A lição de La Boétie em seu “Discurso da Servidão voluntária” – Parte 2
Os tiranetes e a Lei
Como consequência ainda mais nefasta para essa relação de tirania em escala, é o fato desses tiranetes não serem os fora-da-lei da sociedade, mas ao contrário, serem precisamente aqueles que criam a lei. Ora, é a lei que deve dirigir e obrigar a ação humana, o que torna os tiranetes promotores do que há de, em aparência, mais valioso na vida coletiva. Como ensina Claudio Ulpiano (2013, p. 107), a imagem clássica da lei a vincula à ideia do bem. Como os homens não têm acesso ao bem em si, encontram na vida prática um representante seu: a lei. Desse modo, o cidadão virtuoso é aquele que obedece à lei, que a ela se subordina, procedendo assim da melhor maneira.
Estabelece-se aqui uma crença ingênua que compreende a lei como algo que vale por si mesmo, de uma neutralidade pura à qual todas as vontades devem se submeter. Já que o bem não está dado aos homens como um dado empírico, como estes divergem na formulação do que seria verdadeiramente o bem, resta aos homens se conformar com o seu melhor substituto. Em razão disso, os homens se colocam como seus súditos e guardiães, acreditando que com isso cumprem o seu melhor papel.
Ocorre que ao promover essa valorização da lei como um princípio admirável em si mesmo, esquecem os homens da lição maior da filosofia política sofista: toda lei expressa um interesse e pode, justamente, servir para sua opressão e submissão. Os sofistas, no século V a.C., fizeram uma importante distinção entre nomos e physis, entre lei e natureza. Trasímaco afirma ser a lei um instrumento de poder, retirando dela o caráter puramente racional que pretende. A lei se torna, nesse sentido, expressão da própria injustiça, uma vez que é uma violência feito ao indivíduo e instrumento da vontade de poder dos homens no poder (ROMEYER-DHERBEY, 1999, p. 74). Desse modo, os homens pensam encontrar na lei a justiça, mas encontram apenas a justificação de suas ambições. Sob o amparo legal (instituição fundamental do mundo democrático), os benefícios e conveniências de poucos parecem não ser forças desmesuradas; parecem não ser caminhos de desigualdade e sua promoção, quando nada mais são do que uma força disfarçada em direito. É por essa razão que Hipias chama a lei de “tirano dos homens” (In ROMEYER-DHERBEY, 1999, p. 85), posto que impõe aos homens como agir, o que desejar e como sentir.
Ora, os tiranetes criam a lei em seu próprio benefício, criam a lei que expressa o seu próprio interesse, levando os seus submetidos a acreditarem na legitimidade e na beneficência coletiva dessa lei. A lei criada por estes arrasta o povo para objetivos opostos ao seu bem-estar. Ela os obriga a se transformarem absurdamente em algozes de si mesmo, aceitando um sofrimento maior, suportando um dano que podia evitar, em suma, contribuindo para tornar a vida mais pobre e penosa. Mas, se alguém as transgride, castigam-no como violador da lei, da justiça, dos maiores e mais lícitos interesses da nação. Logo, é necessário, antes de tudo, uma desmistificação da lei, que, longe de servir de muralha contra a injustiça, se encontra contaminada e pervertida por ela.
Daí a pergunta óbvia: como socorrer-se à legalidade se é a própria lei que produz a tirania?
O fanatismo da legalidade em Victor Hugo
O escritor Victor Hugo criou um personagem que simboliza o tiranete e seu fanatismo de legalidade: Javert. Sendo chamado pelo narrador de Os miseráveis de “justo”, “puro” e “incorruptível”, ele se apresenta como um homem dedicado a cumprir e a fazer com que os outros cumpram a lei e leva, como diz Vargas Llosa, “essa dedicação a exageros fanáticos e aberrantes” (2012, p. 80). Seu estreito entendimento realiza uma simples equação: a sociedade só é possível graças ao trabalho dos homens que, como ele, mantém os demais submissos à ordem e à lei. É uma vida composta de dois afetos: o respeito à autoridade e ódio a toda forma de rebeldia. Assim, ele antepõe a justiça à vida, está disposto a sacrificar a segunda em nome da primeira tornando evidente a sua desumanidade.
Acreditando cegamente na verdade da justiça, na verdade da submissão como ordem necessária ao bom funcionamento social, Javert é o cidadão da ordem, submisso e domesticado pelas restrições e freios que pretensamente possibilitam a coexistência social, sem perceber que a justiça oficial, que ele ajuda a realizar, a da autoridade e do estabelecido, é baseada numa injustiça profunda que deixa milhares de seres humanos padecerem abusos, abandonados no esquecimento.
Javert representa a figura que carece de liberdade e imaginação, e Victor Hugo, de modo brilhante, faz dele um personagem profundamente antipático aos olhos do leitor. Ele é o protótipo de uma ilusão que atravessa o homem comum: que a lei expressa o bem de modo neutro e absoluto e que a sobrevivência em sociedade depende desse respeito intransigente com a lei. Javert, diz Llosa, é o espartilho social (2012, p. 82), indispensável para a idealidade de um sociedade de dominação, profundamente desigual e injusta, escondida sob a irrepreensível obediência da lei.
Se na filosofia política cristã o rei era colocado acima da comunidade e, uma vez ungido e coroado, recebendo diretamente de Deus essa distinção e elevação, não podia ser julgado por ninguém, nas sociedades contemporâneas há outra forma de legitimar a tirania. Os homens da lei podem fazer o que desejam em nome dessa autoridade maior que produziria o senso de justiça e de moralidade. Mas quando ao homem da lei tudo é permitido, como pode se estar certo sobre suas ações? Como se certificar de seu agir quando nada lhe impede de fazer tudo e qualquer coisa que deseja? O império da lei se quer permanente, contínuo e indestrutível. Ainda que não investido por Deus, afirma-se igualmente ungido e consagrado.
Ao erigir a lei em senhor, justifica-se e legitima-se a rapinagem, a destruição e a opressão, fazendo parecer que este é o melhor caminho para uma sociedade justa e democrática.
Tirania e Amizade
A relação entre tirano e tiranete nunca pode ser de amizade, dado que esta só se realiza por mútua estima e é fundamental para a amizade segura que se reconheça no outro a sua integridade, a sua bondade e a sua constância. Logo, onde há crueldade, deslealdade, injustiça, não há propriamente amizade, mas sim conspiração. Em outras palavras, dada a condição superior do tirano, elevado acima de todos os outros, fica impossibilitado qualquer laço de amizade dele com o súdito.
Além disso, a amizade pressupõe a igualdade, o caminhar parelho, o que inviabiliza que os bons se aproximem do tirano. Somente quem já tem o propósito da tirania em si é que dele se acerca, mas que não se enganem estes tiranetes. Eles são atraídos “por uma chama que não pode deixar de consumi-los” (LA BOÉTIE, 1982, p. 36). E se não forem abatidos por aqueles que servem, certamente serão pelos próximos tiranos que terão os seus próprios favoritos.
É essa a miséria do homem subjugado que nada mais conserva de si, tendo somente no outro sua satisfação e sua vida e cuja relação de afeto que conhece é a conspiração, temendo a todo instante aqueles que o cercam ou que lhe poderão cercar, mas sorrindo para eles o tempo todo em respeito à sua devoção. Pateticamente, sob a aparência de poderio, dão tudo ao tirano.
Poder-se-ia, pois, pensar dois tipos de sociedade: uma fundada na igualdade e outra fundada na cumplicidade. Nesta última os homens aparentemente partilham ideias e projetos, mas em realidade teme uns aos outros o tempo todo; na primeira, é possível aos homens se constituirem como amigos, isto é, em que há a explícita recusa da dominação, da relação senhor/escravo.
Toda desigualdade de força e de intenção de dominação impossibilitam a amizade política, fundada na igualdade. Por isso nenhum projeto de escravidão ou mesmo de projeto eleito democraticamente que na verdade esconde sua face real de projeto de escravidão pode constituir um bem para o povo. O povo livre repudia os imperialismos e não consente com acordos que traem o princípio da igualdade, mesmo que tais acordos se apresentem com palavras bonitas sobre o bem público, a paz social e a tranquilidade em geral.
Como ensina Vernant (2001, p. 27), há um ditado grego que diz: “entre amigos, tudo é comum”. Na cidade, os seus habitantes devem ser unidos por um laço de philia, de uma amizade que os torna semelhantes e iguais. No espaço da verdadeira cidadania, no espaço público da coletividade, tudo deve ser repartido entre os iguais e por isso a igualdade é fundamental na amizade – ela exclui toda superioridade e toda imposição. “Não existe comunidade sem philia, sem o sentimento de que, entre o outro e nós, alguma coisa circula, a qual os gregos podiam representar sob a forma de um daimon alado, que voa de um para o outro” (2001, p. 31).
A filosofia epicurista, que como toda filosofia helenista, vive o momento e as consequências da decadência da polis, tem como objetivo pensar como é possível o exercício da liberdade para um homem que não vive mais de forma autônoma em sua cidade. A ética epicurista, ao perseguir esse fim, encontra na amizade (philia) a sua virtude principal – o enlace simbólico intersubjetivo de uma comunidade (BIEDA, 2015, p. 76).
A amizade é a mais importante das virtudes segundo Epicuro. Cícero diz: “Epicuro ensina-nos que de todas as coisas que a sabedoria reuniu para que possamos viver felizes não há nenhuma maior, nem mais rica, nem mais fecunda que a amizade” (2005, XX, p. 28). A amizade é necessária para se combata o temor que ameaça a tranquilidade da alma.
A recusa dos Mélios em servir
O historiador Tucidides conta que no décimo sexto ano da guerra do Peloponeso os atenienses realizaram uma expedição à ilha de Melos com 30 naus, levando 1.200 hoplitas seus e 15.000 hoplitas aliados. Os mélios, colônios lacedemônios, se recusavam a obedecer aos atenienses, divergindo dos demais povos das outras ilhas. Os comandantes Cleômedes e Tísias enviam emissários para transmitir às autoridades da ilha a proposta ateniense, ao que os representantes de Melos replicam: “viestes para serdes vós mesmos os juízes do que devemos dizer e o resultado do debate é evidente: se vencermos na discussão por ser justa a nossa causa, e então nos recusarmos a ceder, será a guerra para nós; se nos deixarmos convencer, será a servidão” (1999, 83, p. 282).
Os atenienses argumentam que os fortes exercem o poder e os fracos a ele se submetem e que ali estão em benefício do próprio império, mas também para a salvação da cidade de Melos, uma vez que desejam manter o domínio sobre eles sem qualquer tipo de problema (1999, 91, p. 283). Ou seja, os atenienses vão propor aos habitantes de Melos que lutem para serem escravizados e querem convencê-los que isto é vantajoso tanto para os que dominarão quanto para os dominados. A pergunta dos Mélios é então óbvia: “mas que vantagens poderemos ter em ser escravos em comparação com a vossa em dominar-nos?” (1999, 92, 283), ao que responde os atenienses que a vantagem se submeterem antes de sofrer os terríveis males da guerra e da destruição.
Os mélios indagam os atenienses se então eles não podem se fixar em uma relação de amizade: “vós não consentiríeis em deixar-nos tranquilos e em sermos amigos em vez de inimigos, sem nos aliarmos a qualquer dos lados?” (1999, 94, 283). A contra-proposta dos Mélios é, pois, se colocar como amigos dos atenienses sem com isso se colocar como inimigo de ninguém, mas os atenienses não aceitam, alegando que a hostilidade mélios lhes seria tão prejudicial quanto a sua amizade, além de mostrar-se como prova de fraqueza junto a seus súditos.
Por fim, os mélios não aceitam a proposta ateniense porque verificam que estes só interessa a sumbissão em troca de segurança e proteção nas batalhas marítmas. Dizem eles: “para nós, que ainda mantemos a nossa liberdade, seria o cúmulo da degradação e covardia se não recorrêssemos a quaisquer meios antes de nos submetermos à escravidão” (1999, 100, p. 284). Claramente, a falácia ateniense não é aceita desde a primeira hora pelos mélios e a aliança não se realiza. Iniciam-se imediatamente as hostilidades contra a Ilha: levantam uma muralha em seu entorno e sitiam a cidade. Com os reforços posteriores que chegam de Atenas, os Mélios capitulam. Os atenienses matam todos os homens em idade militar que capturam, escravizam mulheres e crianças e se estabelecem em Mélos, mandando vir de Atenas 500 colonos.
O imperialismo ateniense oferecia segurança, como se houvesse compatibilidade entre dominação e salvação. Para se salvarem, os mélios deveriam se submeter – eis a afirmação de superioridade da cidade mais poderosa, cuja palavra ameaçadora traz o temor da humilhação (1999, 111, p. 286). Os atenienses colocam os mélios em um falso dilema entre a guerra e a salvação, como se não se tratasse sempre de sucumbir, quando não é possível estabelecer a amizade no plano político, como foi solicitado pelos mélios.
Os atenienses prometem a salvação da pátria, quando só têm a oferecer a rúina da Ilha. Sabendo disso, os mélios resistem e lutam para não entregar-se, voluntariamente, à escravidão.
A amizade como exclusão da servidão natural
O relato de Tucídides mostra que há uma contraposição entre desejo de servir e amizade. A amizade é a relação genuinamente entre iguais que não admite a conversão de um em senhor, é o que pode se opor ao nome de um. A igualdade dos amigos é, pois, contrária à escravidão, porque nela está impossibilitado o lugar de servir. Nesse sentido, é imperativo resgatar aquilo que é contrário à submissão, como meio de desfazer a tirania. Ou dito em outras palavras, é exatamente o traço do companheirismo que exclui a possibilidade da servidão natural.
La Boétie afirma que os homens, por natureza, estão aptos a conviverem e confraternizarem – “não pode cair no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto algum em servidão, tendo-nos posto todos em companhia” (1982, p. 17); por meio de seus pensamentos estabelecer uma comunhão de suas vontades, formando uma forte aliança social em que o afeto fraternal pode ser usado para a ajuda de quem a necessitar recebê-la, sendo todos os homens naturalmente livres e companheiros.
“A amizade é o nome sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por mútua estima… não se pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça; e entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices” (LA BOÉTIE, 1982, p. 35-36).
A natureza configurou os homens no mesmo padrão, para que eles ao se olharem, pudessem se reconhecer um no outro, desenvolvendo a confiança recíproca de sua integridade. A própria natureza criou o homem de modo a que ele seja levado à vida comunitária, estreitando seus laços com o outro, fazendo não que os homens sejam unidos, mas fazendo com que os homens juntos formem um só ser. Cada ser, apto para entrar em composição com outro para formar um novo indivíduo, estabelece por tanto a primeira cadeia de solidariedade que não cessa de se estender. Cada ser recebe assim um eco distante ou próximo, fraco ou intenso, do que afeta a outros corpos com os quais está ligado pela concórdia, pela mútua cooperação e pela amizade.
Nesse sentido, Chauí afirma que a amizade teria um sentido secreto que, decifrado, revelaria a sua dimensão política. Ela revela-se uma força política que se aproxima do que Spinoza chama de fortaleza de ânimo ou força da alma, “um exercício de liberdade que se chama firmeza quando se refere a nós mesmos e generosidade quando se refere à nossa relação com o outro” (2014, p. 205).
Esse é novamente um tema spinozista: cada pessoa que entrar em composição com outra forma um novo indivíduo, estabelecendo uma cadeia de solidariedade que não cessa de se estender. Cada um recebe, assim, um eco distante ou próximo que afeta a todos os corpos que estão ligados. Nos unimos, nesse tempo em especial, não por nossas misérias e impotências, não por uma desgraça comum. Nos unimos pelo que nos afirma e nos alegra, por partilharmos em comum os mesmos venenos e tudo o que nos causa tristeza. Nossa composição resulta em uma nova natureza necessariamente boa para nós, superior a cada um de nós individualmente. É um magno encontro, uma forma de alegria. E, como se sabe, somente a alegria pode se sobrepor à tristeza.
O exemplo dos Índios Guaiquis: amizade e liberdade
Pierre Clastres, ao estudar a sociedade dos índios Guiaquis do Paraguai, percebeu que esta sociedade, notadamente não-hierárquica, possuía mecanismos culturais que impediam ativamente o aparecimento de figuras de comando, e com isso esclareceu ao mundo que a clássica divisão social entre dominantes e dominados não é única forma de se pensar e de se constituir uma sociedade. As sociedades Guaranis se caracterizariam como verdadeiras sociedades “contra o Estado”, pois sua dinâmica cultural almejaria precisamente impedir a formação de uma classe de dirigentes e outra de dirigidos, isto é, há uma inquieta recusa do poder coercitivo, estando o seu campo político fora de toda coerção e violência. O traço da organização política desta e da maioria das sociedades indígenas é a falta de estratificação social e de autoridade de poder. Em algumas delas, como ona e os yahgan, da terra do fogo, não existe nem mesmo a instituição da chefia; na língua dos Jivaro não havia vocábulo para designar chefe (1990, p. 22).
Os líderes indígenas – os caciques, não possuem poder de comando e nem exige dos demais obediência. Aliás, Clastres diz que se há algo estranho a um índio é a ideia de ordenar ou obedecer, exceto em condições muito especiais como em uma expedição guerreira[1]. Nas sociedades em que a instituição política está ausente (onde não existem chefes), há um sentido profundo para essa ausência: uma cultura que se investe totalmente na recusa do poder.
Como então se define o chefe se a autoridade lhe falta? Há um poder quase impotente, uma chefia sem autoridade que possui três propriedades essenciais: ser um fazedor da paz e promotor da harmonia, apaziguando as disputas e atuando como instância conciliadora do grupo; ser generoso com os seus bens, não podendo repelir, sob pena de ser desacreditado, os incessantes pedidos políticos dos membros da tribo – é, aliás, seu dever estar submetido a uma frequente pilhagem; ser um bom orador. Seu discurso, essencialmente, é uma celebração das normas da vida tradicional e estão ligados à temática da paz, da harmonia e da honestidade, virtudes recomendadas a todas as pessoas da tribo (1990, p. 230).
Se na sociedade sem estado não é do lado do chefe que se encontra o poder, sua palavra não é palavra de autoridade, comando. A sociedade primitiva é o lugar da recusa de um poder separado, porque ela própria, e não o chefe, é o lugar real do poder. A palavra é “o meio que o grupo dispõe para manter o poder fora da violência coercitiva, como a garantia repetida a cada dia de que essa ameaça está afastada” (1990, p. 34). O dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia é a garantia que proíbe que o homem de palavra se torne homem de poder (1990, p. 109).
Além disso, a prática a exogamia local, isto é, o casamento fora do mesmo grupo, é também um meio de proporcionar alianças políticas que assegurem esse modelo social. O casamento, enquanto aliança de famílias, contribui para integrar as comunidades em um conjunto que se distingue por deveres e direitos mútuos, pela certeza de que não está rodeada de estrangeiros hostis, mas de aliados e parentes, alargando o horizonte político para além da simples comunidade (1990, p. 46-47).
No rito de iniciação dos jovens índios há uma pedagogia da afirmação da igualdade em que é dito e marcado na pele de cada um (para que não se esqueçam) sua semelhança frente aos demais, seu lugar de igualdade – nem superior nem inferior a ninguém. Diz Clastres que a lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que todos se lembrarão (1990, 130).
No texto de La Boétie ele fala de uma gente inteiramente nova, não acostumada à sujeição ou atraída pela liberdade e indaga se esta gente escolheria se submeter ou viver inteiramente livre (1982, p. 83). Claramente essa gente diria não, não permitindo o nascimento desse tipo de poder. Chauí diz que podemos relacionar essa “gente inteiramente nova” aos índios da América, que “torna legível o infortúnio da velha gente” (2014, 125-126), em comparação aos europeus brancos do século de La Boétie.
Estes “selvagens”, por meio de uma insurreição ativa contra o Um, “o um é o mal” (1990, p. 120) guardaram o seu modo de ser para que a sua sociedade mantivesse sua natureza; mantivesse a igualdade. Os índios da Terra sem Mal, onde nada do que existe pode ser dito um (1990, p. 121) livremente escolhem não servir, não se submeter ao poder do Um, recusando qualquer forma de dominação. Gente que escolheu não os ter porque escolheu a liberdade (CHAUÍ, 2014, p. 124; p. 143).
Não se deve, todavia, compreender essa “gente nova” como um povo futuro, uma nova raça, distinta do homem. Trata-se do homem mesmo, de uma natureza humana que se afirma como outra de uma natureza humana que se esqueceu de si mesma. É como uma resistência ao presente, uma resistência a si mesmo em suas velhas formas já solidificadas. E mais: uma resistência não apenas frente ao grandioso e o visível, mas nas condições mais insignificantes, ante toda e qualquer baixeza e vulgaridade da existência.
A história do capitalismo impede o devir dos povos assujeitados – ele mina as potências políticas de resistência e de luta, estimulando apenas as potências econômicas e de dominação. A nova forma de trabalho hoje é um exemplo disso. Enquanto os índios guaiaquis trabalhavam dois meses a cada quatro anos, o capitalismo do XXI inventou o “home office” ou o trabalho intermitente que anula a vida privada do indivíduo, o colocando à disposição do empregador 24 h por dia em uma lógica de exploração estafante, mas que o empregado acredita ser uma conquista de liberdade.
Nesse sentido, a liberdade é torna-se outro, para se escapar da própria agonia, para resistir à morte, ao intolerável, à vergonha, à servidão. A filosofia, diz Deleuze, é esse lugar do devir outro, do ultrapassamento de todas as atualidades (1992, p. 145).
O Trabalho como forma de escravidão – Paul Lafargue e o direito à preguiça
Paul Lafargue, em 1883, em seu ensaio “O direito à preguiça”, ensina que a luta dos trabalhadores devia ser não pelos direitos humanos ou o direito ao trabalho, mas ao direito ao ócio, à preguiça. Toda técnica, todo desenvolvimento tecnológico deve ser visto não como uma ameaça ao homem, mas como um meio de lhe permitir o ócio e assim, alcançar a verdadeira liberdade. Se as máquinas se aperfeiçoam e eliminam com rapidez o trabalho do homem, o trabalhador deve prolongar o seu descanso na mesma medida e não querer como que rivalizar com a máquina – o que é de uma tolice absurda (1980, p. 31-32).
Ocorre que a moral burguesa e cristã encarna a negação das alegrias e das paixões e condena o homem à escravidão de amar o trabalho até o esgotamento de suas próprias forças vitais. Os homens foram pervertidos pelo dogma do trabalho e daí adveio sua miséria social e individual. Catequizados pela narrativa burguesa que diz: “Trabalhe! Trabalhe para o seu bem estar”, os homens passaram efetivamente a crer nesse princípio. Tanto é assim que mesmo hoje, no século XXI, quando não se vive mais a era do capital produtivo, mas sim do capital financeiro, os homens continuam a lutar para ter ou manter os seus empregos.
Celebrou-se, no século XVIII, como conquista revolucionária, a redução da jornada de trabalho de doze horas, aí incluídos homens, mulheres e crianças, como se isso significasse a liberdade da classe trabalhadora. Lafargue, ironicamente diz: “os materialistas sempre lamentarão que não haja um inferno para nele jogar esses cristãos, esses filantropos, carrascos de infância” (1980, p.22, nota de rodapé).
Lafargue incita os homens a reagirem contra a santificação do trabalho, relacionando-o à causa de toda degeneração intelectual e mesmo de toda deformação orgânica (1980, p. 17). Para ele, o trabalho é a pior das escravidões e para reiterar seu ponto de vista ele se serve do exemplo do criador, que após seis dias de trabalho, descansou por toda a eternidade. “Impedir e não impor o trabalho, isso é que é necessário” (1980, p. 42).
Somente quando se emancipar do trabalho servil o homem poderá ser livre, pois o tempo do trabalho é também o tempo da dor, da miséria e da corrupção (1980, p. 23). Quando se libertar dessa crença, dessa conversão ao trabalho, o homem poderá proclamar o direito à preguiça, não trabalhando mais do que três horas por dia, não fazendo mais nada, só festejando pelo resto do dia e da noite (1980, p. 29).
Diz Lafargue: “se, extirpando do peito o vício que a domina e que avilta sua natureza, a classe operária se levantasse em sua força terrível, não para exigir os Direitos dos homens, que não passam dos direitos da exploração capitalista; não para reivindicar o Direito ao trabalho, que não passa do direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proíba o trabalho além das três horas diárias, a Terra, a velha Terra, tremendo de alegria, sentiria brotar dentro de si um novo universo…” (1980, p. 45. Grifo do autor).
Na condição de liberto, os corpos humanos deixariam de ser debilitados e suas mentes deixariam de ser apequenadas. De posse do direito à preguiça, haveria como se produzir as artes e as virtudes nobres, o que funcionaria como um bálsamo para as angústias humanas (1980, p. 45).
Ailton Krenak, líder indígena, em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, explica que os índios do território brasileiro resistem há mais de 500 anos a esse dogma do trabalho e da escravidão. Para o pensador indígena, a máquina do Estado desde o estado colonial até o estado republicano do XXI atua para desfazer as formas de organização das sociedades indígenas sobreviventes (2019, p. 39). Mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais e colonizantes, esses povos souberam resistir e encontrar um meio, como diz o autor, de “adiar o fim do mundo”.
A resistência dos índios é o ensinamento de que não há uma única maneira de estar na Terra, na existência. Em realidade, há uma concepção dominante da humanidade que é uma concepção castradora, que limita a capacidade de invenção, criação e liberdade humanas, que atualizam e reatualizam a capacidade de servidão voluntária da humanidade. Diz Kranak: “o tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer , tanta fruição de vida” (1980, p. 26-27).
Os índios, em mais de 500 anos de resistência, mostram que ainda que os dominadores odeiem o tipo de cosmos que um povo originário como o povo yanomami é capaz de construir, rico em potência imaginativa, em experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar, de fazer chover, é possível se alimentar dessa criatividade, de por eles se inspirar e com isso adiar o fim do mundo que se apresenta com cada mau encontro. Em outras palavras, e com isso vencer o desejo de escravidão.
Democracia e liberdade
A ideia de La Boétie da solidariedade entre os homens como condição para impedir o risco da tirania, encontra na teoria política de Spinoza um importante desdobramento. Para Spinoza, quando duas pessoas concordam entre si e unem suas forças, isso cria a composição de uma nova natureza, um indivíduo superior, com mais poder conjuntamente do que cada um deles teria sozinho. Logo, a mútua cooperação entre os homens é condição para se viver bem (1994, p. 36), e por conseguinte, para se libertar da condição de escravidão.
Quando o poder está colegiadamente na mãos de toda a sociedade, de modo que a obediência, antes de tudo, seja a si mesmo que ao outro, o homem pode encontrar a liberdade. Se o homem constituir um estado em que a razão da obediência é a sua própria utilidade e não a utilidade de quem ordena; em que a lei suprema é o bem estar de todo o povo e não daquele que manda, pode-se dizer que o homem vive de forma livre. No estado democrático é, então o que mais se aproxima da liberdade própria da natureza, pois nele, “ninguém transfere o seu direito natural para outrem a ponto de este nunca mais precisar de o consultar; transfere-o sim, para a maioria do todo social, de que ele próprio faz parte e, nessa medida, todos continuam iguais, tal como acontecia anteriormente no estado de natureza” (SPINOZA, 1988, p. 315).
Spinoza chega mais longe e diz a democracia é mesmo o regime que melhor se presta à manutenção da liberdade (1988, p. 315), porque sobretudo nele o homem não é coagido a transferir ao outro a sua faculdade de raciocinar livremente, de julgar e pensar o que quiser. Isto é, na democracia cada homem é senhor dos seus próprios pensamentos. Sob a direção da razão, de um entendimento reformado, os homens não combateriam entre si, pois saberiam que pela concordância de todos que o seus conatus e as suas liberdades podem ser expandidos. “É preciso fortalecer o que os homens possuem em comum ou o que compartilham naturalmente sem disputa, pois nisso reside o aumento da via e da liberdade de cada um” (CHAUÍ, 2003, p. 160).
Ou seja, o regime que melhor se aproxima da condição natural dos homens (de serem, por natureza, todos companheiros uns dos outros) é a democracia. Ainda que, como foi dito antes, os homens possam em um regime democrático eleger tiranos, a autêntica democracia, a que fortalece a suas instituições de modo impedir o risco de toda subjugação, é marcada pela igualdade entre os homens, uma vez que nela o sujeito obedece a si mesmo enquanto cidadão e todos os cidadãos possuem a mesma condição política e jurídica, não havendo um que se eleve acima dos demais e se converta em seu senhor. Na democracia o poder não pertence a nenhum indivíduo, nem pode com um deles identificar-se ou encarnar-se. Aqui não pode haver incentivo à imaginação humana que cria homens dotados de qualidades físicas e morais excepcionais que supostamente possuem uma potência desproporcional à potência de cada indivíduo em particular. Ao contrário, é próprio da democracia a promoção da igualdade, o resguardo do companheirismo e da liberdade.
Além disso, na democracia há uma concordância entre os cidadãos do agir comum, mas não do pensar comum, isto é, a democracia seria o regime que garantiria a liberdade do pensamento, onde o homem pode encontrar os meios mais sossegados para dedicar-se aos livros e às teorias, e com isso, compreender como acontecem todas as dominações.
Ser livre é não se deixar seduzir pela dominação
Mas como, afinal, os homens podem ser livres? Como podem fazer para não se deixar seduzir pela vontade de servir? Em outras palavras, como vencer o tirano? La Boétie pergunta se seria possível isso aos homens ou se já estaríamos diante de uma ferida incurável, posto que como diz Spinoza, em toda sociedade trata-se de obedecer (1994, p. 41).
La Boétie conta a história de dois espartanos que foram ao palácio de um persa administrador do rei para todas as cidades da Ásia que ficavam à beira-mar. O persa os recebeu com grande cortesia e amabilidade e lhes perguntou porque recusavam a amizade do rei. Para ele era difícil compreender isso, porque o persa sabia o quanto o rei sabia honrar aqueles que o defendiam e que, certamente, se esses gregos assim agissem, certamente contariam com a mesma honra, se tornando, cada um deles, senhor de uma cidade na Grécia. Os espartanos respondem que os persas desconheciam os bens de que eles gozavam – por certo desfrutavam do favor do rei, mas não da liberdade. Como enuncia Spinoza, é aos escravos e não aos homens livres que damos recompensas por boas conduta. Ocorre que os homens que não chegaram a viver a liberdade não podem perceber que a escravidão é um mal e que as recompensas só interessam a homens não livres.
La Boétie diz que o tirano não precisa ser combatido para ser vencido, isto é, não é preciso despender forças para lhe tirar o poder. O tirano se anularia por si mesmo se os homens não consentirem com a sua servidão, se não renunciarem à sua liberdade. Em outras palavras, não se trata propriamente de fazer algo contra o tirano, mas antes de não fazer algo em seu favor. Diz Chauí; “teria bastado que cada um e todos não permitisse a elevação de um e que, se, por violência, a isso tivesse sido forçados, não lhe dessem mais do que lhe é devido. Teria bastado que cada um se conservasse senhor de si e servo de ninguém para que o desejo heterônomo não pudesse advir” (2014,74).
A servidão só existiria enquanto os homens se fazem dominar, se entregam voluntariamente à dominação. Abandonando sua liberdade, busca a escravidão de modo consentido e cego, não só autorizando o seu próprio mal, mas mesmo o perseguindo. Para deixar essa condição bastaria aos homens não mais querer servir, não mais afirmar esse lugar de submissão, não mais sustentar esse colosso que em vista disso, tombará e se desmachará.
Spinoza faz a mesma pergunta de La Boétie e usa inclusive o mesmo conceito: mau encontro. A ética spinozista é um ensinamento para a libertação dos maus encontros que Deleuze muito bem sintetiza ao perguntar: “como evitar que nos destruamos a nós mesmos e aos outros propagando por toda a parte a nossa própria impotência e nossa própria escravidão, a nossa própria doença, as nossas próprias indigestões, as nossas toxinas e venenos?” (2002, p. 29).
O livre pensar
É próprio do povo, diz La Boétie, ser desconfiado com aquele que o ama e crédulo para com aquele que a engana. Como os homens saberiam então escolher sua liberdade? “Os livros e a doutrina, diz La Boétie, dão aos homens, mais que qualquer outra coisa, o sentido e o entendimento para se reconhecerem e odiar a tirania” (1982, p. 24, grifo nosso). É porque a tirania traz a captura não apenas de bens e direitos, mas sobretudo a captura do pensar. O homem que perdeu o conhecimento, diz La Boétie, não sente mais o seu mal.
Se a tirania se dissipa com a recusa do servir, é preciso acreditar que tal recusa é possível. Mas ela não virá sem a libertação da servidão da opinião. É preciso um desejo de saber que não se proste diante das verdades comumente enunciadas, que não se limite às representações reinantes. Como diz Lefort, o conhecimento como desapego à aparência (1982, p. 129), à opinião. É o chamamento primeiro da filosofia: a necessidade de pensar. O conhecimento como forma de vencer as ficções, porque como ensina Spinoza, “quanto menos a mente compreende, maior poder tem de formar ficções; e quanto mais coisas compreende, mais diminui aquele poder” (1971, p. 58). Mas, uma vez de posse da compreensão das coisas, não é mais possível ao homem formar ideias ficcionais.
A opinião é o reino da insensatez, o reino da ignorância e a fonte das superstições que envolvem e cegam o homem. Eis o mau encontro fundamental, ao qual à filosofia sempre foi imperativo escapar. O filósofo, o amigo da sabedoria, é aquele que sabe o ensinamento de Salomão: “o suplício dos insensatos é a sua insensatez” (apud Spinoza, 1988, p. 174).
Como diz Spinoza, “o entendimento é o melhor do nosso ser” e o esforço humano deve ser o de aperfeiçoá-lo tanto quanto possível, pois aí sim encontrará o seu soberano bem (1988, p. 167). Conhecer é também destruir ou desvendar a imagem que se tem do senhor, é poder compreender como as relações de escravidão e liberdade se estabelecem, é desmistificar as naturalidades e, sobretudo, não se deixar capturar em novos feitiços de desejo de servidão. Como diz Chauí, se, por um lado, desejar servir é sempre possível, é preciso sustentar a convicção de que não servir também é sempre possível (1982, p. 183).
O texto de La Boétie não é tanto um projeto político, mas uma chamado à filosofia, posto que são as ideias que conduzem as ações humanas. O homem do senso comum acredita que suas ideias provém de sua própria mente, de suas reflexões e ponderações, como se genuinamente nele as crenças, os valores, as avaliações tivessem nascido. Em realidade, os homens no senso comum nada mais fazem do que reproduzir ideias já pensadas antes, ideias expressas em grandes sistemas de pensamento produzidas ao longo da história da humanidade. Claro que a quase totalidade dos homens desconhecem os autores e os conceitos em sua origem, mas recepcionam estes conceitos que se vulgarizam e atingem o mundo comum da opinião.
Alguns desses conceitos não passam de percepções superficiais e enganosas que constroem a formação do homem comum e, por isso, ele tendem a aceitá-las como absolutamente naturais. Ideias estas (compartilhadas e repetidas por quase todos os sujeitos) que reforçam a ignorância e, consequentemente, a dominação. Portanto, não há duvidas de que há ideias das quais convém que o homem se liberte.
Assim, a recusa do pensamento escravo é a própria recusa do pensamento sem senhor. Se libertar das ideias é se libertar dos governos, da realidade social, ir além das condições dadas por uma consciência e até mesmo por um corpo. Pensar de forma livre é, sobretudo, pensar sem submissão a uma autoridade que lhe diga o que é pensar.
Por isso Spinoza proporá uma reforma do entendimento, posto que enquanto o pensamento for livre, portanto vital, nada estará comprometido, mas quando deixa de o ser, todas as outras opressões tornam-se igualmente possíveis, e, uma vez realizadas, qualquer ação se torna culpável e toda a vida ameaçada (DELEUZE, 2002, p. 10).
18 Conclusão
Segundo Clastres, se La Boétie se espanta com uma sociedade de servidão voluntária, é porque nos diz que outra experiência política é possível, porque imagina haver uma sociedade em que os homens a ignoraram e conseguiram viver livremente (1982, p. 110).
Se fizermos o esforço de compreender o aparente paradoxo da servidão voluntária, isso implica também, necessariamente, que tenhamos uma firme e inegociável posição contra a servidão voluntária e que isso não seja um ideal ou utopia, mas sim o nosso compromisso de todos os dias.
Esta sociedade sem divisão e, por conseguinte, sem servidão voluntária, não é apenas uma sociedade imaginária que explicaria um modelo edênico ideal. Mesmo que os homens estejam há muito habituados com seu modelo contrário, ela pode retornar como forma de vida real. Ou seja, o homem não estaria destinado a viver sob um regime marcado pela oposição dominante/dominado, não estaria destinado a considerar honroso derramar o sangue e a vida pela vaidade de um. Se houve um mau encontro que levou os homens a esse modo de vida, certamente há como escapar do mau encontro ou buscar um bom encontro, buscar uma forma de sociedade em que haja o livre exercício de relações francas entre iguais e, sobretudo, do acolhimento do livre discernir.
Por isso que na ordem das coisas, primeiro pensar, depois a liberdade; primeiro o livre pensar, depois a sua natural consequência: a libertação de todas as formas de dominação aí incluída a que é oriunda da vontade humana.
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[1] É verdade que em tempo de guerra, o chefe dispõe de um poder considerável sobre o conjunto dos guerreiros. Uma expedição militar é a única circunstância em que o chefe pode exercer um mínimo de autoridade, fundada apenas na sua competência de guerrear. Uma vez terminadas as coisas, qualquer que seja o resultado, o chefe guerreiro volta a ser um chefe sem poder e em nenhuma hipótese o prestígio decorrente da vitória se transforma em autoridade. Ou seja, o modelo de poder coercitivo só é aceito em ocasiões excepcionais, quando o grupo se vê aceito diante de uma ameaça externa. Quando o grupo está em relação consigo mesmo, a conjunção entre poder e coerção desaparece. Inclusive, aqueles chefes que querendo conservar o seu prestígio, quiseram se lançar em guerras desnecessárias e não reconhecidas pela sua sociedade, foram abandonados e morreram na solidão.