Um tipo de cientista sem exemplo na história
O filósofo José Ortega y Gasset nasceu em Madri, no dia 9 de maio de 1883. Ainda criança, foi enviado para o colégio jesuíta de Málaga. Graduou-se e doutorou-se em Filosofia na Universidade Central de Madri, em 1904, com breve passagem pela Universidade de Deusto (Bilbao). Teve influência filosófica da escola de Marburgo, no período vivido na Alemanha. Em 1910, obtém a cátedra de Metafísica na Universidade Central de Madri. Em 1914, publica seu primeiro livro, Meditaciones del Quijote. Em 1917, torna-se colaborador do jornal El Sol, onde publicaria La rebelión de las massas (1930). Funda a Revista de Occidente em 1923. Após desentendimento com a ditadura espanhola, exila-se na Argentina. Durante seu exílio, de 1936 a 1945, em plena Guerra Civil Espanhola, Ortega y Gasset passou por um longo período de silêncio político em relação ao seu país. A alternância entre o engajamento e o distanciamento crítico marca a sua existência. Regressa à Espanha em 1948 e, em 1955, lhe é diagnosticado um câncer e ele falece no dia 18 de outubro daquele ano.
~Mario Novello
Trecho retirado do capítulo “La Barbárie Del ‘Especialismo’”, do livro Revolta das massas de José Ortega y Gasset.
“A especialização começa, precisamente, num tempo que chama homem civilizado ao homem “enciclopédico”. O século XIX inicia seus destinos sob a direção de criaturas que vivem enciclopedicamente, embora sua produção tenha já um caráter de especialismo. Na geração seguinte o equilíbrio se desfaz e a especialidade começa a desalojar, de dentro de cada homem de ciência, a cultura integral. Quando por volta de 1890 uma terceira geração assume o comando intelectual da Europa, encontramo-nos com um tipo de cientista sem exemplo na história. É um homem que, de tudo quanto há a conhecer para tornar-se um homem de saber e discernimento, conhece apenas uma ciência determinada, e ainda dessa ciência só conhece bem a pequena porção em que ele é ativo investigador. Chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber.
O caso é que, recluso na estreiteza de seu campo visual, consegue, com efeito, descobrir novos fatos e fazer avançar o pedaço de ciência que ele conhece, e com ela a enciclopédia do pensamento, da qual ele é conscientemente ignorante. Como foi e é possível coisa semelhante? Porque convém repisar a extravagância deste fato inegável: a ciência experimental progrediu em boa parte mercê do trabalho de homens fabulosamente medíocres, e menos que medíocres. Quer dizer, que a ciência moderna, raiz e símbolo da civilização atual, deu guarida dentro de si ao homem intelectualmente médio e lhe permite operar com bom êxito. A razão disso está no que é, ao mesmo tempo, vantagem maior e perigo máximo da ciência nova e de toda civilização que esta dirige e representa: a mecanização. Uma boa parte das coisas que é preciso fazer em física e em biologia é faina mecânica de pensamento que pode ser executada por qualquer pessoa. Para os propósitos de inúmeras investigações é possível dividir a ciência em pequenos segmentos, encerrar-se em um deles e desinteressar-se dos demais. A firmeza e exatidão dos métodos permitem essa transitória, mas efetiva e real desarticulação do saber. Trabalha-se com um desses métodos como com uma máquina, e nem sequer é forçoso para obter abundantes resultados possuir idéias rigorosas sobre o sentido e fundamento deles. Assim, a maior parte dos cientistas propelam o progresso geral da ciência encerrados no nicho de seu laboratório, como a abelha no seu alvéolo.
Por isso cria-se uma casta de homens sobremodo estranhos. O investigador que descobriu um novo fato da Natureza tem por força que sentir uma impressão de domínio e de segurança em sua pessoa. Com certa aparente justiça se considerará como “um homem que sabe”. E, com efeito, nele se dá um pedaço de algo que, junto com outros pedaços não existentes nele, constituem verdadeiramente o saber. Essa é a situação íntima do especialista, que nos primeiros anos deste século [séc. XX] chegou à sua mais frenética expressão. O especialista “sabe” muito bem seu mínimo rincão de universo; mas é radicalmente ignorante de todo o resto.
Aqui temos um preciso exemplo desse estranho homem novo que eu tentei, por uma e outra de suas vertentes e aspectos, definir. Eu disse que era uma configuração humana sem igual em toda a história. O especialista serve-nos como um contundente exemplo dessa nova espécie, expondo com clareza todo o radicalismo de sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser enquadrado em nenhuma dessas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e “conhece” muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio-ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é alguém que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua área de atuação é um sábio. E, com efeito, esse é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências, tomará posições de primitivo – e ignorantíssimo; mas as tomará com energia e auto-suficiência…”
*Trecho retirado do capítulo “La Barbárie Del ‘Especialismo’”, do livro Revolta das massas de José Ortega y Gasset.