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Três notas sobre Louis Pasteur (1822-1895)

Por César Benjamin 11 de novembro de 202511 de novembro de 2025

PASTEUR E A POLÊMICA SOBRE A GERAÇÃO ESPONTÂNEA DE VIDA

Em 1855, Virchow estabeleceu que só células podem originar novas células, as quais iniciam sua existência com as mesmas características e potencialidades das progenitoras: “Assim como um animal só tem origem em outro animal e uma planta em outra planta, onde aparece uma célula antes existiu outra célula.” Ele tirou daí uma conclusão de grande alcance: “Nenhum desenvolvimento começa de novo. Precisamos rejeitar a teoria da geração [espontânea], tanto quando tratamos de partes quanto de organismos inteiros.”71

Pasteur logo dedicaria grande atenção a esse tema central para a biologia. Ocorreu, então, um dos episódios mais curiosos da história da ciência. Como já vimos, a ideia de que os seres vivos mais simples podem nascer por geração espontânea e antiga, pois corresponde a observação superficial em diversas situações. Foi quase uma unanimidade ate o final do século XVIII. Na Franca da Restauração, porém, ela foi associada ao materialismo, combatido pelo Estado e a Igreja. A origem da vida e, depois, a evolução das espécies tornaram-se questões mais teológicas e políticas do que cientificas.

Católico, monarquista e conservador, Pasteur se expressou assim em 1864, em uma conferência no grande anfiteatro da Sorbonne: “Que triunfo seria para o materialismo, senhores, se ele pudesse afirmar que se fundamenta no fato comprovado de que a matéria organiza a si mesma, ganha vida por si só. […] O que seria mais natural do que deificar a matéria, se pudéssemos acrescentar-lhe esta outra força chamada vida? De que serviria, então, recorrer a ideia de uma criação primeva, ante cujo mistério devemos nos inclinar? Que serventia teria a ideia de um Deus Criador?”72

Foi nesse contexto que ele chamou para si a responsabilidade de refutar as experiencias de Felix Archimède Pouchet, diretor do Museu de História Natural de Rouen, que comprovariam a geração espontânea de animais microscópicos na presença de água, ar e alguma matéria orgânica em decomposição. Seguiram-se experiencias feitas pelas duas partes, sob supervisão, mas nenhum deles reproduziu exatamente os procedimentos do outro. Isso foi decisivo para que a disputa se estendesse. Pasteur usava água de levedo de cerveja e Pouchet usava água de feno, ambas esterilizadas com os melhores métodos da época. Só depois se descobriu que esses métodos não matavam alguns esporos que existem no feno. Com o que se conhecia, as experiencias de Pouchet estavam corretas.

Ao contrário do que diz a lenda, Pasteur não demonstrou, e nem poderia ter demonstrado experimentalmente, que não há geração espontânea, pois esse resultado não pode ser obtido pela repetição de experimentos e por indução. Além disso, 90% de suas experiencias não deram o resultado que esperava, o que ele atribuía a contaminação das amostras.

Pasteur tinha razão, mas não tinha nem uma motivação cientifica aceitável nem um método correto para demonstrar seu ponto de vista. Teve de usar todo o seu talento de polemista para anunciar uma vitória que não existiu, logo apoiada por uma Academia de Ciências dominada por seus colegas conservadores. Em 1887, Auguste Lutaud escreveu: “Na Franca, e possível ser anarquista, comunista ou niilista, mas não antipasteuriano.”73

O imenso prestigio de Pasteur foi decisivo para consagrar a tese correta. Mas a superação cientifica da ideia de geração espontânea dependeu, antes de tudo, da teoria celular de Virchow e da consolidação do conceito de espécie, que se baseia na sucessão das gerações, ou seja, na capacidade de um grupo gerar semelhantes. O conceito só ganha sentido ao se admitir que um ser vivo só vem a luz se houver um semelhante para engendrá-lo. Se os indivíduos fossem gerados espontaneamente, não haveria espécies.

Isso nos conduz a um impasse: se a matéria-prima da vida é a própria vida, como ela surgiu? Voltaremos a esse tema adiante.

* * *

Páginas 250-251 da segunda edição de “Além de Darwin”

PASTEUR E A POSSIBILIDADE DE VIDA EXTRATERRESTRE

Num Universo com bilhões de anos e trilhões de corpos celestes, o senso comum imagina muitas vidas espalhadas. Porém, duas hipóteses apontam em outra direção. Não podem ser provadas ou tidas como certas, mas são coerentes. A primeira: o que chamamos vida só começou uma vez. A segunda: ela só existe em nosso planeta. Não nos estenderemos nelas, pois não são essenciais a nossa linha de argumentação principal, mas vamos apresentá-las.

Já expusemos a ideia de Darwin, de que todas as formas de vida têm a mesma origem, mas não e a ela que retornaremos agora. Em 1848, bem antes de A origem das espécies vir a luz, o jovem Pasteur, então com 26 anos, fez uma descoberta que passou praticamente despercebida e cujo alcance só foi notado muito depois. O próprio Pasteur não viu a sua principal consequência.

As moléculas podem ser opticamente ativas ou inativas. As primeiras giram para a esquerda (as levogiras) ou para a direita (as dextrogiras) o plano de rotação da luz que passa por elas, criando formas assimétricas que não podem ser sobrepostas a sua imagem especular. Formam uma espécie de rosca que indica a existência de uma assimetria interna.

Na natureza, os dois tipos ocorrem com a mesma frequência. Por isso, foi notável descobrir que todas as moléculas biológicas são levogiras. O mundo orgânico diferencia esquerda e direita. “Todos os produtos artificiais de laboratório”, Pasteur escreveu, “tem imagens que podem ser superpostas. Ao contrário, os produtos orgânicos naturais […] que desempenham um papel essencial nos fenômenos da vida vegetal e animal são dissimétricos.”

Ou seja, nas atividades químicas dos seres vivos há uma assimetria que não aparece nos produtos de laboratórios. Segundo Pasteur, “esta é a única linha de demarcação importante entre a química da matéria bruta e a da matéria viva. […] A vida resulta de uma assimetria no Universo.”162

Mais de cem anos depois, Pascual Jordan confirmou a descoberta – “Todas as moléculas mais complicadas que existem nos animais e nas plantas, especialmente as proteínas, são estereoquimicamente diferentes das suas imagens especulares”163 – e deu um passo a frente: se as duas formas tem probabilidades iguais e se os seres vivos contêm apenas uma delas, então devemos considerar o início da vida como um evento único que se desdobrou em uma sequência encadeada de multiplicações autocatalíticas, num ciclo de realimentação positiva (a autocatálise ocorre quando os produtos de uma reação aceleram ou facilitam a própria reação; e rara no mundo inorgânico, mas comum no mundo orgânico).

Se as moléculas biológicas tivessem tido origens independentes, em diferentes locais e diversas épocas, então as levogiras e as dextrogiras deveriam ocorrer com frequência aproximadamente igual.

* * *

Nota pessoal não usada no livro

PASTEUR EXPERIMENTALISTA: A VACINA CONTRA A HIDROFOBIA

Cabe ressaltar a incrível intuição de Pasteur. Durante sua longa carreira, foi sempre certeiro, mesmo quando não tinha uma boa teoria como ponto de apoio. Isso fica claro no desenvolvimento das vacinas, realizado com êxito em uma época em que se desconhecia completamente o funcionamento do sistema imune. Adepto de uma teoria biológica da imunidade, apostou no uso de cepas microbianas atenuadas.

O sucesso que obteve contra importantes doenças que acometiam animais logo despertou esperanças no desenvolvimento de vacinas também para doenças humanas. Havia, porém, um obstáculo ético, que o próprio Pasteur indicou: “A experimentação, permitida em animais, é criminosa quando feita no homem.”

Mesmo assim, escolheu atacar a hidrofobia, doença misteriosa e aterradora, que ocupava um lugar especial na imaginação popular pelo terrível agonia que provocava, privando o doente da sanidade mental. Seu portador e transmissor habitual era o cão, o melhor amigo do homem, cujas mordidas atingiam principalmente crianças.

Como o vírus desloca-se lentamente do local do ferimento até o sistema nervoso central, a incubação pode demorar até um ano, período em que não era possível fazer um diagnóstico seguro. Todos conviviam muito tempo com a angústia de não saber se as vítimas assintomáticas de animais raivosos desenvolveriam ou não a doença em algum momento futuro. Se isso acontecesse, a taxa de mortalidade era de 100%, com muito sofrimento do doente.

Pasteur começou suas pesquisas em dezembro de 1880 e aplicou a vacina pela primeira vez em julho de 1885. Até então, ele cultivara e atenuara os micróbios em meios estéreis artificiais, mas as dificuldades técnicas de lidar com o vírus da hidrofobia, difícil de isolar e manusear, levaram-no a conceber o tecido cerebral de organismos vivos – coelhos, cobaias, cães, porcos e macacos – como meios de cultura.

Trabalhava de maneira completamente empírica, na base do ensaio e erro, injetando diferentes culturas e substâncias nos animais experimentais, observando e anotando o que acontecia. Conduziu assim milhares de experimentos de grande complexidade, envolvendo diferentes espécies. Ao perceber que passagens seriadas de um mesmo micróbio por determinados animais alteravam sua virulência, para mais ou para menos, desenvolveu, penosamente, técnicas novas.

Durante muito tempo as experiências permaneceram incompreensíveis: passagens sucessivas do micróbio pela saliva de cobaias, por exemplo, tornavam-no menos virulento para os coelhos; passagens por coelhos tornavam-no inofensivo para os porcos. Em algum ponto de sua passagem seriada por macacos, o vírus perdia a virulência para os cães, protegendo-os, surpreendentemente, de cepas muito agressivas, até o ponto de produzir imunidade.

Em outros casos, porém, o efeito era inverso: os organismos selecionados para atenuar o vírus aumentavam sua virulência. Essas passagens experimentais do vírus podiam envolver até cem animais, em sequência.

Em 1883, depois de três anos de experiências contínuas, Pasteur se fixou nos macacos como os mais capazes de atenuar o vírus. Estava moderadamente otimista: “Graças à incubação prolongada, poderemos tornar pacientes humanos resistentes antes que a doença se manifeste. […] Mas é preciso colher provas de diferentes espécies animais, quase ad infinitum, antes que possamos nos atrever a experimentar no próprio homem.”

Em agosto de 1884, ao descrever sua teoria microbiana das doenças, escreveu: “A hidrofobia já não é um enigma insolúvel.” Desenvolveu, finalmente, um método bastante complexo, que envolvia o uso de tiras da medula espinhal de coelhos mortos por vírus previamente tratados, e com ele conseguiu imunizar cinquenta cães “de todas as idades e raças, sem uma única falha”.

Foi quando o menino Joseph Meister surgiu inesperadamente em seu laboratório, mordido no rosto e nas mãos por um animal comprovadamente hidrofóbico. Pela análise clínica, estava condenado a contrair a doença. “Com profunda ansiedade”, Pasteur tomou a difícil decisão de testar nele a possível vacina: treze injeções no abdome, em dez dias, usando extratos das medulas espinhais secas. A última injeção foi aplicada com o vírus mais virulento disponível, retirado de um coelho morto recentemente.

Deu certo. Depois de um período em observação, Joseph foi considerado imunizado. Estava pronta a primeira vacina de uso humano produzida em laboratório.

No final da década de 1880, graças principalmente a Claude Bernard e a Louis Pasteur, a medicina começou a transitar da pura e simples experiência clínica para os experimentos laboratoriais. Não era mais uma arte, era ciência.

Texto da segunda edição de “Além de Darwin” do autor.

Autor

  • César Benjamin

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