pela representação estatal. E isto vai consistir na construção de um pensamento do fora, cuja criação conceitual e imanente é inseparável da afirmação de um modo de vida nômade, guerreiro, criador e que afirma a diferença na sua radicalidade pelo enaltecimento de vidas voltadas a afirmação do devir.
Todavia, como a configuração do artigo ocorre no âmbito da noologia, o combate contra a ortodoxia moral que configura a imagem dogmática como um pensamento estatal deve ser estabelecido como um combate empreendido por uma filosofia nômade que traça seu itinerário em uma política filosófica, ao se insurgir contra a opinião dominada pela ortodoxia moral de certas filosofias comprometidas pela forma estado. Sendo assim, trataremos doravante a questão no âmbito de uma política filosófica, procurando estabelecer os critérios mais gerais da ortodoxia moral – ao situá-la no âmbito de uma história do pensamento – para pensarmos na contemporaneidade a experiência do fora na esfera da política noológica.
Entretanto, como nesta noologia a filosofia é atravessada por três ilusões que atravessam o seu pensamento, torna-se importante configurá-las para criarmos os critérios centrais da ortodoxia contemporânea, justificando o combate e a explicitação da experiência do fora neste último período. Sendo assim, uma ilusão da contemplação pode ser historicamente demarcada no contexto de uma filosofia antiga criada com critérios Platônicos. Nela, credita-se ao pensamento a tarefa de contemplar a realidade, procurando algo de imutável na esfera do real para dar à filosofia a tarefa de uma busca da verdade.
É assim, por exemplo, que uma definição da filosofia se erige e toda uma imagem do pensamento vai sendo construída. A ideia de que existam verdades universais que o pensamento procura representar, buscando em representações mentais os critérios de uma boa maneira de conhecer o real é, sem dúvida, um empreendimento construído por Aristóteles, quando define o pensamento como natural e espontâneo produzindo os liames clássicos da ortodoxia grega. Entretanto, se a representação ganha em Aristóteles a sua definição formal, talvez seja em Platão que a política da ortodoxia moral venha a ganhar seu fundamento estatal. Neste caso, uma abordagem da idade da contemplação, com as nuances políticas e morais aqui trabalhadas, supõe uma breve intercessão entre a filosofia platônica e aristotélica que faremos com o propósito de mostrarmos o essencial do ideal da ortodoxia moral que passa a existir entre os Gregos. Como defini-lo? Pensando a busca da verdade pela via de um ideal do conhecimento, ao buscar o verdadeiro no cerne de um mundo imutável e perfeito constituído por essências eternas, fixas e regidas pelo princípio de identidade. Com tal investigação colocaremos em evidência a motivação do platonismo e a condição de sua reversão pelo enaltecimento de um pensador do Fora – fisiólogo e artista – que será investigado pela sua tarefa. Aqui, a reversão do platonismo será empreendida por Deleuze em uma retomada de Nietzsche[4].
- – A idade eidética da contemplação e a sua reversão
A imagem ortodoxa do pensamento se consolida na Grécia através dos textos de Aristóteles, mas encontra em Platão os fundamentos da representação estatal e as condições de sua reversão. Neste caso, talvez uma abordagem do seu fundador possa elucidar o problema que faz a filosofia reinar pelo banimento de uma diferença, cujo retorno se impõe na presença do pensador inoportuno: o artista e o fisiólogo nômade.
É assim que Platão ao ser trabalhado por Deleuze com Nietzsche vai colocar em evidência a sua própria reversão por intermédio de uma ambiguidade encontrada na sua obra. Todavia, cumpre perguntar: o que vem a ser reverter o platonismo? Descobrir sua motivação política e moral e encontrar nela o elemento que ele busca eliminar. Mas qual é a motivação do platonismo? Buscar as condições que irão fundar uma República bem governada, por um político que contempla um mundo verdadeiro situado na instância metafisica das ideias eternas; para selecionar as pretensões daqueles que vivem imitando os seres inteligíveis (cópias boas e más) e para banir as diferenças livres de simuladores sofistas e pensadores estrangeiros que buscam na arte uma aliança com o devir.
Sendo assim, para estabelecer as diferenças existentes entre as coisas, Platão inventa um método de divisão que visa alcançar a definição de uma coisa investigada pela especificação através de uma seleção que busca aparentemente dividir um gênero em espécies contrarias. Aristóteles conhecia tal método e o situava como um protótipo impreciso de um procedimento de especificação que tinha como ponto de partida um gênero universal que seria secionado por uma diferença especifica e constituiria com a mesma a espécie buscada. Assim, por exemplo, quando buscamos a definição do homem enquanto espécie é preciso encontrar a diferença especifica racional que ao se acrescentar ao gênero animal irá diferenciá-lo dos demais animais.
Todavia, mesmo levando em conta a crítica de Aristóteles, não podemos prescindir dos propósitos morais implicados na metodologia de Platão. Afinal, o método de divisão no pensador que funda a filosofia, possui propósitos políticos explicitamente precisos onde neles a função é dividir um termo em noções opostas, buscando uma definição nominal da coisa definida por intermédio da seleção alcançada pela parte escolhida na divisão assim feita. Nesse caso, dividir um termo em noções opostas é escolher qual linha deve ser seguida e qual deva ser abandonada. Neste caso, o método consiste em dividir um termo em dois e em escolher o termo eleito que será dividido em dois, sempre abandonando uma seção na divisão assim empreendida. Todavia, o critério da boa divisão consiste em situar o termo buscado sempre do lado direito da seção assim obtida. Com a consecução da divisão assim empreendida surge e definição da coisa procurada e o critério metodológico fica parcialmente estabelecido[5].
Todavia, convém acrescentar que a divisão assim pretendida ocorre em um contexto regido por sujeitos que disputam uma questão construída pela experiência sensível. Neste aspecto, a dialética platônica se desenvolve em um cenário político habitado por rivais que disputam pela palavra uma noção colocada como o termo da discussão. Curiosamente a noção disputada vai depender da maneira como a questão é formulada e, quase sempre, ela o é por intermédio de comparações estabelecidas pelos rivais que se enfrentam na esfera do diálogo. Assim, por exemplo, em um diálogo intitulado Laques (Platão,1950, vol. I) os rivais se interessam em saber qual ato humano deva ser considerado o mais corajoso; já no Banquete os rivais proferem discursos para saberem qual a forma de amor deve ser considerada a mais elevada e no Político a questão é saber quem merece por méritos próprios assumir o governo da cidade.
Percebemos, com relativa clareza, que a disputa em questão decorre de pontos de vistas de rivais que se opõem ao sustentarem pela palavra os seus respectivos pontos de vistas; procurando vencer a disputa pela via da persuasão. Ora, é em tais circunstâncias que o método de divisão vai ganhar uma pertinência epistemológica; pois com ele se dá a emergência de um Logos de um pensador que interroga seus adversários de uma maneira ainda a ser exemplificada. E muito embora em tais diálogos as questões que ensejam o método de divisão versem sobre temas ontológicos, ela se dá em um meio dialético onde uma rivalidade se estabelece entre homens que disputam de fato um termo posto em disputa, mas só contam com opiniões construídas por uma fala inferida de exemplos extraídos da experiencia sensível. Desta maneira, torna-se possível dizer que a função da divisão visa estabelecer os critérios de uma boa definição da noção; estando a finalidade da mesma fixada em um ideal da coisa procurada, que Platão faz Sócrates estabelecer no mundo eterno das ideias.
Assim, por exemplo, em um diálogo chamado o Político (Platão, 1950, vol. II) a divisão se estabelece pela questão do político na ocasião em que os rivais pretendem saber o que é preciso fazer para governarem a cidade. Neste momento, Sócrates intervém com a questão “O que é o político? exigindo dos rivais uma definição da noção procurada. Ao proceder com a divisão buscando a natureza do político sempre de um lado do termo que foi escolhido, ele chega à definição da política como uma arte de governar a cidade, estando o político situado como o pastor dos homens. Todavia, quando assim ele define a coisa procurada, resta entender se ela corresponde a alguém que tenha um correlato metafisico que fundamente a definição. Mas quem é o político em si mesmo. Surpreendentemente, a questão Socrática vai consistir em buscar em um mito a fundação da política, através da narrativa do pastor arcaico que presidia em tempos imemoriais o governo dos homens.
Ora, a intervenção do mito aparece, a princípio, como algo que escapa das intenções lógicas e argumentativas construídas por Platão; mas logo se percebe que ele advoga de uma forma irônica um fundamento metafisico que justifique os critérios de um bom governo, mostrando como o seu conhecimento pode dar àquele que o conheça as condições de exercer o governo na atualidade. Assim, se o pastor arcaico evocado no mito se ausenta do governo atual dos homens, deve alguém assumir tal função pelo conhecimento aproximativo que o autorize a governar a cidade. Quem seria tal sujeito? O Filósofo defensor de uma República que prescreve a melhor maneira de governar a cidade por conhecer a verdade do mito e maneira correta de com ele se conduzir.
Convém lembrar que o procedimento tende a se repetir nos diálogos metafísicos construídos por Platão, estando a divisão empreendida em diálogos que visam entender o que é a Beleza, a Coragem e a Virtude, sempre com propósitos metafísicos e morais empreendidos com argumentos explicitamente dogmáticos. Além disso, o mundo das ideias é colocado como um mundo verdadeiro, constituído por essências eternas, fixas e imutáveis, onde entre elas uma participação torna-se possível para sustentar o problema da predicação; organizando a maneira de construir juízos predicativos a serviço de um julgamento moral.
Tal mundo – retirado da esfera do tempo- constitui o ser em si de ideias positivas e eternas que funcionam como o modelo do qual todas as coisas foram produzidas através da ação de Deus Fabricante – O mito do Demiurgo que consta no Timeu (Platão, 1950, vol. II ) – que decide moldar o sensível pela contemplação das essências inteligíveis. Neste caso, a essência contemplada pelo pai fabricante pertence ao mundo eterno das ideias, que ao contemplar a perfeição de tal mundo decide moldar uma matéria ilimitada dando a ela uma forma e procurando configurá-la como uma cópia.
Com isso, Platão funda uma compreensão do mundo sensível ao construir uma teoria da participação de caráter ontológico e epistemológico. Por um lado, ele diz que as coisas sensíveis são cópias dos seres inteligíveis, por outro ele diz que existe um conhecimento correlato a tais cópias e na hierarquia de tais saberes, haveria um saber da verdade assegurado pelo conhecimento intuitivo da ideia. Ao tratar os seres sensíveis como cópias, ele adota o critério da semelhança ao dizer que uma cópia é feita à imagem e semelhança da ideia regida pelo princípio de identidade. Neste sentido, ela é cópia na medida em que participa de alguma qualidade que a ideia deu a participar, mas participa em segundo lugar pois só retém da ideia a qualidade que ela possui em essência. Por exemplo, ao existir a ideia da coragem em si, isto, uma essência da coragem; torna-se possível saber qual ato humano pode ser considerado mais corajoso pelo critério imitativo da semelhança. Da mesma maneira, uma pessoa bela só pode ser avaliada como muito bela quando for reportada a um modelo de beleza existente em si. Havendo um belo em si mesmo, toda uma avaliação pode ser feita entre os seres sensíveis ditos belos. Neste caso, dentre os seres sensíveis será eleito o mais belo aquele que se encontrar, na condição de cópia, mais próximo da ideia de beleza. E o critério de proximidade é a semelhança. Afinal, uma coisa dita mais bela só o é por ser mais semelhante com o belo em si. Sendo a semelhança interna à cópia isto deve indicar que graus possíveis de semelhanças podem ser medidos. Dentro desta perspectiva cópias de primeiro grau, de segundo e terceiro serão avaliadas, tendo na escala descendente aquilo que Platão irá chamar de cópia desqualificada. Assim, uma cópia é julgada desqualificada quando possui os critérios de beleza bem esmaecidos, mas sua desqualificação de fato advém por não haver ideia negativa que se oponha ao critério positivo de beleza. Ou seja, no mundo das ideias construído por Platão não há ideia de covardia, feiura, vício e simulação, visto que tais seres carecem da positividade dos seres reais e positivos. Configura-se aqui um projeto moral, onde a teoria da participação eletiva torna o platonismo uma doutrina do julgamento da existência pela evocação de um mundo verdade contemplado pelo filósofo. Na condição de juiz o filósofo detém o saber da ideia, sabe como alcançá-lo pela via do conhecimento dos objetos inteligíveis – situados em escala ascendentes como seres matemáticos, geométricos – busca a intuição da ideia para julgar as pretensões das cópias com os seus saberes inferiores construídos pela opinião.
Todavia, sem grandes tergiversações o que é preciso reter desta argumentação é que na famosa teoria da participação construída por Platão, o mundo sensível é pensado como uma realidade feita a imagem e semelhança da essência eterna; estando as coisas sensíveis colocadas como cópias de essências verdadeiras e eternas que devem ser julgadas. Dentro desta perspectiva, torna-se preciso argumentar que as essências eternas – positivas e moralmente perfeitas – oferecem o critério da boa imitação, estando as características negativas das cópias oriundas das distancias decorrentes da imitação da ideia, seja pela ação do tempo, seja pela desqualificação de certas cópias que mantém a distância algum grau de semelhança, mas da essência se distanciou. Além disso, a organização de tal sistema supõe a existência de simuladores que adotam o critério da imitação das imagens; estando tais sujeitos situados na esfera da simulação pois se colocam à margem da imitação correta por se subtraírem dos critérios ortodoxos ao seguirem o vetor de uma experiencia do fora situada no âmbito do puro devir.
Neste aspecto, podemos dizer que o projeto platônico além de ortodoxo é prioritariamente moral. Podemos, igualmente, assegurar que o platonismo é uma odisseia filosofia e a dialética platônica é um procedimento de rivalidades, onde nela os rivais se apresentam como pretendentes de um saber, estando Sócrates colocado como um mestre do saber que se imbui da função de calar a opinião para conduzir o rival ao conhecimento da verdade. De uma outra maneira, Platão sustenta a ideia de que existe um mundo do ser, isto é, um mundo verdade constituído por essências eternas que funcionem como modelos, para que uma avaliação dos seres sensíveis e das suas pretensões possa ser estabelecida.
Agora, tais seres sensíveis serão vistos como cópias, estando as suas características e as suas pretensões passiveis de uma avaliação feita por alguém que conhece a verdade para fazer um julgamento das pretensões de tais pretendentes. Ou seja, nesta dialética das rivalidades, torna-se possível julgar as cópias, submetê-las a uma hierarquia por intermédio de um julgamento moral das suas pretensões, procurando entender pelo fundamento da ideia se a pretensão é bem fundada ou não.
E assim Platão instaura um tribunal da razão e funda a ortodoxia moral do pensamento com os seguintes critérios: a identidade das essências eternas deve servir de modelo para que a avaliação moral das pretensões possam ser avaliadas; a semelhança dos pretendentes pode ser hierarquicamente definida pelo seu grau de semelhança e participação eletiva; a oposição entre os pretendentes pode agora ser estabelecida seguindo os critérios da participação e uma analogia do juízo deve ser aplicada para que o discernimento das boas cópias e das cópias desqualificadas possa ser feito. Assim, identidade, semelhança, oposição e analogia fundam o universo da representação que Aristóteles irá racionalizar para descrever o pensamento como uma imagem ortodoxa construída com o propósito de representar a realidade pela via da contemplação da verdade.
Todavia, existe em Platão uma diferença que tal pensador estabelece e que Deleuze retomando Nietzsche entendem quando retornam à sua obra com o propósito de pensar sua motivação e a sua reversão. Se a motivação de Platão consiste em descrever os critérios de uma boa representação pela eleição dos bons pretendentes, de uma outra maneira Platão procura descobrir nesta sua prova seletiva o inimigo que deve ser banido por não estar a altura do seu projeto moralizante. Poderíamos aqui pensar que tal inimigo deva ser julgado como uma cópia desqualificada? Cremos que não, pois uma cópia desqualificada ainda assim se submete a prova da seleção fundada pela ideia. Neste caso, qual seria sua real motivação? Encontrar no sensível uma diferença entre os bons e os maus pretendentes e os “falsos pretendentes” que são imagens não dotadas de semelhança.
Mas como poderíamos compreendê-los? Estariam eles localizados na Odisséia filosófica construída por certos diálogos de Platão? Cremos que sim, procurando encontrar os seus critérios no Livro X da República (Platão, 1950, vol. I), nos Diálogos dedicados aos sofistas e no Diálogo o Sofista[6]. Neles, encontramos Platão às voltas com imagens dessemelhantes, isto é, simulacros que produzem imagens cuja semelhança advém de uma produção estética ou verbal. Tais imagens se dizem de simuladores, isto é, de seres que vivem na temporalidade produzindo o novo pelo artificio da simulação. Convém lembrar, que eles assim se definem por agirem sem a contemplação de um modelo – pois não creem na existência de tais verdades eternas – produzindo o novo seja através de imagens falsas seja através de palavras dóceis e persuasivas que colocam os homens sob o domínio de um devir sensível. Em Platão, eles são chamados de simuladores e relacionados às figuras dos poetas, dos sofistas e dos pintores. Para nós, eles são tratados como pensadores da diferença que constroem as condições do novo em uma filosofia plasmada na imanência de um devir.
Ora, quando assim descobrimos a motivação do Platonismo já é possível qualificar tal filosofia como um projeto ortodoxo e moral do pensamento feito com o propósito de banir os elementos oriundos de um devir, de uma potência diabólica do fora, cuja variação deve ser banida da filosofia pela ortodoxia moral, porém reinvestida pelos pensadores que enaltecem o novo pela desvalorização do mundo inteligível. Em Nietzsche[7], as imagens falsas de Platão são, na realidade, os criadores que anunciam o novo pois apostam na criação e na conciliação com um devir que clama pela invenção de valores afirmativos e consonantes com a ordem do tempo. Em Deleuze, os criadores são pensadores nômades que apostam no acontecimento pela criação de conceitos concebidos como incorporais e colocados sobre um plano de imanência que a aurora da filosofia conheceu e precisa ser retomado. Além disso, são os criadores artistas que criam a novidade para afirmarem suas diferenças radicais e os seus direitos de entrarem em variação e no devir
Em ambos, valoriza-se a criação com conceitos nômades, propondo na contrapartida um enaltecimento daquilo que Platão baniu através da ortodoxia do seu mundo verdade. Através do enaltecimento do novo, tais pensadores são vistos como aqueles que retornam ao mundo antigo para valorizar aqueles que foram banidos da republica platônica, construído assim uma filosofia nômade e minoritária que já se encontrava na Grécia – na filosofia do acontecimento dos estoicos por exemplo , da matéria de Epicuro e da palavra consagrada à mudança dos Sofistas – para construírem uma filosofia desmedida plasmada na ideia de que criar é criticar a transcendência estatal , o mundo já estabelecido por ortodoxias morais; construindo conceitos que serão consagrados a um plano de imanência que ainda iremos retomar.
O fato é que a idade da contemplação inaugurada pelo ideal platônico da busca da verdade se difundiu ao longo do ocidente através da filosofia de Aristóteles, através das teologias medievais que retomaram ideias de Platão e Aristóteles – tais como a patrística platônica de Santo Agostinho e a Escolástica Aristotélica de São Tomás – e fizeram a filosofia desdobrar sua vocação transcendente através de elementos ortodoxos que atravessaram a idade média e entraram modificados na filosofia moderna. Com tais procedimentos a experiencia do fora de tais pensadores nômades foram tratadas como diferenças malditas definidas pelos defensores da ortodoxia moral; estando os seus defensores colocados na ordem daqueles que devem ser banidos do projeto ortodoxo e estatal do pensamento. Todavia, mostraremos como tais diferenças irão retornar através de pensamentos que afirmam as diferenças rugosas de uma vida que clama por um pensamento do fora imoral e intempestivo; pela criação de conceitos que enalteçam uma maneira não ortodoxa de viver. Entretanto, o empreendimento de tal afirmação supõe agora uma crítica do pensamento do fora endereçado a Crítica ortodoxa da reflexão.
- – Da Crítica ortodoxa da reflexão ao pensamento crítico do Fora
Embora Descartes seja conhecido como o fundador da filosofia moderna – já que com ele a contemplação dos antigos é substituída pela reflexão do sujeito do conhecimento que busca as condições da verdade no âmbito da sua racionalidade – aqui ele dispara uma nova ilusão que encontra em Kant sua construção crítica. Neste caso, escolhemos pensar as condições do pensamento pela crítica kantiana ao atribuirmos o ato de pensar a um sujeito constituinte e transcendental que encontra em Descartes o seu ponto de partida.
Assim, em Kant vemos a filosofia cair na ilusão de que a construção do conhecimento se faz por um sujeito constituinte e universal, que condiciona os dados do conhecimento, da moral, da estética e da religião por intermédio de representações a priori. Todavia, existe no racionalismo kantiano uma pretensão específica, cuja execução se fará no seio da razão crítica que procura estabelecer os limites do conhecimento, as condições de uma verdadeira moral e as condições racionais de juízos estéticos.
Ora, com a construção desta idade crítica vemos a filosofia entrar novamente na ilusão da ortodoxia dogmática, construindo seus postulados pela ideia de que existe um sujeito legislador que critica as pretensões ilegítimas da razão em proveito de suas pretensões universais. Neste caso, como a ilusão crítica da razão deva ser criticada pela filosofia nômade de um pensador do Fora; talvez a contribuição de Deleuze e Guattari permita a inserção deste novo momento pela via da crítica endereçada a concepção dogmática da filosofia crítica kantiana. Vejamos assim como tais pensadores irão situar o pensamento nesta nova ortodoxia estatal
“na filosofia dita moderna e no estado dito moderno ou racional, tudo gira em torno do legislador ou do sujeito. É preciso que o estado realize a distinção entre o legislador e o sujeito em condições formais tais que o pensamento, de seu lado, possa pensar sua identidade… Desde que a filosofia se atribuiu ao papel de fundamento, não parou de bendizer os poderes estabelecidos e decalcar sua doutrina das faculdades dos órgãos de poder do estado. O senso comum, a unidade de todas as faculdades como centro do Cogito é o Consenso do Estado levado ao absoluto. Essa foi notadamente a grande operação da crítica kantiana, retomada e desenvolvida pelo hegelianismo. Kant não parou de criticar os maus usos da razão para melhor retomar a sua função. Não deve surpreender que o filosofo tenha se tornado professor público ou funcionário de Estado. (Deleuze e Guattari, 1997, p. 45).”
Na realidade, Kant não só implementa as condições de uma imagem dogmática e moral condizente com a filosofia moderna, como também confirma a aliança entre a filosofia e o estado construindo uma filosofia compatível com a ideia de que um consenso universal deva ser a contribuição de uma filosofia racional. Na verdade, o tema da representação racional é retomado nesta abordagem reflexiva e crítica através da ideia de que pensar seja reconhecer a realidade por intermédio de representações a priori.
Na verdade, o racionalismo crítico de Kant consiste em afirmar interesses que sejam propriamente racionais, para aí identificar e pensar as condições de tais interesses e banir da razão os interesses nascidos de ilusões. Com tal discernimento, Kant constrói uma crítica da Razão procurando encontrar as condições do conhecimento científico, da moral, da religião e da arte dentro dos limites críticos de uma razão que procura se refletir. Organiza seu projeto crítico em torno de três questões: o que eu posso conhecer? (Kant, 1985) O que eu devo fazer?(Kant, 1949) E o que me é permitido esperar?(Kant,1965) Procurando explicitar e desenvolver tais questões por intermédio de três Críticas que partem de três fatos inquestionáveis. Assim, ele procura encontrar as condições reais do conhecimento, para evitar que admitamos coisa conhecíveis que extrapolem o campo da experiencia sensível; procura entender a condição da experiencia moral e qual a condição do juízo que faz nascer os produtos estéticos e religiosos na esfera da teologia.
Como o modelo crítico visa alcançar as condições reais da faculdade de conhecer, da faculdade de desejar e da faculdade de sentir; Kant adota o modelo que funda as condições representativas modernas pela adoção de um acordo entre faculdades que encontra no sujeito seu princípio condicionante. E o nome que adota para pensar este acordo segue à risca aquilo que a doxa já sustentava desde os antigos: o senso comum. Em Kant ele se explica pela exigência de uma faculdade legisladora, que obriga as demais faculdades a entrarem em acordo. Como tais faculdades trabalham em acordo determinadas por uma faculdade que legisla na esfera de algum interesse da razão; haverá segundo Kant diversos sensos comuns cuja especificação neste artigo cabe-nos explicitar. Todavia, desde já devemos dizer que não é nosso propósito desenvolver as sinuosidades do pensamento Kantiano; nem tampouco negligenciar as etapas de criação que esta filosofia, com certeza pode proporcionar. Aqui, a intenção passa a ser entender como a filosofia se ilude ao fazer do senso comum o seu guia; tornando filosóficas esta faculdade para sustentar doravante uma ortodoxia garantida pela existência de um sujeito transcendental que reflete representações a priori para construir um senso comum cognitivo, um senso comum moral e um senso comum estético.
Sendo assim, o senso comum como norma de identidade será em Kant pensado como a faculdade que me permite identificar um objeto na realidade, através de um acordo tornado possível entre as diversas faculdades do ser humano. Ao trabalhar as faculdades como origens e fontes de representações variáveis, Kant estabelece sua doutrina escolhendo quatro faculdades para pensar o senso comum nas esferas acima descritas: a sensibilidade, a imaginação, o entendimento e a razão. Postula para elas elementos empíricos e a priori, e instaura a era da reflexão crítica pelo advento de três sensos comuns tornados filosóficos e garantidos pela existência de um eu transcendental posto como princípio de unidade sintética; que embora regido pela identidade, garante a síntese que irá fundamentar o senso comum na esfera da representação moderna[8].
Sua execução já é conhecida: nela ele procura entender as condições de possibilidade do conhecimento – partindo da premissa que o entendimento possui representações a priori – os conceitos vistos como categorias universais – com os quais ele formula juízos sintéticos a priori; mostra como a razão é a faculdade constituidora de ideias – que são representações que extrapolam o campo da experiencia sensível – ; busca na imaginação as condições das formações das representações imagéticas, colocando o esquema da imaginação e a sua capacidade reflexiva como as condições de subordinação das imagens refletidas aos conceitos do entendimento e postula as condições da sensibilidade buscando no espaço e no tempo as condições formais das constituições dos fenômenos cuja materialidade será reduzida às impressões sensíveis.
Com isso, cada faculdade terá consigo suas condições a priori com as quais ela irá condicionar os objetos da experiencia sensível às exigências de um sujeito legislador. Na crítica da razão pura (Kant, 1985), a faculdade que legisla é o entendimento, procurando exercer sobre as demais uma exigência que as façam funcionar segundo o modelo da regognição da realidade. Assim, os dados da experiencia empírica nas formas a priori do espaço e do tempo são formados na sensibilidade , dando a imaginação a condição de visar o seu objeto da mesma maneira que a sensibilidade apreendeu; aquela, por sua vez, reproduz o objeto tal como ele foi apreendido na sensibilidade; para subordiná-lo ao entendimento que irá liga-lo às representações conceituais a priori – categorias- para construir juízos sintéticos a priori – os juízos universais e necessários do entendimento – garantindo assim o conhecimento dos fenômenos pela via do reconhecimento do objeto. Assim, é o mesmo objeto que vejo, imagino, conceituo, identifico e julgo; referindo-o ao campo fenomênico do espaço e do tempo pelo escrutínio criterioso de um senso comum especulativo descrito aqui como a faculdade que me permite atribuir identidade fixa às coisas e construir sobre elas as condições de uma legislação universal.
No âmbito da moral (Kant,1949), o senso comum se estabelece entre a razão e a sensibilidade, pois a faculdade que entra em jogo nesta esfera é a faculdade de desejar. Neste caso, cabe a razão legislar sobre as demais faculdades para construir as condições de uma faculdade moral implementada por uma lei a priori que obriga ao sujeito a obedecer ao seu imperativo para encontrar sua condição de autonomia no âmbito de uma obediência subjetiva que retire o sujeito do campo patológico da sensibilidade. Além disso, o livre acordo entre a imaginação e o entendimento funda um senso comum estético, estando neste acordo livre e indeterminado as condições de uma nova ortodoxia racional. E muito embora exista em Kant as condições de ruptura através de uma acordo discordante das faculdades – como é o caso especifico do sublime – nosso interesse agora é procurar fixar como o modelo da recognição vai instaurar os direitos de uma nova ortodoxia; onde nela pensar consiste agora em representar a realidade – através de representações a priori contidas no sujeito – para verter a realidade descrita pela cultura a um sujeito transcendental dotado da capacidade de estabelecer para ela o limite da representação racional; seja na esfera do conhecimento, da moral , da religião e da arte ( Kant, 1965).
Por outro lado, o bom senso como norma de partilha irá fixar a direção que as faculdades devam adotar, revendo as condições universais com as quais seja possível a recognição. Se o senso comum é a norma de identidade do ponto de vista do eu penso e do objeto que deve lhe corresponder; o bom senso é a norma de partilha do ponto de vista da contribuição de cada faculdade, no caso em que seja preciso estabelecer uma boa direção, isto é, um sentido que siga a orientação de uma situação menos diferenciada para uma mais diferenciada. Se o senso comum permite identificar, pelo bom senso torna-se possível partilhar e ditar a direção de acontecimentos que podem ocorrer por antecipação.
Em suma, bom senso e senso comum constituem as duas formas da doxa , mas quando extrapolam para a esfera do reconhecimento filosófico, acabam inspirando um modelo de pensamento já comprometido com uma ortodoxia.
Enfim, muito embora exista em Kant uma ideia crítica com várias inovações que sejam possíveis explorar em uma perspectiva não Kantiana; tal pensador não renunciou aos postulados implícitos do senso comum e do bom senso; não propôs um pensamento para além dos interesses racionais, nem tampouco ousou ir além da ideia de que pensar fosse um exercício natural de uma faculdade e que o pensamento possui uma natureza reta e natural, dotando o pensador de uma boa vontade e com a disposição de humilhar o seu amor próprio para seguir com boa vontade o imperativo da lei moral . Como bem observa Gilles Deleuze a respeito da Crítica Kantiana
“ a crítica consiste, no máximo , em dar estados civis ao pensamento considerado do ponto de vista da sua lei natural: o empreendimento de Kant multiplica os sensos comuns; faz tantos sensos comuns quantos são os interesses naturais do pensamento.Com efeito, se é verdade que o senso comum em geral implica sempre uma colaboração das faculdades sob uma forma do mesmo ou um modelo de recognição, acontece que uma faculdade ativa entre as outras é encarregada, segundo o caso, de fornecer esta fórmula ou este modelo a que todas as outras submetem sua contribuição. Assim, a imaginação, a razão, o entendimento colaboram no conhecimento e formam “um senso comum lógico”; mas é o entendimento que é, neste caso, a faculdade legisladora e que fornece o modelo especulativo sob o qual as duas outras são chamadas a colaborar. Para o modelo prático da recognição, ao contrário, é a razão que legifera no senso comum moral. Há ainda um terceiro modelo, em que as faculdades acedem a um livre acordo num senso comum propriamente estético… Em vez de subverter a forma do senso comum, Kant, portanto, somente a multiplicou ( Deleuze, 2006, p. 199)
Além disso, convém dizer que Kant não crítica o conhecimento, mas procura tão somente encontrar as suas condições; busca encontrar as condições da experiencia moral no âmbito de uma razão Pura Prática e encontra as condições estéticas em um senso comum prescrito na esfera da Crítica do Juízo. Ao buscar os interesses no seio de uma razão universal, ele estabelece sua Crítica no âmbito da razão para interrogar sobre os seus limites e suas pretensões, sem jamais criticar a racionalidade na sua radicalidade.
Pensando assim, torna-se plausível dizer que Kant constrói na modernidade uma nova ortodoxia moral de um pensamento, cujas pretensões facultativas vai buscar na lei moral sua pretensão mais elevada. Com a consecução de tal projeto, ele cria a ilusão da reflexão ao dizer que a função da filosofia é preparar o ser humano para a experiência moral da liberdade alcançada na lei moral da razão prática.
Todavia, a experiência do Fora ao combater esta nova ortodoxia vai propor uma crítica radical à razão em proveito de um pensamento que pense contra o racionalismo. Neste caso, na experiência do Fora – cuja crítica se estabelece por intermédio de um combate – pensar decorre de experimentos irracionais que fazem valer os direitos de um pensamento irracional, criador, que faz apelo a um pensador dotado de uma má vontade indispensável para criticar os bens da racionalidade vigente em proveito da criação de novos conceitos. Aqui, encontramos com Deleuze a filosofia de Nietzsche cuja crítica endereçada à crítica Kantiana leva o pensamento à esfera da criação de valores afirmativos e interpretações da vida que sejam condizentes com um modo de vida combativo, guerreiro e afirmativo. Ao dizer que pensar é criar valores e alcançar as condições de interpretações ativas indispensáveis para a afirmação de um modo de vida nômade; Nietzsche critica a ortodoxia ao colocar em destaque a vontade moral que a anima e a racionalidade que a constrói ao dizer que nesta esfera o pensador acaba se colocando como um funcionário do estado, ou melhor, como um funcionário de uma filosofia a serviço dos valores preconizados e garantidos pelo estado[9].
Todavia, tal filosofia dos valores ganha aqui uma configuração deleuziana, quando este mostra como os conceitos de sentido e valor servem a avaliação conceitual que situa Nietzsche como um criador de conceitos nômades implicado na tarefa de fazer da filosofia uma máquina de guerra que combate os valores estabelecidos para criar a terra da filosofia habitada pelo movimento infinito do devir e tratar o pensamento nômade como um ato intempestivo de pensar, que advém por intermédio de um modo de vida ativo que supõe um pensamento afirmativo. Dentro desta vetorização, Nietzsche é situado como um pensador da diferença, isto é, um pensador artista que busca as condições fisiológicas da arte na embriaguez da vontade e pensa a obra de arte como a mais alta manifestação da vida, ou de uma vontade que se manifesta criando o falso pela potência de uma vida em devir. Assim, a arte comparece como a verdade de uma vida livre que cria imagens falsas para combater a ilusão do mundo verdadeiro.
De uma outra maneira, Nietzsche é visto como um fisiólogo guerreiro que trabalha o pensamento para criar sentido ativos e valores afirmativos; com uma nova forma de pensar cujo ato supõe um adestramento feito por forças ativas que irão construir um pensamento afirmativo e criador. Agora, convém esclarecer que o pensador da diferença concebe a filosofia como um combate contra esta imagem dogmática em proveito de uma filosofia do futuro, isto é, de um devir construído através de forças ativas que façam o pensamento funcionar para além da esfera dos valores estabelecidos. Como o ato de pensar funciona pelo advento de um combate contra a opinião, talvez seja legitimo perguntar: encontramos em Nietzsche vestígios de tal combate? Sim, ao entendermos uma vontade de destruição posta como a condição da criação do novo pela liquidação dos valores estabelecidos. No Zaratustra tal combate é preconizado pelo personagem animal o leão, mas levado a termo pelo próprio filósofo quando diz que a tarefa da filosofia é destruir para transvalorar, estando tal atividade a cargo de um pensamento que inventa o novo pela criação de valores inatuais e afirmativos com o propósito de valorizar uma vida afirmativa; criando os sentidos para tal vivente ao interpretar a vida pelo viés das forças ativas de um modo de vida afirmativo e ativo.
Além disso, Nietzsche como um pensador da vida, isto é, de uma vontade de potência afirmativa constrói os prolegômenos de um pensamento do fora ao dizer que pensar é, nesta instância, não mais buscar o verdadeiro, a moral e a religião, mas criar as condições da mudança por intermédio de valores e sentidos que enalteçam um modo de vida plasmado no tempo e no devir[10].
Ora, ao situarmos Nietzsche no projeto noológico de Deleuze e Guattari, não só mostramos a afinidade existente entre este pensador e os dois pensadores aqui trabalhados, como colocamos em evidência o pensamento nômade destes últimos e a vocação, igualmente inconteste, de uma filosofia plasmada pela ambição inicial de construir um conceito puro de uma diferença, cuja produção seja pensada pela sua capacidade de entrar em devir. Assim, a diferença afirmada pela experiencia do fora, retorna na era moderna antecipando a filosofia do futuro, ao reverter aquilo que Platão supôs banir do seu Projeto contemplativo da República.
Neste eterno retorno da diferença, só o grau superior retorna pela invenção de um pensamento afirmativo e conciliado com uma vida ativa e plasmada na ordem do devir. Resta entender agora se não há uma última ilusão a ser combatida pelo pensamento intempestivo da diferença que irá consagrar a filosofia nômade de Deleuze e Guattari à criação de conceitos para além da comunicação.
- – A ilusão da comunicação e o combate contra a opinião
A ideia de uma opinião originária, isto é, uma urdoxa assinalada como a função do vivido, introduz na filosofia a terceira ilusão na era contemporânea. Nela, a condição da filosofia deve partir de um fluxo de vivencias que em Husserl se reporta a instancia de um vivido que tem que ser ultrapassado pela intencionalidade da consciência. Desta maneira, a consciência reaparece na esteira das filosofias do Cogito como consciência intencional, trazendo de Kant sua inspiração transcendental e realizando, para além de Descartes, sua abertura para um mundo. Neste caso, a intencionalidade traz a novidade de uma consciência intencional – pelo retorno às coisas nelas mesmas – para se tornar a consciência de um puro ato que visa apreender o fenômeno tal como emerge no seu campo perceptivo. É aqui que a terceira idade do Cogito se configura através de uma consciência compreendida pela intenção de um ato – noesis – cujo conteúdo será preenchido pela intenção deste ato que visa uma matéria – hylé – situada na esfera da realidade[11]. Da definição Husserliana de que toda consciência é consciência de alguma coisa, torna-se preciso que ela relacione algo na vivência originária a alguma coisa situada na esfera da objetividade pelo ato intencional, constituindo assim um mundo dotado de sentido e apto a ser significado pelos atributos que a consciência irá conferir a matéria.
Neste caso, se por lado Husserl descobre o sentido na relação da consciência que visa a matéria; por outro, ele confere à intenção da consciência um primado subordinando o sentido assim descoberto à intencionalidade de uma consciência transcendental. Todavia, convém perguntar: o que Husserl descobre na ocasião em que visa a constituição do sentido? O noema como um atributo que emerge da relação da consciência com a matéria. Se o noema aparece na relação que a consciência intencional estabelece com a matéria; enquanto ser de relação ele é da ordem de um puro sentido, isto é, de um acontecimento incorporal. Se o mundo fenomênico enquanto tal emerge da intenção da consciência que ilumina a matéria ao dar a ela uma objetividade, cabe doravante perguntar se o sentido enquanto atributo noemático é real em si mesmo ou depende da intenção da consciência para que ele possa emergir? Em Husserl, quando o primado é dado a consciência, ela se torna de direito a responsável pela descrição do mundo através de predicações que se agregam em torno do fenômeno, caracterizando assim a terceira idade – a fenomenológica – da sua ilusão transcendental: a intencionalidade. Nela, como veremos, um idealismo intersubjetivo irá verter a filosofia no campo de uma comunicação transcendental; mas fará com que a representação encontre a sua condição intencional. Ou seja, da contemplação do um idealismo objetivo à reflexão de um idealismo crítico, vemos agora surgir um idealismo intencional, que embora situe o homem na sua relação com o mundo, dota-o a partir da consciência da sua capacidade de transcender as suas vivências pela saída de si através de um ato transcendental que situa o mundo na instância transcendente de algo situado fora da consciência. Como a consciência capta o sentido na relação que esta estabelece com a matéria, estando ela dotada do poder da intencionalidade é preciso que ele seja posto na condição de ser ultrapassado em proveito de um mundo objetivo assegurado para além do fluxo das vivências intencionais. Aqui, a fenomenologia que prometia ser a ciência dos fenômenos considerados como acontecimentos, acaba se configurando como mais um avatar de uma nova ilusão que atravessou a filosofia: a ilusão da intencionalidade, que ao assegurar a consciência o primado de doação de sentido ao mundo, preserva o universo dogmático da representação. situando-o agora entre uma urdoxa – opinião originária – e uma intencionalidade de uma consciência que visa o mundo na sua especificidade, mas busca uma universalidade pela via de uma comunicação intersubjetiva.
Ora, como não perceber aí a ideia de Deleuze e Guattari que dizem que com a fenomenologia a filosofia ainda se deixa prender à ilusão de uma consciência intencional, que cria as condições da representação de um fenômeno assegurando seu procedimento pela objetividade alcançada através de um cogito voltado para a comunicação? Todavia, talvez exista aqui uma certa rapidez que precisa ser contornada através de uma compreensão da ideia fenomenológica de comunicação. Trabalhemos tal intuito, configurando a fenomenologia na imanência tratada pelas investidas de Husserl no plano do vivido. Talvez aqui uma compreensão da ilusão buscada se torne mais evidente.
Nesta nova inflexão, o equívoco da fenomenologia consistiu em ter feito da imanência um fluxo inerente a um conjunto de vivencias, ao torná-la imanência a um sujeito dotado da capacidade de transcender. Assim, ela tente a se confundir com um fluxo originário de acontecimentos vividos situados na esfera de uma opinião originaria. Como o mundo é visado na transcendência das vivencias é quase certo que algo nela tenha que se referir a um objeto externo através da operação intencional e transcendente da consciência. Com tal configuração, a fenomenologia retoma do idealismo um senso comum lógico, estético e moral, configurando-o agora como um novo momento de uma ortodoxia moral que constrói seu sistema de pensamento através de uma proto-opinião . Como dizem Deleuze e Guattari, a fenomenologia recomeça uma ortodoxia moral e estética buscando na opinião originaria sua condição de possibilidade…
“pois ela também parte à procura das opiniões originárias que nos ligam ao mundo como a nossa pátria. E ela precisa do belo e do bem, para que elas não se confundam com opinião empírica variável, e que a percepção e a afecção atinjam o seu valor de verdade: trata-se, desta vez, do belo na arte e da constituição da humanidade na história… O vivido não faz do conceito outra coisa senão uma opinião empírica como um tipo psíquico e sociológico. É preciso pois que a imanência do vivido a um sujeito transcendental faça da opinião uma proto-opinião na constituição da qual entram a arte e a cultura, e que se exprime como ato de transcendência deste sujeito no vivido (comunicação), de modo a formar uma comunidade de amigos. Mas o sujeito transcendental de Husserl não esconde o homem europeu que ele busca de direito europeizar …Não somos então reconduzidos à simples opinião do capitalista médio, o grande maior, o Ulisses moderno cujas percepções são clichês, e cujas afecções são marcas, num mundo de comunicação tornado marketing, do qual mesmo Cézane ou Van Gogh não podiam escapar? … a fenomenologia queria renovar nossos conceitos; dando-nos percepções e afecções que nos fariam nascer no mundo… Mas não se luta contra os clichês perceptivos e afetivos se não se luta também contra a máquina que os produz … (Deleuze e Guattari, 2004 , p. 194) “.
Ao partir da opinião a fenomenologia se entrega ao vivido e constrói os universais da comunicação. Nesta intersubjetividade transcendental, a imagem ortodoxa é retomada e revalidada no cogito da comunicação, pela urgência de partilha do sentido e sua inscrição nas sociedades dos amigos que caracterizam a ilusão moderna. Ora, com as observações de Deleuze e Guattari, assistimos aqui a última ilusão da ortodoxia e a necessidade urgente da saída da intencionalidade. Pelo combate contra a ortodoxia moral que a experiência do fora oferece se torna necessário captar o sentido pela experimentação de um pensamento sem o recurso de uma consciência intencional. Neste caso, pensar na experiência do fora supõe uma ruptura radical com a comunicação, deixando margem para uma nova aventura do pensamento na qual iremos nos debruçar agora.
- – A Experiencia do Fora de um Pensamento Nômade
Segundo Deleuze e Guattari, na experiência do fora o pensamento só funciona quando for ativado por forças que lhes sejam afins, sendo estas oriundas de experimentações decorrentes de encontros sempre contingentes. Sendo assim, nesta inflexão o pensamento só funciona quando for violentado, isto é, quando for forçado pela ocasião de um encontro que o faz sair da representação da realidade. Como tal encontro supõe uma desestabilização do senso comum, fazendo o pensador sair da instância do reconhecimento da realidade, torna-se legitimo interrogar pela sua natureza, formulando a questão que inicia o item desse artigo: o que força o pensamento a pensar? Uma violência intensiva decorrente do objeto de um encontro que só pode ser apreendido pela sensibilidade como algo que só pode ser sentido. Aqui, a experiência do fora supõe uma experimentação de um pensador nômade, cuja imobilidade inventa as condições experimentais da criação, com experimentos quase sempre decorrentes de maneiras de viver anômalas situadas na esfera de uma espreita construída na ruptura com os ideais da representação.
Todavia, como procuramos aqui as condições do pensamento de um modo de vida nômade, talvez o nomadismo experimental desta abordagem faça supor uma política noológica cuja dramatização deva ser feita por etapas. Neste caso, a experiência deste nomadismo filosófico pode ser feita em três etapas fundamentais: na primeira , torna-se preciso procurar as condições do pensamento pela contingencia de um encontro em um modo de vida errático dotado da capacidade de se deixar afetar pelos acasos decorrentes das experimentações; em seguida, torna-se preciso associar tal contingencia com o modo de vida que proporciona a emergência do ato de pensar e , finalmente, assinalar tal modo de pensar na esfera de uma noologia consagrada a um modo de vida nômade de uma máquina de Guerra.
Se na primeira o ato de pensar advém de um encontro contingente que força o pensamento a criar; em tal ocasião é preciso dizer que o que força o pensamento a pensar é o objeto de um encontro resultante de uma força que intensifica a sensibilidade forçando-a sentir. Tal objeto é posto de tal maneira que ele só pode ser sentido, pois sendo o ser do sensível resultante de um encontro sempre contingente ele surge como efeito de uma força que atua sobre a sensibilidade, forçando-a a apreender o que só pode ser sentido. Quando a sensibilidade for assim violentada ela irá transmitir a violência intensiva decorrente do encontro para a imaginação, forçando a esta a imaginar aquilo que só pode ser imaginado. Da mesma maneira, a imaginação irá forçar a memória a rememorar o que só pode ser apreendido como um ser do passado e, finalmente, tal intensidade irá forçar o pensamento a criar na experiência limite da experimentação.
Pelo impacto do objeto do encontro as faculdades saem dos eixos e se tornam capazes de exercícios criadores. De uma outra maneira, elas produzem as condições com as quais o pensamento será forçado a criar pala saída do senso comum e pelo combate criterioso contra uma erosão mental. Ora, nesta primeira formulação encontramos Deleuze trabalhando tal pensamento do fora em Nietzsche e a Filosofia (Deleuze, 1976) e em Diferença e Repetição( Deleuze, 2006) ; ao mostrar as condições de um pensamento intempestivo que só funciona quando o ato de pensar for criado pela força de um objeto capaz de produzir um acordo discordante das nossas faculdades ao criar as condições da invenção. Cumpre notar que tal objeto do encontro resulta da ação de uma força sobre a sensibilidade, forçando-a a sentir a violência sofrida e a transmitir tal violência para as demais faculdades. Pelo desregramento subjetivo das faculdades um acordo emerge na discordância, forçando o pensamento a criar a partir de um impoder resultante do seu confronto inevitável com as forças de um vazio.
Nesta inflexão, pensar é criar conceitos por intermédio de problematizações surgidas quando o pensamento for confrontado com o seu vazio, a sua erosão através da violência oriunda da experimentação. Cumpre dizer, que em tais formulações iniciais Deleuze advoga os princípios de um pensamento do fora, buscando em Nietzsche e em Artaud as condições desta experiência limite com duas teses centrais: na primeira ele diz que pensar depende de um adestramento ocasionado por forças que ativem o pensamento, forçando-o a criar; na segunda – trabalhada em momentos descritos em Diferença e Repetição – ele diz que o que força o pensamento a pensar o retira da esfera da representação ao introduzir uma cesura no cerne do pensamento por intermédio de uma violência intensiva que o conduza a um impoder.
Assim, o impoder de pensar é o que força a pensar, quando o pensamento for ativado e levado a crivar a erosão que o habita. Em Deleuze, tal impoder suscita a potência que resulta da saída do pensamento do âmbito da representação. Sendo a erosão o vazio indispensável para que o pensamento ganhe aqui a configuração de um combate. Em Nietzsche, tal combate faz este vazio emergir daquilo que o pensamento deve criar; em Artaud é a experiencia do vazio que irá proporcionar a criação do novo pelo combate travado contra a erosão. Ou seja, quando pensar for sinônimo de criar, pensar é problematizar o novo pelo traçado de um duplo combate: um combate contra a opinião oriundo da esfera da experimentação e um combate contra a erosão que habita o pensamento, exigindo dele um crivo para que algum problema possa resultar na criação de algum conceito.
Todavia, convém imediatamente perguntar: é possível positivar tal erosão? Cremos que sim e tal detalhamento será trabalhado em “O que é a Filosofia?” ( Deleuze & Guattari, 2004) que Deleuze escreve em colaboração com Felix Guattari. Neste livro, os autores vão apresentar tal erosão como um caos mental que necessita de um crivo para que a criação conceitual se torne possível. Nesta esfera, o caos deixa de ser apresentado como uma desordem, para se configurar como um virtual, isto é, uma reserva de determinações evanescentes sem consistência à espera do crivo de um pensamento que faça sair dali alguma ideia, isto é, algum problema a ser resolvido na criação de um conceito.
Nesta nova ocasião, pensar é combater a opinião – isto é o bom senso e o senso comum – para criar o vazio a ser combatido na esfera da criação. Se entre os dois existe o risco da erosão – configurada aqui no impoder provisório no qual irá cair o pensamento- a criação constrói o crivo através do qual o pensamento irá criar alguma coisa nova, pelo combate travado contra o caos. Nesta dupla experimentação, cremos nós, o pensamento é visto sob o prisma de um duplo combate cuja atividade dá ensejo a uma forma de pensar errática construída por um modo de vida nômade e guerreiro.
Entretanto, ao trazermos tal configuração em O Que é a Filosofia? Não podemos nos contentar com esta formulação, pois de fato a criação conceitual pode também ser encontrada em pensadores que constroem conceitos universais para legitimar modos de vida já estabelecidos. Sendo assim, se uma criação nômade justifica um modo de vida errático e em mudança, ele deve conter a especificidade de tal existência pela escolha entrevista no seu gesto criador. Assim, um pensamento nômade é, no nosso entendimento, uma forma de pensar que cria conceitos para valorizar um modo de vida em mudança, isto é, em devir; que denuncia os universais da razão, a ortodoxia moral de uma filosofia atravessada por interesses estatais e o sedentarismo das imagens ortodoxas que criam a convicção de um mundo fictício situado em uma transcendência religiosa e estatal.
Neste aspecto, o pensamento nômade se diz de um modo de vida que combate a moral, o estado e a religião, para fazer da filosofia uma linha de fuga que situe o pensador na esfera do devir. Enfim, trata-se de um pensamento consagrado às forças do fora ou aquilo que ainda não foi capturado pelas forças do estado.
Convém dizer que a experiência do fora condiciona um modo de vida nômade uma vez que ele se diz de um pensamento que afirma uma vida ativa e guerreira. Aqui, Deleuze e Guattari- nômades imóveis nesta política do pensamento- evocam Lucrécio no mundo antigo, a anomalia de Spinoza quando critica a religião e a transcendência, o nomadismo explicito de Nietzsche quando este se insurge contra a imagem ortodoxa e promove a reversão já contida na ambiguidade platônica. Além disso, neste relato nômade do pensamento, Artaud é evocado na célebre experiencia da criação pelo combate que ele estabelece contra o caos ao fugir da polícia e das forças da representação.
Ou seja, nas experimentações construídas por Deleuze e Guattari, a criação do pensamento, por mais difícil que ela seja, supõe um combate que um pensador cria ao ser acometido pelo impoder de pensar. Neste aspecto, quando Artaud escreve a Jacques Rivière (Artaud, 1980) as famosas cartas a vidente, para relatar as experiências das criações de certos poemas imperfeitos; ele se encontra renovando a concepção de pensar ao dizer que cria combatendo um impoder que se apropria do pensamento quando este for confrontado com o seu vazio pelas forças oriundas do fora. Neste aspecto, o que Artaud revela é um desmoronamento central no pensamento, quando este for confrontado com a experiência da criação. Como bem assinalam Deleuze e Guattari
trata-se do texto de Artaud em suas cartas a Jacques Riviére, explicando que o pensamento se exerce a partir de um desmoronamento central , que só pode viver da sua impossibilidade de criar forma, apenas pondo em relevo os traços de expressão num material, desenvolvendo-se perifericamente, num puro meio de exterioridade, em função de singularidades não universalizáveis, de circunstancias não interiorizáveis… ( Deleuze e Guattari, 1997 , p. 48)”
Ora, o que Artaud revela a Riviere é a existência de um pensamento que se exerce a partir de um acontecimento que o desmorona, ao colocá-lo na instância de um fora que dilui a forma da representação. Nele, pensar se faz a partir da violência de um acontecimento que ocasiona uma cesura, isto é, uma erosão que o force a criar para além dos universais contidos na razão. Curiosamente, Artaud revela por intermédio deste impoder, os traços de um pensamento do fora contido na criação dos poemas enviados pelas cartas. Todavia, quando Deleuze e Guattari assinalam tal experiência implicando Artaud na noologia de um pensamento nômade, o que eles pretendem com tal empreendimento é assinalar a existência de um Páthos do pensamento, para além do mito e do logos, em uma situação limite que coloque o pensador na situação paradoxal de criar a partir da erosão.
Finalmente, a experiencia do fora se diz de pensamento nômade construído por filosofias nômades encontráveis em diversos momentos da história do pensamento. Nela, o pensamento decorre de uma experimentação feita por pensadores que enaltecem o lado de fora ao combater os ideais de um pensamento ortodoxo, as ideias de um estado articulado com uma imagem dogmática e moral da filosofia; para fazer do pensamento uma máquina de guerra capaz de pensar o devir e valorizar um modo de vida guerreiro, nômade e inatual; valorizando, igualmente, uma vida que compreende o processo como a condição de uma saúde. De uma outra maneira, a experiência do fora se diz de pensadores que enaltecem a vida ao combater as doenças dos viventes pelo diagnóstico das suas causas morais e religiosas coniventes com um modo de vida cordato e submisso.
Dentro desta vetorização, a experiência do fora configura uma forma de pensar não ortodoxa, que produz para a vida suas condições de saúde ao combater as doenças morais implementadas por circunstâncias opressoras, mas justificadas por um pensamento ortodoxo e moral. Ou seja, a experiência do fora além de nômade se vincula a uma forma de vida que valoriza a vida ao destruir as superstições construídas pela ortodoxia e sustentada na ignorância que reina no pensamento da opinião.
Ao dizermos neste pequeno ensaio que tal experiência testemunha pela existência de um pensamento do fora, talvez o desafio final do trabalho consista em configurá-lo em um modo de existência minoritário, cuja descrição nos conduza a uma filosofia menor. Todavia, convém perguntar: um modo de vida nômade é inseparável de uma filosofia minoritária? Cremos que sim e este será o desafio final da nossa argumentação. Passemos então a ela.
- – A Experiencia do Fora de uma Filosofia minoritária.
Comecemos pela seguinte questão: se o pensamento do fora é um procedimento de uma experimentação minoritária, sua filosofia pode merecer uma adjetivação similar ao seu procedimento? Talvez, mas antes é preciso encontrar as condições minoritárias de tal filosofia; afinal é na esfera do conceito que uma valorização filosófica pode ganhar alguma pertinência. Sendo assim, maior, menor, devir e filosofia minoritária são noções que vão exigir de nós uma explicação conceitual, fora das significações construídas pela imagem ortodoxa do pensamento. Comecemos pelo termo maior. Em Deleuze e Guattari tal termo designa um modelo que se diz de uma raça supostamente maior, pois supõe um padrão de superioridade construído através de uma matriz cujo conteúdo inclui atributos majoritários. Assim, a noção de homem ao ser referida a um modelo majoritário deve conter os atributos do dominador pertinentes a matriz eleita como um metro padrão. Dentro desta perspectiva, o homem é concebido como um modelo padronizado, cuja definição supõe os predicados que outorguem os direitos de um dominador. Assim, como dizem Deleuze e Guattari, os direitos de um homem universal são inseparáveis dos predicados que um dominador deve conter para ser considerado superior. Nesta perspectiva, o conceito de homem contém os predicados de macho, dominador, bom falante, heterossexual, branco e ser superior.
Ao pensarmos assim, o que o conceito legitima são as condições de possibilidade de uma maioria, que se impõe pelo metro padrão com o propósito de impor aos demais as condições de domínio por intermédio de um jogo de dominação. Neste aspecto, torna-se bem provável que uma determinada minoria estatística possa criar um modelo majoritário para legitimar uma superioridade que o autorize a dominar e a exercer sobre as minorias um jogo de subjugação.
Ora, quando pensamos segundo esta lógica maioria é um metro padrão vazio cujo conteúdo se encontra preenchido por certos homens que se utilizam do modelo com o propósito de legitimar um jogo de poder. Se na imagem ortodoxa reina a ideia de que a função da filosofia seja encontrar as condições epistemológicas de um pensamento majoritário, isto pode significar que a ambição do filósofo tenha aqui se coadunado com a pretensão do estado, ao fundar um governo para uma maioria com atributos e predicados inseparáveis de uma ambição estatal de domínio.
De uma outra maneira, Deleuze e Guattari definem a minoria como a condição daqueles que existem sem um modelo. Ou seja, a minoria não tem modelo, mesmo que estatisticamente os indivíduos compreendidos por ela sejam em quantidade maior. Por exemplo, há mais asiáticos, mulheres, negros e pardos do que homens brancos, civilizados e superiores. Todavia, se a condição não é estatística, de onde ela provém? De um jogo de colonização que a filosofia cria quando o seu representante constrói o modelo universal de um homem com o qual ela irá prescrever os direitos universais de uma representação imbuída por pretensões de domínio.
Sendo assim, uma filosofia revolucionária e não ortodoxa deve ser construída na vetorização de um pensamento que evoca um povo minoritário, uma raça bastarda, uma população negra irremediavelmente menor. Quando a filosofia faz assim sua posição ela encontra as condições nômades de um pensamento menor, estando o filósofo situado diante de minorias, para fazer uma filosofia não garantida pelo metro padrão. Entretanto, cremos que tal distinção não seja suficiente para evitar o contrassenso de uma representação construída por uma minoria que quer sua vindita pela construção de um novo metro padrão. Afinal, existe sempre o risco de uma ortodoxia aí se fazer, estando a representação assegurada pelos direitos de uma minoria movida pela ambição de domínio.
Para evitar tal procedimento, Deleuze e Guattari propuseram as condições de uma filosofia menor apostando no devir minoritário tanto da criação filosófica quanto do povo que ela evoca. De um lado, eles dizem que criar é entrar em um devir minoritário, de outro eles dizem que a filosofia clama por um povo menor para dar a ele a condição do devir.[12]
Ora, dentro de uma perspectiva política e noológica é possível situar Deleuze e Guattari como dois pensadores nômades que traçam o devir de uma filosofia menor. Como pensadores do fora eles situam a filosofia na perspectiva de um procedimento minoritário ao criticarem a representação em proveito de uma experimentação nômade. Mas como pensadores de uma filosofia minoritária, eles situam o ato de criação da filosofia como um empreendimento produtor de diferenças, de simulações artísticas, fazendo com que tal criação seja de fato compatível com aquilo que a filosofia da diferença certa vez alcançou pela mais alta potência do pensamento.
Pensando dentro desta construção talvez seja plausível dizer que o devir minoritário da criação venha na esteira de conceitos criados na imanência radical que tal estilo filosófico defende. Sendo assim, quando tais pensadores evocam Nietzsche, procurando reverter o platonismo na aurora de seu pensamento, criticando em momentos diversos as faces da imagem ortodoxa do pensamento, denunciando a transcendência e as mistificações de uma ciência régia e maior; para apresentarem as rupturas que um pensamento nômade pode inventar; eles se encontrem na verdade construindo os procedimentos de uma filosofia minoritária que daqui em diante receberá a nomeação de Filosofia Menor. Sendo assim, faremos a conexão do pensamento nômade com a filosofia menor para concluirmos nossa argumentação.
Conclusão: pensamento nômade, filosofia menor
É possível encontrar nas análises que Deleuze e Guattari empreenderam sobre a literatura menor de Kafka ( Deleuze & Guattari, 1977); sobre a ciência menor desenvolvida em um texto que trata do nascimento da física em um texto de Lucrécio ( Deleuze & Guattari, 2007) e sobre o uso menor de língua apta a receber um tratamento político, procedimentos indispensáveis para a construção de uma filosofia menor? Ao entendermos que as atribuições que caracterizam tais construções surgiram das análises que tais autores fizeram – juntos ou separados – daquilo que eles nomearam de formas diferenciadas como procedimentos minoritários, podemos retirar de tais análises o fundamental da política nômade de uma filosofia menor. Todavia, uma analogia pertinente não deve fazer com que dispensemos um trabalho conceitual, pois estamos agora no âmbito de uma filosofia que constrói seus conceitos e traça a sua imanência radical fora das referências construídas pelo pensamento estatal e asseguradas por um pensamento dogmático.
Neste caso, devemos imediatamente situar a criação conceitual dos dois autores como motivada em estabelecer nos territórios dos conceitos toda uma política traçada no entorno de conceitos nômades confrontados com conceitos que expressam posições estatais. Assim, por exemplo, o conceito do Cogito demarca uma ilusão que funda a representação reflexiva, assim como o conceito de ideia constrói no plano da filosofia antiga a ilusão da contemplação. Além disso, tais conceitos são criados segundo a lógica da representação; estando muito embora imbuídos de inspirações filosóficas que levam Deleuze e Guattari a pensarem em tais filosofias a criação de conceitos acrescidos de tais ilusões. Um leitor desavisado conclui daí que Deleuze e Guattari falsificam a noção de conceito que a imagem dogmática constrói – pois nela os conceitos são postos como representações mentais – , mas na realidade o que eles fazem consiste em mostrar como a imagem ortodoxa cria a condição da representação com conceitos que representam moralmente o que a realidade deve ser. Nisso, sua eficácia é assegurada pois o conceito é ofertado através de um ato de fala da linguagem que cria a condição incorporal daquele em que ele é atribuído. Dentro desta perspectiva, uma política conceitual se torna pertinente tanto no âmbito de um sistema filosófico, quanto na esfera de uma política traçada no âmbito da própria filosofia.
Ao pensarmos, por exemplo, ´que um combate nômade é traçado na esfera da filosofia de Deleuze e Guattari, percebemos claramente o tempo em que eles gastam em pensar as condições da representação estatal, ao mostrarem por exemplo, os conceitos construídos pela máquina estatal do plano de organização, tais como o conceito de organismo , sujeito e significância; para mostrarem , na contrapartida o conceito de devir , de um corpo intenso e procedimentos não significantes plasmados sobre um plano de consistência ou imanência. Da mesma maneira, a representação é criticada no cinema de imagem ação, para que imagens tempo sejam justificadas em cinemas menores construídos para além da representação realista. Na ciência menor, uma ciência de sólidos é confrontada com uma ciência que toma como modelo o fluxo de uma matéria plasmada sobre o próprio devir e na literatura menor , a desterritorialização de uma língua maior para que uma língua se torne apta a receber um tratamento minoritário, intensivo , incorporal e associada a uma tendencia a tratar a literatura como um empreendimento político que associa o caso individual a uma situação política através de tensores que fazem a língua a receber um tratamento coletivo, ganha o estatuto de criação filosófica no empreendimento notável feito por Deleuze e Guattari. Assim, com tais procedimentos uma política conceitual e uma língua inatual de conceitos ganha uma configuração nesta filosofia nômade, ao mesmo tempo em que a imagem do pensamento estatal será descrita para ser combatida.
Da mesma maneira, quando eles advogam o traçado de uma imanência absoluta, criticam a existência de imanências relativas que fazem da imanência uma propriedade de um sujeito, um campo de imanência relacionado a uma ideia ou um campo de imanência traído pela transcendência de um sujeito.
Assim, na traição da imanência absoluta uma transcendência irá se erigir tornando possível a emergência de um plano de organização, cuja representação será o lema da sua configuração. Que devemos pensar de tais procedimentos? Existe uma política do pensamento que advoga o traçado de uma imanência absoluta, isto é, de uma imanência traçada pelo movimento infinito de uma matéria percorrida por um pensamento auto imanente. Com tais considerações, a imanência se diz de uma vida impessoal que os pensadores irão traçar quando percorrem o traçado de um plano que faz coexistir a potência de pensar com a potência de existir e de agir em dois atributos – o pensamento e a extensão – segundo uma inspiração oriunda de Spinoza.
Finalmente, neste traçado da imanência estabelecido pelo combate contra a imagem ortodoxa do plano de organização, a filosofia se liberta da representação e busca pelo procedimento de minoração a evocação de um povo que falta, uma raça bastarda, irremediavelmente menor; tornando-se nesta nossa jornada uma filosofia menor de um pensamento nômade.
Como aqui precisamos arrematar o que foi dito ao longo da nossa argumentação, torna-se preciso acrescentar que tal pensamento conjuga as potências da arte e da ciência menor no entorno de um pensamento da diferença, cuja produção da diferença em si mesma faz garantir sua radicalidade no plano de imanência da criação. Se, Deleuze começa sua criação conceitual ao propor o conceito de diferença em si, ao propor que o pensamento da diferença suponha uma reversão do platonismo pelo enaltecimento de uma diferença produzida e plasmada na ordem do devir; agora , nesta retomada final, podemos dizer que a filosofia nômade da imanência é uma forma de pensar, que pensa a diferença para além da representação, para fazer da sua afirmação o lema de uma maneira de filosofar que cria o novo para pensar a vida se diferenciando em si mesma . Ou seja, na criação o pensador se difere ao criar pelo pensamento pensadores que irão diferenciá-lo através de nomes dramatizados por personagens conceituais. Como em tal configuração o personagem conceitual é o devir de um pensamento que inventa sua diferença pelo advento da experimentação conceitual; talvez neste aspecto a filosofia construída por Deleuze e Guattari possa ganhar a configuração de um devir filosófico, onde nele personagens distintos possam configurar os intercessores de uma filosofia construída com agenciamentos filosóficos conceituais e trabalhada com personagens intercessores que entraram na configuração desta experiencia do fora. Neste intercurso final, Nietzsche e Artaud compareceram como intercessores que forneceram condições para uma experiência do fora traçada nesta noologia política. Sendo assim, uma produção de diferenças adveio como a inspiração de uma experiência do fora de um pensamento nômade plasmado na instancia de uma filosofia menor. E aqui findamos a nossa argumentação.
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[1] A experiencia do fora é uma antecipação de uma tese de Doutorado do autor deste artigo já apresentada parcialmente em outros artigos. A tese, ainda inédita deve ser publicada brevemente e vai sair com o título “O que nos faz Pensar? – as condições do pensamento na experiência do fora”
[2][2] Quem introduz a transcendência na filosofia é Platão retomando, como veremos, elementos míticos e imperiais que ele conjuga com a sua doutrina das ideias e com sua vocação estatal. No decorrer do texto, veremos como em Platão a ordem do tempo é desqualificada e, com ela, todo um modo de vida será desvalorizado.
[3][3] Na realidade o tratado de nomadologia – a máquina de guerra atravessa todos os aspectos de um modo de vida nômade, tratando, igualmente de uma mitologia, de um jogo, de uma ciência nômade etc., que deixamos de lado para priorizar a noologia. Todavia, para uma compreensão detalhada desta nomadologia, recomendamos a leitura do platô inteiro escrito pela dupla Deleuze e Guattari, cuja referência se encontra na bibliografia.
[4] Os textos onde Deleuze propõe uma reversão do platonismo utilizando Nietzsche são “Deleuze, G. Lógica e ontologia da diferença em Platão in Diferença e Repetição”, cap.1. São Paulo. Ed. Graal, 2006 e “Platão e o Simulacro” apêndice 1 in Lógica do Sentido. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2006.
[5] Os textos onde Platão trabalha o método de divisão são o Fedro , o Político e o Sofista, muito embora neste último o método vai ganhar a finalidade de identificar o Sofista com o Simulacro. Para uma compreensão didática de tal método Cf. Deleuze, G. Platão e o Simulacro in Lógica do Sentido.São Paulo: Ed. Perspectiva, 2007, páginas 259-262.
[6] Os diálogos dedicados aos sofistas são: Hípias Maior, Hípias Menor, Protágoras e Górgias – todos eles apresentados na coletânea Platon – Oeuvres Complètes do vol I – e o Diálogo o Sofista- já citado em uma nota anterior- mostram como Platão é motivado pela tarefa de construir seu projeto estatal com o proposito de banir os Sofistas.
[7] O Nietzsche aqui citado se encontra referenciado na última parte de o Assim Falava Zaratustra – ali onde Nietzsche apresenta falsários na sua famosa teoria do Homem Superior – mas aparece também como um intercessor de Deleuze nos dois textos onde a reversão do platonismo é trabalhada. Tais textos já foram citados em uma nota anterior.
[8] Para uma compreensão mais abrangente dos três sensos comuns Cf. Deleuze, G. La philosophie critique de Kant: doctrines des facultes. Paris : P.U.F. , 1971 . Passim.
[9] Os textos que fazem alusão a Nietzsche e que são trabalhados por Deleuze já foram citados em nota anterior. Agora, a retomada se faz na crítica que Nietzsche empreende a Kant por intermédio de sua Genealogia da Moral e que Deleuze nota no comentário que ele faz em Nietzsche e a Filosofia no capítulo em que ele trata da crítica Nietzscheana.
[10] Para tais comentários ver Deleuze, G. A Filosofia in Nietzsche, São Paulo: Martins Fontes, 1965. Já de Nietzsche ver Genealogia da Moral, Crepúsculo dos Ídolos e a Vontade de Poder. Os três apresentados na nossa Referência bibliográfica.
[11] Sobre a filosofia de Husserl utilizamos aqui uma introdução geral para uma fenomenologia pura que se encontra no livro Husserl, E. Ideias Para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica. Sobre as noções de Noesis e noema Cf. Capítulo 3 da terceira seção deste livro. São Paulo: ED. Ideias e Letras, 2006.
[12] Pensamento nômade e filosofia menor são noções já trabalhadas em outros textos do autor deste artigo com propósitos diferenciados, uma vez que trabalhavam aspectos da língua filosófica que aqui são somente mencionados. Aqui, ao problematizarmos as três ilusões da imagem estatal, pretendemos retomar tais noções para inserir o pensamento dos dois pensadores no contexto gral de um pensamento nômade, apresentando a sua filosofia como um procedimento minoritário e político.