Sobre a experiência do pensamento ou Como estudar Filosofia?
Estudar Filosofia é uma decisão curiosa, porque de modo geral, decide-se fazer uma coisa que não se sabe bem o que seja. Quando alguém se dispõe a estudar um campo do saber (na maior parte dos casos) esse alguém tem, ainda que de modo incipiente, uma ideia do que trata aquele campo do saber, qual o seu domínio e quais os seus usos. Com a Filosofia, nada disso acontece. A decisão de estudar filosofia pode vir por uma intuição difusa, por uma curiosidade, por um impulso difícil mesmo de identificar ou reconhecer. Tais motivações podem ser legítimas e de muito boa fé, mas não trazem consigo a compreensão nem do que seja a Filosofia nem de como se deve estudar filosofia.
Para dificultar ainda mais o processo, há uma série de equívocos, preconceitos e estigmas que permeiam o imaginário do senso comum do que seja a Filosofia e de como se deve abordá-la. Há, de modo predominante, uma imagem caricata que a considera um discurso inútil, vazio, por demais abstrato, sem qualquer serventia ou importância; uma imagem que a aparta da vida e das questões vitais, relegando-a, na melhor das hipóteses, a um mero passatempo, a uma excentricidade daqueles que dispõem de ociosidade e gosto erudito para a ela se dedicar.
Ultrapassar essas ignorâncias é imperativo do estudante de Filosofia. Não é possível “amar o saber” e sustentar ou mesmo permanecer passivo diante dessas tolices. Portanto, o compromisso primeiro de quem estuda filosofia é buscar compreender quão falsos e deturpados são esses lugares comuns, repetidos, inclusive, nos meios acadêmicos e intelectuais que, desconhecendo o que seja a Filosofia, nada mais fazem do que reproduzir as caricaturas comuns, contribuindo para reforçar as incompreensões e o obscurantismo.
É uma atenção primeira então do estudante de Filosofia: combater essas falas comuns, porque quando afastamos da Filosofia toda e qualquer imagem que a ela não corresponda, estaremos próximos de entender sua serventia.
Compreender o que seja a Filosofia, qual o seu alcance, sua importância, é, sem dúvida, tarefa imprescindível. Mas, para tal, é preciso antes saber como estudar Filosofia. Ou seja, aquele que vai ler um texto de um filósofo, seja ele qual for, como deve fazê-lo? Qual a postura que um estudante deve ter diante de um construção filosófica? Somente sabendo como estudar é possível ao aluno construir uma imagem da Filosofia fora dos clichês e diminuições habituais. Quero dizer com isso que a compreensão do que seja a Filosofia, sua necessidade, sua presença nas diversas formas de saber só poderá advir se houver uma mudança na maneira como o estudante se porta diante da leitura de um texto filosófico.
A primeira questão a se compreender é que a filosofia não é um discurso portador de verdades. Ou seja, a leitura de um texto filosófico não pode ser guiada pela busca de uma grande revelação: a descoberta de verdades fundamentais, ocultas ou desconhecidas a quem não se dispõe a tarefa de filosofar. Embora a busca da verdade possa parecer o mais óbvio e o mais natural caminho filosófico (o pensamento possui a verdade e o estudante quer buscar a verdade), é preciso compreender que o conceito de verdade é um conceito entre outros e que se ele aparece em determinado momento histórico, é em razão dos problemas ali colocados. Sem dúvida alguma o conceito de verdade faz parte da Filosofia, mas a sua natureza não pode ser reduzida a um aspecto problemático e conceitual. O que a Filosofia pode proporcionar ao aluno é uma experiência infinitamente mais rica e surpreendente; a mais radical, a mais atordoante das experiências. A redução da Filosofia a um problema ou mesmo a uma solução teórica é uma forma de rebaixar o pensamento, de não considerar tudo o que ele pode realizar.
Nesse sentido, o negativo do pensamento é tudo o que faz da Filosofia uma forma baixa de pensar, tudo o que diminui a sua potência e o seu alcance, tudo o que não a reconhece, como diz Aristóteles, “a ciência mais elevada”. Entretanto, é preciso dizer que o que pode a Filosofia, a descoberta da sua magnitude é alguma coisa que vem com o tempo, com a maturação teórica, com o caminhar. Essa descoberta revoluciona a vida do estudante, altera por completo sua compreensão do mundo e é o que lhe permite sair do senso comum, mas ela é um processo e não uma obviedade.
Por essa razão, o estado negativo de uma construção teórica não é o erro. E, por conseguinte, a história da filosofia não pode ser vista como uma disputa escolar, onde claramente pode-se distinguir os pensadores certos dos pensadores errados. Estudar não é tomar partido de um pensador ; não é tornar-se defensor de uma escola. Os filósofos são suficientemente importantes do ponto de vista da história da civilização para necessitarem de um exército de apoiadores. Um Filósofo, digno deste nome, já cumpriu, perante ao mundo sua rara e grandiosa tarefa, e as adesões posteriores (ou mesmo as contemporâneas), não altera em nada o que ele significou e significa na história da Filosofia. Um outro equívoco recorrente do estudante de Filosofia é desenvolver o hábito de contrapor o que um autor diz com o que ele, leitor, sabe ou crê que sabe. É uma prática das mais inúteis, essa em que o aluno lê um texto e o divide em enunciados que ele concorda e enunciados que ele discorda, como que havendo no texto dois caminhos: um caminho da verdade e outro caminho da falsidade, sendo o leitor aquele que demarca essas trilhas. Aqui o estudante é um juiz implacável, sempre pronto a discernir o que é ou não adequado, o que é ou não um erro.
Como diz Nietzsche, cada um de nós age como camelo (ou burro) quando carrega nas costas a imensa bagagem que reuniu durante toda a vida. Cada sujeito possui crenças, valores, ideias, conhecimento técnico, gostos, aspirações e referências que compõem a pesada carga que cada um carrega consigo, tornando sua caminhada difícil e pesarosa. Para estudar Filosofia, é preciso, antes de tudo, se não jogar essa carga fora, pelo menos por um tempo aliviar-se do seu peso. Pousar essa carga para não trazer a cada enunciado lido a reatividade do julgamento; para sair desse lugar de juiz competente para julgar tudo o que foi construído em 2500 anos de história da Filosofia (dá para perceber o ridículo que é isso, não?).
Se não são verdades, o que um filósofo ou uma teoria filosófica nos traz? Todo filósofo expressa uma experiência do pensamento. Todo filósofo constrói uma imagem do que seja pensar e do alcance que pensar possa ter. Todo filósofo oferece, por meio de sua construção conceitual, um caminho para as potências do espírito. O que isso quer dizer? O homem, embora viva atrelado ao senso comum e tenha, de forma mais imediata sua atenção e seu esforço mental voltado para as coisas do seu interesse, o que o leva a construir um conhecimento útil, prático e claramente importante para sua sobrevivência e bem-estar, ele tem a possibilidade de colocar o seu espírito a serviço de potências que extrapolam os interesses corriqueiros e vulgares. O homem tem, para além das práticas interessadas que o caracterizam, a possibilidade de experimentar usos por ele insuspeitos, faculdades que lhe trazem um verdadeiro clarão, como diz Leibniz.
É preciso aqui esclarecer que pensar não é raciocinar. Usar a razão a serviço do intelecto, realizar inferências, seguir regras da inteligência é uma das faculdades que o homem é capaz de realizar. Calcular, medir, comparar, etc, são outras atividades intelectuais, necessárias ao homem e ao seu modo de sobrevivência, mas que não esgotam o que seja a atividade de pensar. O que a Filosofia implica está além de uma verdade lógica ou uma construção da inteligência.
Aqui aparece a primeira grande dificuldade, pois como não podemos prescindir da inteligência, como nos habituamos com o seu uso contínuo, parece que todas as construções do pensamento se identificam com ela. Mas não. O homem tem a possibilidade de pensar: de compreender a vida, sua própria natureza e suas relações constitutivas; compreender inclusive como o intelecto possui regras que limitam a própria atividade de pensar.
Portanto, pensar é a atividade maior que o homem pode experimentar. Cada filósofo, porém, produz uma experiência de pensamento diversa, vale dizer, uma compreensão distinta do funcionamento da vida, da legitimidade ou não dos instrumentos e métodos, do alcance que isso tem para o próprio homem.
O que significa pensar? Como se orientar no pensamento? O que buscar com a atividade de pensar? O que conseguir realizar com a atividade de pensar? Seguir essa experiência do pensamento me leva onde? Me faz compreender o quê? Me permite que exercício de liberdade? Essas são as questões que devem guiar o percurso de um jovem estudante. Ao ler um autor, o estudante deve tentar compreender o que propõe essa experiência do pensamento. De onde ela parte e o que ela permite a ele pensar e viver. Tudo isso sem julgamentos ou procura de salvação.
Ocorre que daí advém uma nova dificuldade: essa experiência do pensamento não se manifesta de forma clara e imediata ao leitor (em realidade, como diz Apolônio de Carvalho, é preciso não ter pressa). Ao contrário, o trabalho de compreensão de uma experiência do pensamento pode ser o trabalho de toda uma vida. É o que nos permite afirmar que é difícil a tarefa de pensar (muitas vezes chega-se a uma quase compreensão). E por que é difícil? Em primeiro lugar, existe a complexidade da letra, como diz Bergson. O estilo e a erudição de um filósofo podem tornar sua filosofia mais ou menos difícil de ser assimilada; em segundo lugar, a deficiência do leitor: aquele que desconhece a história da filosofia, desconhece a cultura, a história, as ideias, outros autores, isto é, aquele de pouca cultura filosófica, que não sabe manejar bem os conceitos, terá ainda mais dificuldade de entender o que está sendo dito. Nesse sentido não existe texto llido, mas texto que se está continuamente lendo, texto que a cada vez que é lido revela mais um pouco de si ou mesmo uma compreensão distinta da anterior; em terceiro lugar, tais construções não só não estão disseminadas e reproduzidas, como muitas vezes se opõem ao disseminado no sendo comum. Em resumo: há uma complexidade do texto, um despreparo do leitor e reflexões insuspeitas ao homem vulgar.
Além disso, é preciso esclarecer que pensar não é uma atividade natural de uma faculdade, uma atividade natural a todo ser pensante. Em realidade, pensar é uma violência que arranca o sujeito do seu lugar de senso comum, que o arranca de um estupor natural. Bergson diz que para pensar é preciso violentar o espírito: tirar o espírito da comodidade dos seus hábitos a fim de apreender uma experiência original.
Se a bagagem que cada aluno carrega não for suficientemente pousada, essa incompreensão pode se revelar incontornável, porque muitas vezes são as suas crenças, seus valores, seus dogmas, seus hábitos mentais que impedem a chegada da compreensão. Em consequência daí muitos autores são desprezados ou taxados de obscuros, quando em realidade foi o leitor que não pode, por força do que carrega, adentrar em uma nova experiência do pensamento. Com frequência, não se pode apreciar algo quando seu valor é desconhecido. Lamentavelmente muitos estudantes deixam de desfrutar de obras e autores em razão da incapacidade de nelas penetrar.
Outra vulgaridade própria dos esteriótipos filosóficos é relativa à rivalidade filosófica. Com frequência acredita-se que a filosofia é palco de uma disputa escolar e que o iniciante na Filosofia deve escolher um lado que deve defender com todo afinco, estando sempre pronto a atacar e menosprezar seus pretensos adversários. Tudo isso é, uma grande tolice: não existem filósofos certos ou errados; não há os que filosofam do lado bom e os que filosofam do lado equivocado. Cada autor apresenta a sua motivação e, obviamente, pode acontecer da motivação de um autor me encantar, me maravilhar e, nesse caso, sua motivação se torna também a minha – quando isso acontece, devo carregar esse filósofo pela vida afora. Mas isso não significa dizer que devo me dedicar a destratar os que não me causam o mesmo efeito. Quando um autor não lhe disser nada, quando seus conceitos não lhe possibilitarem nenhuma abertura para a clareza da vida e do mundo, tudo o que se tem a fazer é deixar seus livros de lado e buscar os autores que tenham uma imagem mais luminosa. Tudo isso de forma tranquila e pacífica, sem acusações ou desprezos.
Essas orientações devem funcionar como atalhos para mais facilmente se descobrir a alegria de pensar. A pergunta definitiva aqui é: o quantum de vida podemos obter, ao fazer da filosofia o nosso afeto principal?