A insuficiência da Inteligência
Embora o pensamento moderno e contemporâneo reconheçam na ciência o campo de saber legítimo para a produção do conhecimento, o filósofo francês Henri Bergson se empenha em mostrar os limites da prática científica e, por conseguinte, as ilusões advindas de suas ambições e resultados.
1 A modernidade e o nascimento do cientificismo
O século XVII vai marcar “o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada da natureza na ordem científica” (FOUCAULT, 1990, p. 69-70). No nascer da Modernidade, o homem encontra-se só, privado do socorro do cosmos como uma ordem harmoniosa e bela, tal como compreendiam os gregos, e de Deus. Assiste-se a uma suspensão na crença religiosa da verdade revelada e, por isso, passa-se a buscar novos fundamentos para a construção da verdade.
O novo odos, o novo caminho para a ciência será o próprio sujeito – o debate filosófico moderno começa com o sujeito colocado no centro da produção do conhecimento. Os homens terão que estar preparados para encontrar por si mesmos e em si mesmos as novas referências para o conhecimento e, por isso, o sujeito será aquele que, ao mesmo tempo, duvida das grandes ideias metafísicas e se apresenta como o construtor das novas certezas, capaz de realizar a pretensão de uma ciência universal.
A tarefa da ciência moderna não residirá mais na contemplação passiva de uma beleza dada, já inscrita no mundo, mas no trabalho, na elaboração ativa, ou na construção de leis que permitam dar a um universo desencantado um sentido que, a princípio, ele não tem mais (FERRY, 2007, p. 122). O homem de ciência manipula a realidade, tenta conferir à realidade uma proximidade máxima em relação a uma descrição teórica. Prepara-se o fenômeno estudado, purifica-o, isola-o até parecer uma situação ideal, inteligível por excelência, que encarne a hipótese teórica que guia a manipulação. A experiência interroga a natureza, mas à maneira de um juiz, em nome de princípios postulados. Trata-se de decifrar o fenômeno segundo o texto matemático que a hipótese enunciou (KOYRÉ, 1991, p. 54).
Ou seja, assiste-se a uma dupla inovação: a ciência experimental tem a prerrogativa de confirmar ou invalidar as conclusões do raciocínio dedutivo e, além disso, ser a fonte de verdades novas e importantes que não podem ser descobertas por outros meios. Eis o que marca a razão transcendental, criadora autônoma do conhecimento e julgadora da validade ou não das verdades que ela mesma enunciou.
Ferdinand Alquié afirma que essa concepção resulta do estado de espírito técnico próprio do século XVII, espírito esse que vai favorecer o desenvolvimento das ciências: “trata-se de dominar a natureza, não de amá-la; de lhe impor os fins do homem, e não de lhe reconhecer fins próprios” (1993, p. 40). Tornar o homem senhor e possuidor da natureza: eis o que está na origem do pensamento das luzes e do desenvolvimento da ciência e da técnica dos séculos posteriores.
Com Kant o homem é conduzido para época do sapere aude, da audácia do saber. Essa audácia não é apenas relativa ao descobrimento de novas verdades, de novas ideias. A audácia se revelará muito maior: significa que o próprio sujeito vai dirigir o curso do conhecimento – ele não será mais um decifrador, mas sim um produtor do conhecimento; e, mais ainda, significa que o próprio sujeito é a única instância legítima para julgar aquilo que é produto de suas próprias faculdades. Nada, a não ser a própria razão, é capaz de estabelecer os valores morais, as verdades científicas e a apreciação estética, sendo, em segunda instância, garantidora da adequação e confiabilidade do que daí resulta.
Foucault, em As palavras e as coisas, fala desse momento em que surge a ideia moderna de homem. Esta ideia possui a ambígua posição de objeto para um saber e de sujeito que conhece. O homem é o espectador olhado, como retrata o famoso quadro Las meninas, de Velásquez. Nele, tanto o pintor quanto o modelo veem e são vistos: aquele “que olha e aquilo que é olhado permutam-se incessantemente. O espectador e a obra, o sujeito e o objeto, invertem o seu papel ao infinito” (1990, p. 21). Esse estranho duplo que ao mesmo tempo vê e é visto, é o que se chama homem e seu lugar é o desta reduplicação empírico-transcendental.
Kant diz que a idade das luzes (a aufklãrung) é a saída do homem de sua minoridade (1995, p. 11). Num primeiro momento, a função da razão é apartar o espírito de toda crença fundada sobre o testemunho da revelação, da autoridade religiosa. Mas, após esse trabalho, ela própria se dá uma tarefa mais construtiva: todo saber será constituído a partir de regras que ela mesma dita. E daí que todo fenômeno deve poder se explicar racionalmente.
O homem vai pretender controlar e dominar o mundo, estabelecendo leis gerais do universo, como as leis de Newton na física e de Lavoisier na química, regularidades que serão expressas em linguagem matemática. É grande a fé na razão! As leis constituem a verdade última do universo e descrevem o mundo em termos de trajetórias determinadas e reversíveis. Como dizem Prigogine e Stengers, “Newton é o novo Moisés a quem as tábuas da lei foram reveladas” (1984, p. 19).
A autonomia da razão significa dizer que o homem é quem comanda. O pensamento que avança para o século XVIII, depois da Modernidade, estabelece que o homem só pode confiar em si mesmo: eis o que se chama antropocentrismo, base do novo paradigma que elege a ciência como um novo campo de referência na prática do saber. A ciência, como produção humana, será doravante reconhecida como um saber não supersticioso, um saber claro e distinto, sustentado em demonstrações lógicas e em cálculos, passível de experimentação e comprovação racional.
Data da modernidade a distinção da filosofia e das ciências naturais, distinção essa que esvaziou a filosofia, a relegando a uma prática vazia e obscura, voltada para uma especulação sem sentido e sem a urgência que os novos tempos anunciavam. Será, pois, traço distintivo de todo homem de ciência que se preze, dizer-se não metafísico, a fim de que seu discurso não possa ser confundido com o filosófico, e uma vez suficientemente distinto deste, receber a apreciação digna daquilo que de mais elevado pode produzir o pensamento humano.
2 A ciência como instrumento da ação do homem
Bom, o pensamento moderno é dominado pelo cientificismo, pela ideia de que a explicação científica comporta a precisão absoluta e uma evidência completa, o que satisfaz plenamente o sujeito, orgulhoso do que vem a ser uma construção sua, sem o auxílio ou intervenções transcendentes. A razão humana, incuravelmente presunçosa, imagina possuir por direito de nascimento (inato) ou por direito de conquista (adquirido) todos os elementos essenciais do conhecimento da verdade e é isso que institui a sua prática científica.
Ora, é preciso então investigar o que é a prática científica. O que significa o modo de proceder científico? Como efetivamente ele se caracteriza? E mais: qual o seu papel? O que ela busca realizar?
Aristóteles, logo na primeira linha de sua Metafísica, afirma todos os homens, por natureza, tendem ao saber. Há um pressuposto ingênuo que perpassa toda a história ocidental: o instinto do conhecimento e da verdade é natural ao homem. Após o domínio cientificista na modernidade, acrescentou-se um novo pressuposto, tanto ingênuo quanto, de que o discurso científico é o único discurso verdadeiro. Ora, não é exatamente o instinto da verdade que se encontra no homem, mas antes um instinto de crer na verdade (NIETZSCHE, 1984, 180, p. 106). O que ocorre é que o discurso científico almeja produzir verdades. A ambição científica, e isso desde os gregos e não apenas desde a modernidade, é a de produção de um discurso universal, inequívoco, que tira o homem do campo confuso e múltiplo da opinião. Châtelet diz que Platão é um paranóico, porque um homem de ambições desmesuradas (1997, p. 32), um homem que afirma ser possível sair do erro e do engano e atingir com segurança a verdade. Essa é competência da razão que, a partir da modernidade se autonomizará de toda transcendência. Então, não se trata de dizer que o discurso científico é o discurso verdadeiro; mas antes, que o discurso científico, possui a verdade como alvo e ambição.
E por que a ciência tem esse interesse? Porque a ciência tem uma função utilitária, isto é, uma função útil à vida do homem: a função da previsão. Para cumprir esta função a ciência se serve da faculdade da inteligência, faculdade esta que dirige a conduta do homem frente ao meio que o cerca, frente às condições de existência que lhe são dadas. É, como chama Nietzsche, um instinto desenfreado esse o do conhecimento (1984, 37, p. 28). O ato primeiro da inteligência é a fabricação de conceitos: ideias gerais, abstrações, sínteses da multiplicidade. Diz Bergson: “Formar uma ideia geral é abstrair das coisas diversas e cambiantes um aspecto comum que não muda ou que pelo menos oferece para a nossa ação um flanco invariável” (BERGSON, 2006b, p. 108).
A inteligência é um instrumento do homem para sua segurança e sobrevivência. Ela triunfa quando constrói um caminho utilitário, um caminho onde ele pode apoiar o seu agir, onde pode prever se os elementos dados em cada situação lhe são ou não favoráveis. “A ciência é a auxiliar da ação. E a ação visa um resultado. A inteligência científica pergunta-se portanto o que precisará ser feito para que um certo resultado desejado seja atingido ou, de modo mais geral, que condições é preciso obter para que um certo fenômeno se produza. Vai de um arranjo das coisas para um rearranjo, de uma simultaneidade para uma simultaneidade” (BERGSON, 2006c, p. 144).
Para prever, ela extrai e retém do mundo o que pode ser repetido e calculado (BERGSON, 2006a, p. 5), o que pode ser estabelecido como um enunciado duradouro, sempre idêntico. Por conseguinte, o fluir que não se repete é por ela eliminado e o mundo inerte torna-se ao mesmo tempo, o resultado de sua abstração e o seu ideal. Ela reduz o mundo para facilitar a influência do sujeito sobre as coisas. A ciência se destina a preparar e a iluminar a ação do homem sobre as coisas, pretende compor um mundo no qual o homem possa agir, mas para a comodidade desta ação, alguns efeitos devem ser escamoteados (BERGSON, 2006a, p. 6). Ora, para tratar da atividade própria do homem e das condições nas quais ela se exerce, ao invés de se abarcar a totalidade da realidade, a ciência desvia o olhar daquilo que não é de seu interesse, do que não serve às exigências fundamentais da vida. Desse modo, a faculdade de conhecer pode ser compreendida como “uma potência de extrair o que há de estabilidade e de regularidade no fluxo do real” (BERGSON, 2006b, p. 108).
Ocorre que essa ação do homem só pode se dar sobre pontos fixos, logo, é a fixidez que a inteligência procura (BERGSON, 2006a, p. 8; 9). O indivíduo supõe que quando estuda algo, este algo permanece estaticamente o que é, porque a vida estática se presta melhor às exigências da lógica e da linguagem. Transição e mobilidade não podem estabelecer o idêntico, logo o verídico, de modo que são deixadas pela inteligência. Toda representação intelectual busca paradas, retenções, justaposições, posições, descontinuidades; todo o resto é negligenciado. Conclusão: a inteligência não representa o mundo, mas sim o que lhe convém representar.
A imobilidade é uma necessidade do sujeito e quanto mais ele conseguir representar o mundo por pressupostos de imobilidade, melhor acredita que o compreende (BERGSON, 2006d, p. 165). Quanto mais o homem estabelece o estável, mais acredita triunfar na compreensão da natureza e, de invenção em invenção, ele caminha, certo de que a experiência lhe dá razão.
Ao invés de ler a realidade como uma duração, isto é, como uma continuidade indivisível de movimento, como um fluir dinâmico e ininterrupto, a inteligência capta instantâneos que se prestam às exigências de seu interesse e podem calculados e expressos na linguagem corrente. “A inteligência deforma, transforma, constrói seu objeto ou só toca a sua superfície ou só apreende sua aparência” (BERGSON, 2006a, p. 37). Em outras palavras, ela manipula a matéria, mas não lhe toca o fundo.
A inteligência só se sente à vontade diante da matéria inerte. Claro, o homem deseja tirar partido da matéria, mas se esta se mostrar movente, diferente a cada instante, imprevisível em suas expressões, como o homem realizará o que deseja? Para guiar a ação do seu corpo sobre os corpos circundantes o homem fabricou instrumentos e a ciência levou este trabalho o mais longe que pode.(BERGSON, 2006a, p. 36-37). O que o homem objetiva é se assenhorar da matéria, preparar a sua ação sobre ela, garantir-lhe a efetividade de sua autoridade. Assim, o valor que uma teoria científica tem e, por conseguinte, a confiança que inspira está diretamente ligado à solidez do poder que ela promete ao homem (BERGSON, 2006a, p. 37).
Para servir ao homem, a inteligência constrói ideias gerais, abstrações intelectuais cujo conteúdo pode ser conhecido por todos os homens e se mostram necessários para a sua vida. São interesses que, embora atendam ao indivíduo e à sociedade, são artifíciosos; são produções intelectuais que possuem uma serventia, mas que não correspondem ao funcionamento da vida, do mundo, do universo. Por uma inversão interesseira, aquilo que é necessário se torna o real; o que é útil ao homem se torna a legítima face da vida.
A ciência necessita que o seu objeto seja estável, caso contrário não pode realizar sua base sólida de operação conceitual. Ao estudar qualquer ato mental, a ciência necessita supor que ele permaneça o que é, sendo toda variação encontrada, considerada uma multiplicidade quantitativa, e a análise final consideraria seus elementos imutáveis. Assim, o resultado da investigação científica é um ponto de vista sobre as coisas, em que sua organização real é substituída por reconstituição esquemática que responde à uma escolha, que recorta do objeto o que no homem desperta o seu interesse particular. Diz Bergson: “geralmente, não visamos conhecer por conhecer, mas conhecer para tomar um partido, para extrair um proveito, enfim, para satisfazer um interesse” (2006e, p. 205). Ao olhar um objeto, o homem, antes de tudo, se pergunta o que deve fazer com ele e o que ele pode fazer pelo homem, isto é, que gênero de ação ou atitude é possível (BERGSON, 2006e, p. 206). Em outras palavras, o conhecimento produzido é um conhecimento orientado em certa direção, ele revela uma análise do proveito que o homem pode extrair do que o cerca. Ocorre que o sujeito considera esses esquemas, que servem aos seus anseios adaptativos, definitivos. Ele acredita que esse resultado esquemático efetivamente reconstitui o real, isto é, que a vida obedece a esse modo de ver as coisas que é típica da inteligência, e se afeiçoa a esta imagem fictícia do universo.
A crença espontânea do senso comum é que a ciência domina todos os aspectos que se propõe estudar, quando, na realidade, ela recompõe o mundo artificialmente, ela o deforma. Esta recomposição “corresponde a um recorte da realidade segundo as linhas que cabe seguir para agir comodamente sobre ela. O mais das vezes, distribuem os objetos e os fatos segundo a vantagem que deles podemos extrair, jogando atabalhoadamente no mesmo compartimento intelectual tudo o que diz respeito à mesma necessidade” (BERGSON, 2006a, p. 34).
Daí Nietzsche dizer que o entendimento do homem é uma força de superfície, uma força superficial: seu pensar é um classificar, um nomear, isto é, “qualquer coisa que diga respeito ao arbitrário humano e não atinge a própria coisa” (1984, 54, p. 37).
O espírito humano tem a irresistível tendência de considerar que quanto mais uma ideia serve ao homem, mais é considerada clara e legítima (BERGSON, 2006e, p. 212). Desse modo, forma-se um círculo vicioso entre um modo de conceber a realidade (por meio de paradas e imobilidades) e as ideias cientificamente respeitáveis: um reforça o outro e durante toda a história do pensamento ocidental esse reforço fez construir uma imagem clássica que penetra todos os campos do saber, imagem esta que despreza as nuances e gradações da natureza.
3 A autoadulação do sujeito
A inteligência se habituou a operar assim, a serviço da vida prática, eliminando o que há de vivo e fluido, o que há de múltiplo e criador. Ao contrário, o rigor e a admiração que as construções intelectuais recebem residem na adesão imediata, sem esforço, que o homem comum lhe devota. Em realidade, toda prática intelectual é uma prática de contentamento do e para o próprio homem. Em uma palavra, uma autoadulação.
Sendo esquemática, simbólica e artificial, essa forma de saber sempre fracassará. Por mais confiante que esteja o homem diante de suas verdades, cedo ou tarde ele terá que admitir sua impotência e seu fracasso, porque a realidade é, antes de tudo, mobilidade. “Não existem coisas feitas, mas apenas coisas que se fazem, nada de estados que se mantêm, mas apenas estados que mudam. O repouso nunca é mais do que aparente, ou antes, relativo… Toda realidade é, portanto, tendência, se conviermos em chamar tendência uma mudança de direção em estado nascente” (BERGSON, 2006e, p. 218-219).
Há outras faculdades no homem que não estão a serviço da utilidade prática e que são capazes de apreender a vida em sua complexidade múltipla e movente, mas para que tal faculdade possa aflorar, é necessário se dedicar não ao que é útil à ação humana. Enquanto a vida estiver contida pelas exigências do intelecto o pensamento não pode aflorar. Só ultrapassando os interesses da prática humana que o pensamento pode nascer. É nesse sentido que Heidegger afirma: não começamos a pensar ainda (2002, p. 111 e seguintes).
O que o homem comumente acredita ser pensar é uma reflexão para a ação. E é nesses moldes que a inteligência reina absoluta. Mas pensar é outra coisa. Entre a realidade concreta e a reconstrução artificiosa da ciência, que distância! (BERGSON, 2006a, p. 93). “A inteligência inteiramente pura é um encolhimento de uma potência mais vasta” (BERGSON, 1979, p. 50) – entre a criação contínua de imprevisível novidade que desenrola-se no universo e a representação pobre e esquemática da inteligência há uma brutal diferença.
Não se percebe essa diferença porque o homem como que se encontra hipnotizado frente aos poderes da ciência e da inteligência. Amoldado à imagem de um universo artificial, autoadulado pelo que constrói, com facilidade ignora a novidade sempre renascente, a movente originalidade das coisas. Em uma atitude de certo modo delirante, o intelecto se impõe sobre a vida, fixando seus interesses e, no processo de autoadulação que o caracteriza, acredita ter o melhor e o mais claro domínio do que ela é, quando, em realidade, apenas formula o que pede suas exigências próprias e o que o seu entendimento suporta demonstrar.
4 Violentar o espírito
A questão é que todo conhecimento é sempre um ponto de vista do finito, o que nada mais é do que uma ilusão. Como diz Paul Klee, “em todo o universo, o que se dá é o movimento. O repouso que tem lugar na Terra não passa de um entrave ocasional da matéria. Considerar essa estaticidade como um estado primordial é um engano” (KLEE, 2001, p. 46). Se abandonarmos as estruturas finitas e nos encaminharmos para o infinito, perdemos o determinismo, a previsibilidade, os fins, a funcionalidade, que são o apoio do homem do conhecimento. A grande tarefa do filósofo do futuro é se manter de pé sem esse apoio (NIETZSCHE, 1984, 120, p. 62), mesmo porque o apoio não se sustenta, ele acaba por ruir por si mesmo.
Em razão do fracasso das ciências positivas, faz-se necessário violentar o espírito, tirá-lo da comodidade de seus interesses a fim de apreender a realidade em sua natureza original. Bergson diz que a filosofia é um esforço para ultrapassar a condição humana (2006e, p. 225), porque a condição humana é a condição do entendimento, dos conceitos fixos, que tudo transforma em imobilidade. Somente escapando dos seus hábitos, seus limites e necessidades o homem conseguirá produzir um conhecimento autêntico da vida e não um arremedo dissimulado e disfarçado de autêntico. Porque esse arranjo não se impõe ao sujeito, mas antes, dele provém. Ele não é uma naturalidade, mas é construído pelo sujeito.
A representação mecanicista restringe a atividade total da vida à forma de certa atividade humana, que não passa de uma manifestação parcial e local, resíduo da operação vital (BERGSON, 1979, p. 9). Assim, permanecendo sempre encerrado em si, o homem não tem clareza do que se passa na natureza e, por isso, pensar é um esforço: esforço de abandono da condição orgânicas, das exigências fundamentais que o caracteriza e esforço de dilatação para compreender o que contraria as suas próprias regras e critérios intelectuais.
Os esquemas demasiadamente estreitos e rígidos da inteligência fatalmente redundam em contradições com as quais o sujeito não consegue lidar. Humilhada diante do incognoscível, a orgulhosa inteligência experimenta a sua impotência. A modernidade é o século da autonomia do homem, mas se este permanecer encerrado nele mesmo, não poderá jamais pensar.
Muitas coisas escapam ao nosso olhar. Como diz Nietzsche, vivemos graças ao caráter superficial do nosso intelecto, numa ilusão perpetua (1984, 51, p. 35). “O nosso entendimento é uma força de superfície, é superficial… Conhece por meio de conceitos: o nosso pensar é um classificar, um nomear, logo qualquer coisa que diz respeito ao arbitrário humano e não atinge a própria coisa” (1984, 54 p. 37).
Dessa maneira, o processo do conhecimento seria um esforço de atenção ao sujeito e não um encontro com a natureza das coisas. No processo de abstração próprio da razão há um afastamento do real e uma aproximação de uma generalidade que só existe na mente e na linguagem. Ele serve ao indivíduo humano, mas dista da essência da vida. Vivendo no domínio do intelecto, vive-se numa eterna ilusão. Para se chegar à libertação progressiva do que é demasiado antropomórfico, para ser receptivo a isso, é preciso ter conhecido com clareza a insuficiência da vida intelectiva e ter compreendido que a vida transborda a inteligência.
Poder-se-ia objetar que o homem não tem como ultrapassar a inteligência, dado que é com ela e através dela que se considera todas as formas da consciência. Ocorre que em volta do nosso pensamento conceitual e lógico, resta “uma nebulosidade vaga, feita da mesma substância e às custas da qual se constitui o núcleo luminoso a que chamamos inteligência. Nessa franja residem certas potências complementares do entendimento, potências das quais temos apenas um sentimento confuso quando permanecemos encerrados em nós” (BERGSON, 1979, p. 10).
É necessário uma teoria crítica do conhecimento e não uma aceitação passiva dos conceitos que o entendimento põe à disposição do homem.
5 Por uma nova ciência e uma nova metafísica.
Não se trata de desprezar ou diminuir a ciência ou a inteligência. Elas cumprem a função a que se pretendem. Trata-se sim de dizer que ao lado delas, outra faculdade e outro modo de pensar podem levar o homem a pensar, a compreender o funcionamento da natureza, a simpatizar com a vida, para além de seus interesses utilitários e diminutivos.
Referências
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PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. A nova aliança. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984.