Unidade Dinâmica: passos para uma anarquia sagrada
Deixei de lado a dualidade,
Vejo os mundos num só.
Procuro o Um, conheço o Um, vejo o Um, invoco o Um.
Ele é o Primeiro e o Último, o exterior e o interior.
– Nada existe senão Ele.
Rumi
Há uma vertigem no pensamento. Nos vincos onde o racional e a pura criação bifurcariam, emergem saberes tanto técnicos quanto poéticos, livres da ilusão da pureza e da famigerada prisão que foi chamada de “disciplina”. Até o científico e o sagrado ensaiam ressonâncias mais intensas.
Nunca foi vista uma disciplina andando solta por aí. Vejamos o caso da matemática. Diversos matemáticos platônicos – ou, quem sabe, com um amor platônico pela matemática – afirmam que ela seja eterna, imutável e que já esteja totalmente pronta, esperando apenas que seja “descoberta”. Ora, alguém já viu a tal matemática pura? Essa falsa entidade foi alucinada. A matemática passa ao longo de um contínuo que envolve um matemático e um problema, sua calculadora e/ou papel e lápis; um físico e sua busca pela apreensão do cosmos; um engenheiro com o prédio que está no solo e no mundo. A matemática, enquanto criação, passa por aí, está aí, sempre junto a alguma coisa (ROQUE, 2012). Exemplos similares abundam – qualquer ideia que se especule como “pura”, boiando em algum Mundo das Ideias.
Se abandonamos as disciplinas, abraçamos os saberes, sob a noção de que o saber seja vital; ele se dá na vida. Buscar um saber “puro” no Mundo das Ideias é tarefa infrutífera. Estamos, aqui, interessados no que está na vida, apreendendo que o “além da vida” é uma inexistência, uma contradição. Se há só um mundo, que é a vida, e todas as coisas ocorrem nele, estaremos postulando uma Unidade? Eis evidenciado o nosso problema.
É preciso recorrer à filosofia, especificamente àquelas filosofias em que se reconheçam saberes. Encontramos, então, a existência de uma espécie de “quatérnio sagrado”, que nos fornece uma itinerância singular e útil ao nosso problema. Estamos falando da bela linha de força Plotino-Giordano Bruno-Spinoza-Bergson. Vejamos o que ela expressa: Plotino (2010) criou um sistema contínuo em que o Uno e Belo (Não-ser) dobram-se sobre si e geram a Anima Mundi (transcendência), cujas almas se dobram sobre si e encarnam nos corpos (imanência). Giordano Bruno (2014) trouxe esse contínuo para a imanência, postulando um universo infinito, porém imutável. Spinoza (2008), a partir de um Deus imutável, faz emergirem dele suas expressões mutáveis; e Bergson (2005; 2006) retoma Deus, porém enquanto mutável, abandonando de vez qualquer resquício de imutabilidade, o que ele denomina “mudança sem suporte”.
Esse quatérnio sagrado conceituou acerca da coexistência do um e do múltiplo. Deleuze e Guattari (1995) desdobraram tal coexistência, des-dobrando a multiplicidade como substantivo, desprezando sua concepção como adjetivo. Neste texto, abordaremos a multiplicidade substantiva de outra forma. Nosso problema é realocar a questão da coexistência do um e do múltiplo no âmbito do sagrado.
O que apreendemos como “sagrado”? Desviaremos de um histórico triste do termo, para ficar longe de dogmas religiosos. A apreensão do sagrado se explicitará ao longo do texto, mas, para compreendê-lo, é relevante que o texto seja recebido de modo diferente de um “conhecimento”: desconsideramos um saber “sobre” o mundo, apostando em um saber no mundo, mundano. Um saber vital, um texto vital. Por isso, convidamos a uma leitura meditativa, comprometida com o texto enquanto um trampolim rumo às entranhas do cosmos, antes que com algo a ser “entendido” (desde o Mundo das Ideias). As palavras, aqui, deslizam para além delas, apenas como indicadores, dispositivos, para atiçar a intuição nos devires.
Se o quatérnio sagrado pensou explicitamente o sagrado (cada autor com suas peculiaridades), Deleuze e Guattari (1997) deixam sua passagem por tais temas menos explícita, exceto por algumas belas passagens, em uma delas, eles se autodenominam “bruxos”. Ora, Deleuze e Guattari evocam continuamente Spinoza e Bergson, autores plenos de Deus; então, qual é o problema? Já em vida, Spinoza foi acusado de ateu por Velthusyen (SPINOZA, 2014), mas o próprio polidor de lentes descreditou essa alcunha na famosa carta 43, endereçada a Jacob Osten, em que responde reafirmando a “necessidade inelutável da natureza de Deus”. Além disso, Deleuze e Guattari (1992) citam, em seu último livro, de forma tão misteriosa como o texto original, do também último livro de Bergson (2005), que a função essencial do universo é ser uma máquina de fazer deuses.
O que apreendemos dessa afirmativa de Bergson? A reflexão acerca da mística em sua obra esclarece: o terceiro gênero do conhecimento de Spinoza, a saber, a intuição, torna-se, em Bergson, seu método por excelência (devir com as coisas do mundo em um campo unificado, relacional), o que permite apreender o um como todo-aberto, tornando-nos deuses. O todo-aberto aprende com a emergência de novos deuses. Dito de outra forma: Deus aprende quando Seu “modo de expressão” se reconhece enquanto Ele. Vale lembrar que os bruxos-filósofos Deleuze e Guattari constroem uma obra ontologicamente compatível com essa elaboração, a despeito do coro choroso do secularismo intelectual.
Para manter a divina criação cósmica, propomos colocar, como nova alcunha para o problema da coexistência do um e do múltiplo, a expressão Unidade Dinâmica. Como é possível uma Unidade Dinâmica? Na Unidade, imanente, ocorrem dimensões e movimentos em várias densidades – remetendo ao rizoma[1] de Deleuze e Guattari (1995) –, sendo que essas densidades possuem níveis diferentes de permeabilidade. É justamente nos encontros e desencontros desses níveis de permeabilidade onde ocorre o dinamismo. As intensidades variam, modulam-se e atravessam-se na Unidade, imanentes a ela, compondo sua multiplicidade, logo, seu dinamismo. A Unidade pulsa – assim como o cosmos bouncing de Mario Novello (2010) –, produz novidade, é atravessada toda ela por devires tão loucos que pode até deixar de ser Unidade.
Se Deleuze e Guattari (1995) querem fugir de uma Unidade clamando pelo “n-1”, é porque ainda estão sobre o registro do “entre”. Aqui, evocamos o antropólogo Tim Ingold (2015) para dar um passo além do “entre”, ainda excludente, e trazer o belíssimo louvor do ao longo de. Ora, se Deleuze e Guattari sustentam o rizoma entre o um e o múltiplo, queremos, com a Unidade Dinâmica, realocar o rizoma ao longo do um e do múltiplo, sem que se possa tornar totalmente um ou outro. Nada mais inclusivo, nada mais imanente e nada mais intensivo. A Unidade Dinâmica é intensiva, pois deixa de estar entre o um e o múltiplo; também deixa de estar entre o atual (extensão, corpóreo) e o virtual (atemporal que abriga os tempos múltiplos, consciência cósmica). Está ao longo do atual e do virtual, posto que toda ela é intensiva. Se deixamos de falar em sujeito e objeto, também abandonamos todos os outros dualismos – um e múltiplo, atual e virtual. Trazemos mais uma vez Tim Ingold (2015) para saudar sua malha[2] composta por linhas (inspiradas no pintor Paul Klee e em Deleuze e Guattari), no sentido de que a malha seja a Unidade e a vida das suas linhas, o Dinamismo.
Com isso, podemos retomar o problema do sagrado. Gregory Bateson (2005) almejou realizar uma “epistemologia do sagrado” baseada em seu rico atravessamento pela antropologia, pela cibernética e pela biologia. Ele propõe que a “estrutura”, que aparece como recursividade na biologia, como algoritmo[3] na computação e como Verdades Eternas em Santo Agostinho, funciona como o conceito de Deus, que ele chama de “mente”. Preferimos, no lugar de “estrutura” – que evoca possíveis ressonâncias indesejáveis com o estruturalismo – o conceito de máquina abstrata de Deleuze e Guattari (1995), que também é inspirada e desdobrada a partir da cibernética e de Bateson – que trazia auto-organização e o conceito de “sistema” em sua obra –, porém, oriunda de uma ontologia mais precisa ao que aqui se propõe. Eles conceituam a máquina abstrata, grosso modo, como uma auto-organização de forças transtemporal e transespacial.
Com a máquina abstrata, percebemos que a auto-organização, na biologia e na computação, é um contínuo processo diferenciado em planos diferentes – o plano biológico e o plano computacional, ambos unívocos em um plano de imanência. Esse, em Spinoza (2008), seria chamado de Deus, e todo ele seria mental, visto que tudo seja animado – ou animista –, também com variações e diferentes complexidades. Considerando o biológico e o computacional como partes imanentes de um processo de auto-organização animista, deixa de fazer sentido a ideia de uma Inteligência Artificial [4]. Se, na imanência, não há separação entre natural e artificial, tudo se torna natural, no sentido de ser Natureza. Precisamente por ser a Natureza imanente a Deus (em Spinoza) tudo – ou o todo em aberto – também é sagrado. Nesse sentido, a Unidade Dinâmica é sagrada.
Estamos de acordo com a impermanência budista (PANDI, 2006), com o Tao (LAOZI, 2007) e com o Advaita Vedanta (RAMANA, 2012). O Advaita Vedanta é um sistema filosófico sagrado da Índia em que não há dualidade, nem devoção: afirma-se que da Unidade advém o mundo e, a partir disso, tudo se torna sagrado. Mas seria preciso retirar do Advaita Vedanta, tanto quanto do Tao, os resquícios do imutável, para compatibilizar esses saberes sagrados com a Unidade Dinâmica. Queremos ressoar o Advaita Vedanta de Nisargadatta (2014), que diz: “Simplesmente descubra o ‘Um que move’ por trás de tudo o que se move, e deixe tudo para Ele. Se você não hesitar, nem se enganar, este será o caminho mais curto para a realidade” (NISARGADATTA, 2014, p. 147).
E, se o sagrado abarca tudo, podemos incluir nele a política; nela, porém, dispensamos a representação. Deixamos de falar de políticos e partidos, de ideologias e revoluções: estamos interessados, de um lado, em micropolíticas e revoluções moleculares, como querem Deleuze e Guattari, mas, também, e em sintonia com isso, nas Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) de Hakim Bey (2001). Estamos suscitando uma anarquia sagrada.
A TAZ de Bey evoca um espaço libertário, sem hierarquia, aqui e agora. Pode ser uma festa, um grupo de estudos, até mesmo um pique-nique – ou seja, mais uma insurreição do que uma revolução. O nível do macro já está praticamente todo corrompido pelo capitalismo financeiro e seus infinitos desdobramentos. A política de representação está a serviço dele. Como diria o Comitê Invisível (2017), “destituir o governo é se tornar ingovernável”. A anarquia sagrada evoca uma desobediência (THOREAU, 2014) ao longo do ontológico e do epistemológico, onde emerge a Unidade Dinâmica.
A desobediência se torna cristalina quando percebemos que toda transcendência foi desacreditada, alucinada, tendo impedido qualquer instância superior a que alguém se deva submeter. Toda instância superior é uma aberração que trai a Unidade Dinâmica. Se tudo é sagrado ou se Deus somos nós, ninguém nos pode ordenar. Spinoza clamava que a potência é inversamente proporcional ao poder. Na anarquia sagrada, Deus modula-se em potência, nunca em poder. O âmbito político da Unidade Dinâmica é a anarquia sagrada, cuja resistência política vem da apreensão de que o todo aberto seja sagrado. Isso faz da Dinâmica na Unidade um clamor de liberdade. A Unidade Dinâmica só ocorre em plena potência se é de fato livre; a Unidade Dinâmica só equivale à liberdade e à anarquia sagrada se é plenamente potente. O quatérnio sagrado Plotino-Bruno-Spinoza-Bergson eivados da máquina abstrata, nos permitem apreender que Deus seja a auto-organização cósmica.
A Unidade Dinâmica tem como modo de funcionamento privilegiado o vortex (JOB, 2018). Nele, os saberes se mesclam, abandonando as disciplinas, compondo transaberes (JOB, 2013). Na Unidade Dinâmica, o sagrado de despede da alucinação da transcendência e ganha todo o instável esplendor livre da imanência, sagrado devir.
Bibliografia
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THOREAU, Henry. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 2014.
[1] Concordamos com Tim Ingold (2015) que o empréstimo de Deleuze & Guattari da botânica tenha sido indevido, e que a melhor imagem na biologia para o conceito de rizoma é o micélio fúngico.
[2] Ingold (2015) propõe a malha em detrimento da “rede”, da Teoria Ator-Rede de Bruno Latour, pois, segundo ele, a rede se atém aos nós e, a malha, ao que ocorre ao longo deles. Assim, evita-se, ainda, o dualismo entre rede e atores.
[3] “Deus enquanto algoritmo” pode ser assustadoramente irônico nos dias de hoje, por remeter ao mundo das redes sociais.
[4] Ver Manuel de Landa (1991), War in the age of Intelligent Machines.