O fato e o tempo nos Estudos de Ciências, Tecnologias e Sociedade
Dois aspectos iniciais servem para demonstrar minha vinculação com os pontos de vista que pretendo desenvolver. Primeiro a formação como historiadora, que me faz olhar principalmente para a dimensão temporal e material das redes científicas que estudo. Dimensão temporal porque não podemos deixar de considerar a historicidade, ou seja, o posicionamento, a temporalidade e a extensão dos conjuntos de elementos que precisamos reconhecer para compreender o funcionamento das associações produzidas pelas atividades científicas. Dimensão material porque não devemos perder de vista a construção muito concreta que as redes científicas empreendem no seu fazer. Na junção dessas duas vertentes vale ainda examinar como também nas ciências as atribuições de causas e efeitos se mantem ou se modificam no tempo; onde estão situadas as suas interligações; quais forças estão envolvidas em uma dada disputa; quem são os porta-vozes reconhecidos ou rechaçados em determinada contenda; como todos esses elementos se comportam, se modificam ou seguem juntos durantes os debates e as controvérsias científicas.
O segundo aspecto da formação de historiadora é aquele presente no habitus profissional, conforme Pierre Bourdieu, que torna imprescindível buscar apoio em documentos e em bibliografias incontornáveis sobre o tema de interesse. Esse movimento é sempre importante, porque consultar a historiografia não seria apenas para saber o que já foi escrito sobre determinado tema, mas sim para acompanhar a constante mudança permitida por novas leituras do passado, e principalmente, para conhecer conjuntamente o presente em suas dúvidas. O efeito esclarecedor da história sobre o presente é o que nos permite alcançar o passado, pois o passado e a memória não são a própria história, mas seus objetos. Compreender determinada historiografia é indagar sobre a história da história a partir de determinados pontos de vista.
Esse conjunto muito básico de asserções sobre a formação do historiador, a respeito do que diz a historiografia e sobre em que direção fazer perguntas aos documentos, permite compreender que o fato histórico não é nunca um objeto acabado e que o documento não é jamais materialmente inerte.
Jacques Le Goff, autor da terceira geração da Escola dos Annales, que buscou ir além da crônica dos acontecimentos e da história positiva, trazendo juntamente com outros a noção de longa duração, aquela que permite pensar numa história das mentalidades, é muito conhecido pela seguinte análise:
[o fato histórico] pois resulta da construção do historiador, também se faz hoje a crítica da noção de documento, que não é um material bruto, objetivo e inocente, mas exprime o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro: o documento é monumento. (Le Goff, 2003, p. 09-10).[1]
Vê-se aqui que o documento usado pelo historiador é também ele um ator e demonstra sua agência pelo esforço que as sociedades do passado e do presente exercem ao impor para o futuro, voluntariamente ou não, uma imagem de si próprias, o que expressa a impossibilidade da existência de um completo documento-verdade.
O trabalho de análise histórica, como tarefa profissional, portanto, somente acontece depois de se ter adquirido alguma noção sobre o que a história da história fala sobre determinado acontecimento e sobre os seus modos de o confirmar. Ao tentar compreender as questões de relevância colocadas para um problema, e de encontrar debates sobre o tema principal e seus temas correlatos, é que se começará a perguntar sobre as razões de tal ou qual acontecimento. Contudo, a análise se fará ainda pela percepção dos silêncios, das ausências, do que não é dito e do que faltou dizer, um modo importante tanto de escolha de temas de estudo, quanto de construção de narração e explicações, que vão se misturando no fazer do historiador.
No meu caso particular essa formação aconteceu ao mesmo tempo em que eu trabalhava como técnica em um laboratório de bioquímica, num curso médico de uma universidade importante no estado de SP. Considero que essa foi uma dupla formação, porque ao mexer diariamente com experimentos sobre processos químicos que ocorrem em organismos vivos eu tinha uma materialidade pulsante, tanto das cobaias, coelhos e cães, com os quais eu interagia todo o tempo, como dos cientistas, pesquisadores, alunos, técnicos, estagiários, pessoal da limpeza, entre outros, que trabalhávamos naquele laboratório. Nós, pessoas, interagíamos entre nós, e com outras pessoas de fora daquele espaço, assim como interagíamos também com proteínas, peptídeos, catalizadores, cobaias, coelhos, centrífugas, fígados, rins, entre outros seres não humanos.
Ciência, tecnologia e sociedade se misturavam todo o tempo. O acesso às questões conceituais das ciências não seria dado pela epistemologia, nem pela filosofia, e sim por autores que compartilhavam meu interesse sócio-histórico pela materialidade das ciências, momento em que me deparei com os Science Studies, melhor dizendo com os Estudos de Ciências, Tecnologia e Sociedade[2]. Primeiro em um curso do professor Simon Schwartzman, referência que serve para dizer que este não era um pesquisador afeito à pós-verdade, termo com o qual em geral se critica os Estudos de Ciências, onde surgiram autores como David Bloor e Bruno Latour, quando tudo aquilo que acontecia no laboratório poderia ser visto sob novo aspecto, especialmente a indissociabilidade material das coisas que as teorias construíam.
Algumas perguntas alinhavam os autores citados e o tema dos laboratórios: os resultados experimentais dependem da mediação dos humanos, então onde está a pura natureza? As condições experimentais, as pessoas, os não humanos têm histórias que desaparecem nas apresentações nos congressos científicos e nos artigos publicados, então onde nós, humanos e não humanos, estamos na descrição da natureza?
Além da percepção de que estabelecíamos relações com os animais de laboratório, nós as técnicas (sobretudo mulheres), tínhamos o entendimento claro sobre a importância do esforço constante para que as pesquisas produzidas no laboratório se mantivessem em destaque. As mediações, tais como a qualidade da manipulação de determinado aparelho ou reagente, a qualidade do pedigree dos animais experimentais, a expertise nas análises, causavam ‘coisas’ na realidade dos resultados comunicados e até em nós mesmas, quando uma colega chegou a dizer: “Se Deus for um enorme rato, nós teremos salvação?”.
Percebe-se então, que a comunicação sobre o que acontece no laboratório extrapola muito a simples descrição do que o laboratório faz com a tal natureza. Quero dizer com isso que os temas da realidade e da construção dos fatos para o cientista estão muito próximos dos debates sobre a construção do fato e do tempo histórico para o historiador. É a partir dessas considerações que o encontro com vários outros autores, especialmente das áreas da sociologia e da antropologia das ciências, servirá de referência para a discussão a seguir.
Que história das ciências?
Na história das ciências somos cercados pela história da física e das ciências matemáticas. Dos principais autores como o físico Thomas Kuhn, e o muito citado livro A Estrutura das Revoluções Científicas de 1962, ao livro Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora, de Bruno Latour, publicado em 1987, ou com o livro de Steven Shapin e Simon Schaffer, que discute a história d’O Leviatan e a Bomba de Vácuo. Hobbes, Boyle e a vida experimental, de 1985, até a convivência com os primeiros professores de história das ciências no Brasil, físicos de formação, as ciências físicas e matemáticas marcam tanto a história quanto a epistemologia.
O título do encontro O fim das ortodoxias me levou a imaginar uma discussão em torno da ideia de ‘fins’, ou como ponto de conclusão e término ou como aquilo que motiva e determina algo. Para Thomas Kuhn o fim de uma disputa é o fim da necessidade de reiteração de determinada fundamentação sobre o fenômeno que está sendo questionado; para ele o encerramento de uma disputa libera a pesquisa científica para se aprofundar naquilo que o autor chama de ciência normal, ou como podemos dizer, ciência ‘vencedora’ normal.
O fim, com sentido de ‘aquilo que motiva e determina algo’, ou simplesmente propósito, libera a pesquisa, como diz o autor, para o “trabalho mais preciso, mais exotérico e mais extenuante” (Kuhn,1998, p. 38) de aprofundamento do conhecimento conquistado, quando o paradigma se torna, então, aquilo que é amplamente reconhecido pela comunidade, uma realização científica que fornece problemas e questões modelares, como diz Thomas Kuhn. Contudo, mesmo para a descrição tradicional sobre o funcionamento das ciências, um paradigma nunca explica tudo, como diz o próprio autor: “Para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”. (Kuhn, 1998, p. 38).
Logo, podemos concluir que o fim de uma disputa existe de forma apenas parcial, talvez de modo breve, talvez no longuíssimo tempo, mas não definitivamente. E depois disso, como todos os leitores de Kuhn já ouviram, suceder-se-iam as crises e a ciência revolucionária, quando se apresentam novamente novas teorias e a possibilidade de que surjam novos paradigmas, num processo não necessariamente cumulativo.
Já para Bruno Latour no livro Ciência em ação, os confrontos e as controvérsias, indicam outra coisa, a transformação da atividade técnica em um conjunto de tecnicalidades. Para ele o confronto será o momento da adição de mais recursos, mais textos, mais arquivos, mais instrumentos, mais gráficos e tabelas, mais documentos “para forçar os outros a transformar o que antes foi uma opinião num fato” (Latour, 1987, p. 54), arregimentando-se assim diversos aliados heterogêneos.
Os estudos de Ciências, Tecnologias e Sociedade entendem que é necessário rastrear conexões, fazer da história daquela ciência uma busca pelas associações de humanos e de não-humanos. As tecnicalidades sozinhas não serão suficientes para convencer numa controvérsia científica, é preciso que os aliados heterogêneos se alinhem também; portanto para Latour (2014, p. 54) “construído e real não são termos que se oponham”, significando que a ampliação e a manutenção das redes de associações permite que as ciências atuem à distância, não de forma transcendental, mas amparadas na materialidade: transformadas em fato quando as redes permanecem conectadas, ou em ficção quando uma afirmação não se insere em outra afirmação e a rede desaparece no horizonte dos prováveis.
Mas e a ‘Natureza’?
A primeira citação de Thomas Kuhn sobre natureza, com sentido de mundo natural, permite relacionar os entendimentos desatualizados e superados na história das ciências com os conhecimentos hoje válidos, produzidos no presente:
as concepções de natureza outrora correntes não eram nem menos científicas, nem menos o produto da idiossincrasia do que as atualmente em voga. Se essas crenças obsoletas devem ser chamadas de mitos, então os mitos podem ser produzidos pelos mesmos tipos de métodos e mantidos pelas mesmas razões que hoje conduzem ao conhecimento científico. Se, por outro lado, elas devem ser chamadas de ciências, então a ciência inclui conjuntos de crenças totalmente incompatíveis com as que hoje mantemos. Dadas essas alternativas, o historiador deve escolher a última. Teorias obsoletas não são acientíficas em princípio, simplesmente porque foram descartadas. (Kuhn, 1998, p. 21).
Em Thomas Kuhn a concepção de natureza em sentido tradicional, como um ente não modificado pelos humanos, permanece intacta. O que se modifica são os entendimentos que o cientista apresenta: a natureza permanece constante e a cultura se modifica. Para o autor a natureza não está em questão, somente as versões sobre a natureza. Mas onde se localiza então a natureza? Kuhn não faz essa discussão, porque ele não tem dúvida sobre onde está a natureza. Out there, lá fora.
Para Latour natureza é um artifício, visto que enquanto durar uma controvérsia a natureza poderá estar em qualquer um dos lados do debate. A ‘voz’ da natureza só aparecerá clara e audível quando a contenda for finalizada. Enquanto a controvérsia está em ação a natureza está sendo testada, puxada para um lado ou para outro e não pode ser avalizadora sozinha do resultado da pesquisa científica. Para Latour a natureza aparece como causa ou como consequência, os dois estados possíveis da natureza. Pensando no fenômeno do tempo, definir natureza dependerá do momento em que a análise se realizar:
(…) quem vai das camadas externas dos artigos para as suas partes internas não está indo do argumento da autoridade para a Natureza, mas sim de autoridades para mais autoridades, de certo número de aliados e reforços para um número ainda maior deles. (Latour, 1987, p. 83).
Uma análise CTS buscará a história das ciências em construção, aquela que ainda não tem certeza dos seus resultados. Já uma história confirmatória falará apenas sobre o fim, muito tempo depois que o resultado já tenha sido conhecido por todos. Para essa história a natureza aparecerá como a causa primeira, ou última, do resultado científico. Neste formato, de acordo com Latour, saberemos pouco da natureza nos momentos em que ninguém sabia onde estava a natureza, pois o desfecho da história confirmatória da ‘Ciência’ parecerá óbvio, tranquilo e seguro.
Por que essa história confirmatória interessa menos? Uma razão seria porque ela estaria integrada apenas pelo tempo da memória, aquele que resume a opinião dos cientistas que contam apenas sobre um lado da história. A outra possibilidade, a do tempo da expectativa, tempo do que ainda pode ou não acontecer, um tempo sem acontecimento definido, diz mais algumas coisas. Uma análise do tipo confirmatória utiliza as referências do já sabido. Olhamos para um lugar com ciência de baixo impacto e/ou com pouca tecnologia por exemplo e já sabemos que o que a caracteriza é o subdesenvolvido.
Mas, se olharmos para as ciências em suas hesitações poderemos buscar os aliados e a falta deles nos dois campos, o do vencedor e o dos vencidos, e acompanhar suas respectivas consequências. Quero dizer, encontrar mais do que o passado visto como realização do presente. Poderemos ver quando não havia ainda passado, quais foram as bifurcações trilhadas, quais as escolhas, o que não foi realizado e porque tal e qual coisa realizou-se: o poder, a objetividade e a natureza serão assim conquistas das redes de referências, de aliados, dos centros de cálculo, como lugares de referência pelos quais todos os aliados ‘vencedores’ terão passado.
Não é porque somos subdesenvolvidos (ou não desenvolvidos) que fazemos ciência de baixo impacto, mas fazemos certamente muita ciência que interessa mais aos países desenvolvidos do que a nós mesmos. Talvez subdesenvolvimento e baixo impacto sejam companheiras de jornada.
Para falar da história das ciências é preciso pensar em fazer história situada em determinado tempo e lugar, numa espécie de corporificação radical dos saberes localizados, que, como diria Donna Haraway, se amplificam quando são construídas a partir de uma visão parcial. Visão parcial significando aqui menos transcendência e mais aproximação. Como diz a autora:
(…) creio que o meu e o ‘nosso’ problema é como ter, simultaneamente, uma explicação da contingência histórica radical sobre todo conhecimento postulado e todos os sujeitos cognoscentes, uma prática crítica de reconhecimento de nossas próprias ‘tecnologias semióticas’ para a construção de sentido, e um compromisso a sério com explicações fiéis de um mundo ‘real’, um mundo que possa ser parcialmente compartilhado e amistoso em relação a projetos terrestres de liberdade finita, abundância material adequada, sofrimento reduzido e felicidade limitada. (Haraway, 1995, p. 15-16).
A proposta aqui não é praticar histórias particulares repetidamente, mas histórias situadas a partir de um lugar, para não confundirmos saberes localizados com estudos de casos nacionais. Por exemplo, como o subdesenvolvimento pensa a ciência? Para esse tema, ver o que diz Fabrício Monteiro Neves, no artigo A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância, sobre o lugar da subalternidade. Citando o autor:
O imaginário corrente nos contextos da prática científica assume explicitamente uma geopolítica do conhecimento que reforça hierarquizações a respeito da ‘boa e má ciência’, ‘ciência avançada e ciência atrasada’, ‘centro e periferia’. Fazer ciência é também instaurar uma ordem hierarquizada, mais ou menos aceita, de procedimentos epistemológicos e metodológicos que percorrem instituições científicas pelo globo, na maior parte das vezes, tomando-os como garantidos. Tal ordem legitima-se legando aos mais distintos espaços de prática científica a condição periférica ou central. (Neves, 2020, p. 1).
Bruno Latour propõe que compreender fatos, ideias científicas e máquinas permite entender quem são os grupos controladores e controlados. Permite também o oposto: conhecer os novos grupos, pode levar a conhecer “como as máquinas funcionam e por que os fatos são duros” (Latour, 2000, p. 232). A partir dessa leitura o autor vai falar de associações, forte ou fracas. Fortes quando a sociedade feita de humanos e não humanos se robustece com a presença de laboratórios, equipamentos, artigos, recursos e aliados; associações fracas quando se é forçado a admitir a discussão apenas a partir da retórica opositora e de seus porta vozes, mas fora dos laboratórios. Para o autor, a saída dessa segunda posição seria discutir a contenda a partir de contra laboratórios.
As associações fortes sugerem uma forma de acesso à dada realidade, redefinindo qualquer noção imediata de realidade:
Os laboratórios agora são suficientemente poderosos para definir a realidade. Para ter certeza de que nossa viagem pela tecnociência não será toldada por complicadas definições de realidade, precisamos de uma que seja simples e resistente para aguentar toda a trajetória: realidade, como indica a palavra latina res, é aquilo que resiste. Mas resiste a que? Ao teste de força. Se, em dada situação, nenhum discordante é capaz de modificar a forma de um objeto novo, então sim, ele é realidade, pelo menos enquanto os testes de força não forem modificados. (Latour, 2000, p. 155).
Os termos das associações que me interessam compreendem são as das realidades resultantes da ação nos laboratórios, reunida aos debates situados na história, uma história não do tempo cronológico da história confirmação, mas no tempo da análise situada. Pois, como sabemos, o tempo cronológico é uma convenção que anula outras experiências temporais e que reúne num tempo único, por meio dos cálculos das leis da física e da astronomia, um determinado calendário, unificado para todos. Esse tempo natural, naturalizado, não é, no entanto, o mesmo que o tempo histórico, este pode passar de diferentes modos conforme diferentes experiências.
Explicando por meio de uma pequena incursão historiográfica, quando digo que são os ritmos da ação que diferenciam o tempo cronológico do tempo histórico. Por exemplo, o muito conhecido historiador britânico, nascido em Alexandria no Egito, Eric Hobsbawm, tratou sobre o que ele chamou de “o longo século XIX” no livro A Era dos Impérios de 1875 a 1914, publicado pela primeira vez em 1987. Falava ele do tempo ápice da expansão capitalista e da dominação europeia, tempo de guerra e crises, mas do mesmo modo, tempo de uma explosão nas artes e na cultura, com Freud, Einstein, Schoenberg e Picasso, tempo em que se estabeleceram fortemente as raízes do século XX.
Já o próprio século XX teria sido para o autor, breve. No livro A era dos extremos. O breve século XX. 1914 – 1991, publicado pela primeira vez em 1994, Hobsbawm tinha como fator delimitador para o fim do século a queda do Muro de Berlin, em 1989, noticiado como um certo fim dos tempos. Analogamente em 1989 um cientista político e economista americano, Francis Fukuyama, publicava seu muito famoso artigo O fim da história? na revista The National Interest. E em 1992 o mesmo autor publicaria o livro O fim da história e o último homem, tendo a queda do Muro de Berlim como evento que demarcaria a vitória da liberal democracia como referência para toda a humanidade.
Dada a força do evento, não por acaso será esse mesmo acontecimento de 1989 que Bruno Latour chamará de miraculoso no livro Jamais Fomos Modernos, publicado pela primeira vez em 1991, mas por outro motivo principal, por ser também uma data importante para situar a década das primeiras conferências sobre o clima, em que ocorreram a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982); Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio (1985); Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio (1987); Criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas IPCC (1988) e a Convenção da Basiléia para o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e sua Eliminação (1989).
Vemos então indicações sobre um tempo em vários ritmos, ritmos que apontam para tempos que se intercalam (como é fácil perceber no caso do concreto de um muro que cai às novas percepção das mudanças no clima). Essa ideia de vários ritmos temporais não é nova, como indica outro historiador Reinhart Koselleck (2014) no livro Futuro do passado, publicado pela primeira vez em 1979, citando um autor alemão, Johann. G. Herder que em 1799, escreveu contra Kant dizendo:
Na verdade, cada coisa capaz de se modificar traz em si a própria medida de seu tempo; essa medida continua existindo, mesmo se não houver mais nenhuma outra ali; não há duas coisas no mundo que tenham a mesma medida de tempo (…). Pode-se afirmar, portanto, com certeza e também com alguma audácia, que há, no universo, a um mesmo e único tempo, um número incontável de outros tempo. (Apud Koselleck, 2014, p. 14).
Conclusão
Podemos perguntar sobre onde estão situados esses outros tempos? Como se intercalam? Como os diferenciamos?
O tempo em suas unidades, feitas de datas, calendários e relógios; o tempo e suas durações, tais como a idade dos indivíduos, das instituições, dos eventos e dos acontecimentos, permitem medições e datações. Na controvérsia científica podemos ver, contudo os efeitos históricos do tempo histórico, pois onde vemos eventos únicos a interpretação falará de processos e de justaposições.
Os conceitos científicos obsoletos ou em vigência são, portanto como aquela materialidade pulsante a que me referi no começo deste texto, eles não têm existência solitária, eles só funcionam em conjunto, em redes de significação, com todos os demais exemplos de materialidade, feitas de pessoas e coisas, humanos e não humanos, tanto nas ciências quanto nas tecnologias, situados em conexão, e podendo agir ao longe sobre outros coletivos.
A partir de uma área em que me arisco as vezes, a história da informática, me chamou atenção um documento, na verdade um artigo publicado em uma antiga revista intitulada Dados e Ideias. O seguinte título do engenheiro Newton Faller, O software nacional em busca de sua alma (1976), é um texto que destaca um outro cosmos, dentro de uma outro cosmopolítica no sentido de pertencer, ser parte de uma multiplicidade, como diria Isabelle Stengers em A proposição cosmopolítica (2018).
Uso o termo cosmopolítica porque o excerto abaixo nos leva a crer que para que houvesse eficácia na política de informática brasileira dos anos 1970 e 1980 era preciso constituir uma complexidade nova, feita de humanos e não humanos. Talvez estivesse aqui também o projeto de um contra laboratório, só que amplo e nacional:
Em um produto industrializado encontramos duas substâncias básicas. A primeira, visível e palpável, é de natureza física, formada pelas diversas partes materiais que o compõe. A segunda é de natureza sutil, uma espécie de alma que o produto possui. Constitui-se do interrelacionamento surgido entre suas diversas partes ao formarem um conjunto. A compreensão desta alma é que dita os procedimentos necessários para sua obtenção a partir de elementos mais simples. Quanto mais complexa a alma do produto, muito provavelmente, maior o know-how necessário para obtê-lo. Diz-se, neste caso, crescer o conteúdo tecnológico do mesmo. Este know-how, entretanto, não está contido nos livros didáticos e é impossível transmiti-lo àqueles que não estejam devidamente preparados para recebê-lo. A experiência demonstrou só existir um modo de se perscrutar a alma de um produto, de forma a tornar possível a geração ou a absorção de know-how; é projetá-lo e construí-lo. (…). Deve ser bem entendido que a autonomia tecnológica para um produto só poderá ser alcançada se houver no país o conhecimento da alma do mesmo. Este objetivo, entretanto, só tem condições de se viabilizar quando há um total apoio ao projeto, industrialização e comercialização de produtos cujo corpo e alma sejam conhecidos no país, discriminando-os daqueles simplesmente montados, ou ainda daqueles de corpo nacional mas de alma dominada somente por alienígenas. (Faller, 1976, p. 5).
Contrapondo as análises acima, rapidamente indicadas, de Eric Hobsbawm sobre o deslocamento do tempo cronológico e do tempo histórico (o longo século XIX, o breve século XX), o ano miraculoso de 1989 de Bruno Latour, e este pequeno documento de Newton Faller, gostaria de indicar a hipótese de que os diferentes tempos das ciências nos países não centrais podem significar outras possibilidades históricas para as ciências, já que o universal é puramente conceitual, mas é muito materialmente localizável.
Os exemplos acima deveriam nos auxiliar a derrubar alguns muros próprios, como diz Ivan da Costa Marques no texto Possibilidades de práticas ontológicas situadas,
(…) o desvelamento desta aliança entre os construtores do mundo moderno e seus fatos e artefatos, ditos universais puros e neutros, gerando a ‘invencibilidade moderna’, tem consequências insólitas para a relação entre a história das ciências e os destinos da pesquisa no Brasil hoje (…). Os universais que recebemos do Norte são mais propriamente os particulares de lá dos quais se apagaram os rastros das decisões e das opções (indissociavelmente técnicas e políticas) que foram tomadas em sua constituição e que os particularizam. (Marques, 2012, p. 84).
Dito de outro modo, os estudos brasileiros sobre ciências e tecnologias devem permitir descrever as questões locais e as questões globais nos mesmos termos, não a efetiva ciência como algo distante e os impedimentos locais como destino inescrutável das práticas brasileiras, e latino-americanas, uma e outra configuram o mesmo ‘universal’ com diferentes características, que são sempre locais e situadas em um tempo histórico muito particular.
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[1] Livro composto de escritos produzidos desde 1977 e publicado pela primeira vez em 1988.
[2] Os estudos de Ciências, Tecnologias e Sociedade (CTS), podem se confundir ou se misturar com outras denominações, tais como: Social Studies of Knowledge (SSK), Social Construction of Technology (SCOT), Anthropology of Science and Technology, todas em inglês, denotando suas origens euro-norte americanas, centradas no decorrer dos anos 1980-90. Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia, ou apenas Estudos de Ciência e Tecnologia, são as formas mais conhecidas na academia brasileira.