Solidariedade no Cosmos
Publicado antes em Ciência e Sociedade.
- A questão da “volta ao passado”
Uma crítica à possibilidade de existir no universo caminhos que levam ao passado (vamos chamá-los pela abreviação CDP, caminhos do passado) é antiga de vários milênios. Ela consiste em argumentar que um caminhante que pudesse seguir ao longo de um desses caminhos poderia impedir seus progenitores de se encontrarem e, ipso facto, invalidar seu nascimento. Consequentemente, ele não poderia ter nascido e produzir uma alteração radical de sua história, modificando seu passado.
Ao aceitar esse tipo de paradoxo na Natureza, os físicos sustentavam a impossibilidade de existir tais CDP em nosso universo, como um princípio fundamental. No entanto, ele não é verdadeiramente tão robusto como aparenta. Para defender essa argumentação (a inexistência de CDP) o físico S Hawking organizou uma festa para receber visitantes do futuro que teriam usado uma dessas CDP. Como eles não vieram, dever-se-ia concluir uma das duas possibilidades:
- Não existem tais CDP;
- Eles (os possíveis habitantes do futuro) não estariam interessados em uma festa na Inglaterra.
Não é de estranhar que, como bom cidadão britânico, Hawking tenha concluído pela primeira opção.
Para entendermos o modo pelo qual a argumentação do paradoxo acima pode ser desconstruída, vamos examinar cuidadosamente como a física descreve movimentos arbitrários no espaço-tempo e quem os controla.
Existe somente duas forças de longo alcance (supostamente sem limite) no universo: o eletromagnetismo e a gravitação.
Enquanto a primeira só atua sobre certos tipos de corpos (os que possuem uma característica especial chamada “carga elétrica”), a gravitação age sobre tudo que existe: ela é universal. Dessa forma, é a gravitação a principal responsável pelos caminhos possíveis no espaço-tempo.
Dentre as inúmeras situações descritas pelos físicos nas últimas décadas, uma chamou a atenção pela sua singularidade, por ser uma solução exata das equações que governam a propagação do campo gravitacional: aquela descoberta por Kurt Gödel em 1949.
O que há de especial nessa solução pode ser sintetizada numa frase surpreendente: ela admite a presença de CDP!
Essa propriedade levou vários físicos a rejeitarem essa solução, argumentando a impossibilidade de conciliar uma CDP com a causalidade, uma característica fundamental dos princípios que organizam a ciência.
Como a causalidade local não implica causalidade global, a situação é um pouco mais complexa.
- Antecedentes
Ao final dos anos 1940, os físicos Richard Feynman e John Wheeler propuseram um modelo de uma teoria do eletromagnetismo que continha algumas características pouco usuais nas teorias de campo até então examinadas, admitindo uma simetria temporal na ação desse campo sobre os corpos carregados.
Para entender como o campo eletromagnético observado atua sobre um corpo somente com ação retardada (isto é, satisfazendo a causalidade local), quebrando assim a simetria temporal que aqueles autores haviam sugerido, eles argumentaram que essa quebra de simetria seria devido a um efeito cósmico. Assim, os campos eletromagnéticos possuiriam efeitos avançados e retardados, (uma aparente violação do princípio segundo o qual eventos do futuro não podem influenciar eventos do passado), mas devido ao que eles chamaram “a resposta do universo”, somente a parte do campo retardado sobreviveria: o campo avançado seria aniquilado por um efeito cósmico. Ou seja, todo processo envolvendo o campo eletromagnético seria simétrico por inversão temporal, mas devido à ação de todas as demais cargas no universo – propostas que eles chamaram “teoria da absorção cósmica da radiação” — essa simetria se apresenta como tendo sido quebrada. Ou seja, o efeito resultante do campo eletromagnético sobre uma partícula carregada seria alterado pela ação de todas as demais cargas no universo.
Se o leitor acompanhou a análise da origem da massa de todos os corpos na revista CosmoseContexto (M Novello in https://cosmosecontexto.org.br/a-origem-da-massa/) verá como a proposta daqueles dois físicos se insere na hipótese maior do Princípio de Ernst Mach que – na versão proposta por Albert Einstein – requer que efeitos típicos de processos locais dependam fundamentalmente de propriedades globais. Por exemplo, a inércia total de um corpo massivo por menor que ele seja, é consequência da presença de todas as outras massas existentes. Dito de outro modo, a massa de um corpo A nada mais é do que o resultado da ação sobre A de toda a energia existente no universo, isto é, da ação do resto-do-universo.
Reconhecemos então que a proposta de Feynman e Wheeler, admitindo a existência de um efeito global (“a resposta do universo”) sobre uma partícula carregada, se insere perfeitamente na visão de Mach, caracterizando o efeito solidário do universo.
Segue daí que causalidade global pode ser violada (como, por exemplo, existir CDP no universo), mas causalidade local é conservada.
- A solução Lautman
Podemos então considerar a questão das CDP atualizando Mach. É o que fez Albert Lautman ao sugerir que a impossibilidade de caminhos ao passado não pode ser associada à possibilidade de uma interferência absurda sobre um evento que realmente tenha acontecido.
O argumento requer a diminuição da função do conhecimento do estado de um corpo a partir exclusivamente de um momento inicial, sem levar em conta a estrutura do espaço-tempo em que esse processo acontece. A curva CDP deve ser entendida como um processo global, ou seja, todo evento só pode acontecer no universo de tal modo que as características globais deste universo não sejam completamente independentes de processos locais e vice-versa: há uma interdependência local-global através de mecanismos típicos daquele sugerido por Mach.
Essa interrelação impede, por exemplo, paradoxos do tipo comentado acima serem aplicáveis em um CDP no nosso universo.
Entendemos então que aquele paradoxo não faz sentido, pois a informação de um dado evento não pode ser modificada: ela está inserida na ordem espaço-temporal do universo.
Em síntese, um evento não deve ser entendido como isolado: ele está mergulhado no espaço-tempo controlado não somente pela geometria (processo local) como pela topologia (processo global). É assim que se manifesta explicitamente a solidariedade das diferentes partes do universo, ou, dito de outro modo, sua coerência global, sua unidade.
Devemos enfim notar que, enquanto a geometria do espaço-tempo é controlada pela gravitação, através da formulação de Einstein da Teoria da relatividade Geral, não temos uma teoria capaz de descrever a topologia do cosmos.
Referências
M. Novello in Os Construtores do Cosmos (Ed. Gaia,2023)
M. Novello in O Universo Inacabado (Ed. N – 1, 2018).