Sobre o Primeiro Tratado de retórica especulativa de Marco Cornélio Frontão
Estamos vivendo, claro, tempos dificílimos por conta da pandemia, mas estamos vivendo também tempos dificílimos no que diz respeito à educação. Parece que a pandemia antecipou a morte da educação tradicional à qual nós estamos ligados e proclama um novo modelo metodológico, tecnológico, festejado como uma nova era pedagógica que finalmente deixará para trás as antigas práticas já tão gastas e que em nada atraem a juventude cujo tempo de vida em vigília, dizem os dados recentes, é quase todo empregado na internet, sendo 1/3 desse em redes sociais. Há empresas cujo trabalho consiste em propor as chamadas “novas soluções educacionais”, vendidas às instituições de ensino como o caminho de sua sobrevivência, lucro e inovação. Tais empresas entendem que, uma vez que o mundo se tornou digital, há que se impor aos professores uma adesão imediata às inovações da profissão, sob pena de ser descartado; em um mundo onde a transformação digital é a realidade, cabe ao professor se posicionar de maneira moderna, fazendo uso de aplicativos, plataformas e ferramentas interativas que tornam uma aula coisa absolutamente desprezível e sem importância. O professor deve ir onde está conectado o aluno. Se os alunos acessam vídeos no Tik Tok de 40 segundos, é lá que se deve fazer a gestão da aprendizagem. Em resumo, o que há de mais moderno e inovador é a ideia de que o papel que outrora teve o professor já não faz mais sentido hoje, dado que o aluno pode aprender em qualquer lugar.
Ainda que minhas decisões individuais possam não interessar ao mundo da educação, eu vou gentilmente declinar do convite para fazer parte desse promissor cenário e vou antecipar minha retirada da vida educacional se só essa alternativa me restar; se esse for o único caminho que se quiser ofertar à juventude para o futuro.
Estando então em volta em todos estes sentimentos, encontro um livro que seria o primeiro tratado de retórica especulativa do Marco Cornélio Frontão de Pascal Quignard[1], que me transportou para um mundo tão distante desse mundo artificial, tosco e infrutífero no qual todos estamos mergulhados. Essa obra me fez lembrar que o cenário e os tons reais podem estar desaparecidos, mas são eles a verdadeira orientação do espírito. Neste pequenino livro reside um grande poder de transformação: desaparece o atordoamento ignorante, vazio, que está cercando todos nós e de forma suave e precisa nos encaminha para as potências da linguagem como fonte de alento, beleza e vida superior.
Marco Cornélio Frontão é um retórico, gramático e orador da Roma clássica, que viveu no século II d.C. e foi tutor do imperador e filósofo estoico Marco Aurélio Antonino. Os ensinamentos do primeiro ao segundo são repassados nesta obra por Pascoal Quignard, que trata da literatura, da escrita, da linguagem de uma forma tão rara e tão própria, tão bonita, que não pode deixar de ser compartilhada. Sua obra é, como afirma Frontão acerca do retórico, não uma demonstração de ideias, mas uma janela que se abre através da linguagem, trazendo luz ao que ainda não é dia, fazendo o pensamento ir mais longe do que cada época convencionou.
A linguagem é aquilo que liberta o homem, então é preciso trabalhar bem a linguagem, lutar com ela, como disse uma vez Manoel de Barros: “é preciso errar bem seu idioma”. Esse é ofício do retor – todo o seu trabalho é esse: trabalhar a linguagem, dedicar-se à linguagem, conhecer, trabalhar e exaurir, o que Frontão chama de linguagem nua, para que se possa enfrentar audaciosamente as experiências mais dolorosas, as afasias e os perigos dos pensamentos mais difíceis de se admitir. Que bela ideia essa, a de que a linguagem bem trabalhada pode nos possibilitar o enfrentamento dos pensamentos mais difíceis. Ou seja, a linguagem seria para o homem uma faculdade para pensar ou para elevar o pensamento, vencer as dificuldades, as dores, os perigos.
Frontão dizia que era preciso seguir o caminho da língua com os remos e as pequenas velas, mas quando a necessidade imprevista sobrevém, então é preciso ser capaz de desfraldar a grande vela da linguagem, deixando atrás de si a história, as leis, os costumes, os decretos.
Essa linguagem não é a linguagem comum, morta, sacrificada aos hábitos e às práticas cotidianas, a língua vernacular e seus sistemas, mas é a linguagem germinativa (in germine), a linguagem da violência, iluminadora, urgente, metafórica. Aristóteles fala que a linguagem é metáfora, isto é, transporte, mudança do lugar original, maneira de experimentar a violência de novas imagens, seus deslocamentos e efeitos. A linguagem aqui não é descrição, informação ou endereçamento, mas meio de fecundação, demiurgia. Inclusive, Frontão teria criticado Cícero pelo fato de sua escrita carecer de palavras inesperadas, inopinadas, isto é “a palavra cujo aparecimento atinge o leitor ou o ouvinte para além de sua esperança”.
Frontão teria dito a Marco Aurélio: “nunca perca na filosofia o ritmo, a voz que nela fala”. É preciso enxergar não o poder do dizer, mas a sua potência, sua força, sua capacidade germinativa. Porque, diz Loggin[2], “tão grande é a esterilidade geral que estrangula a vida”. Essa frase me parece quase que um axioma dos nossos tempos. Há uma grande e geral esterilidade que estrangula a vida. Todos nós estamos sofrendo esse estrangulamento, estamos sentindo as dores desse estrangulamento, dessa esterilidade e precisamos trabalhar a língua pra poder enfrentar as questões mais difíceis, pra poder ir ao encontro do que é mais abissal para o homem pensar ou entender.
Quignard, de modo muito original, expõe sua teoria da origem da espécie humana e, diferentemente da tradição racionalista moderna, ele diz que o homem começou a se fascinar pelas feras e começou a imitar o grito que elas emitiam para matar suas presas. Para ele a linguagem humana é um grito nascido da imitação dos animais: o homem mimetizou o grito das feras, dos falcões, dos grandes carnívoros que observava porque temia. A espécie humana teria ficado fascinada com essa ferocidade e sua própria origem seria explicada por meio da predação imitada. A linguagem traria a força dessa violência, desse tonos, dessa tensão.
Loggin fala da criação literária como arte suprema, a que desconhece qualquer limite e que leva o leitor à exaltação, ao sublime; à experimentação de um tempo outro, diferente do tempo da fala, que é o tempo aprisionado no presente. Trata-se, diz Quignard, da linguagem nua até o pavor, da linguagem literária como jorro irreprimível, como torrente do inesperado. Então, no Logos é possível encontrar o que está acima do homem, o que é mais sublime, mais grandioso ou mais abissal, o que está fora da cronologia, e tudo isso é completamente diferente desse mundo árido que estamos vivendo.
Embora de tempos em tempos se experimente a asfixia, e tudo pareça terrível a nós, essa asfixia sempre vai contar com linhas de fuga, como diz Deleuze, e a gente tem que buscar esse ar, a gente tem que buscar esse respiro. Nesse sentido, a literatura é uma antiética, um “não lugar” e uma paixão. É uma exceção e um renascimento; uma estranheza e uma violência; um fascínio e uma liberdade. É uma potencia que jamais se imobiliza, um fluir inesgotável, um fluxo de ar que todos nós precisamos respirar. Só assim poderemos nos revigorar e impulsionar a vida.
Sim, é verdade que vivemos em uma época de desespero e pobreza. Um tristeza cerca a todos nós e esse terrível estado de incompreensão parece dominar todos os rostos. Quando a educação deixa de ser o bem mais fundamental, quando o ensino se transforma em uma aparato tecnológico, tudo parece estar comprometido. Como sentencia Quignard, ao se suprimir o pensamento, se generaliza a escravidão.
A criação literária é um grito da natureza cujo apelo fundamental é o renascimento. Renovemos o impulso vital, recomecemos por novas imagens para ganharmos novos fôlegos. Para além dos discursos escravizados e confusos, saibamos encontrar as falas de ânimo, o fundo selvagem do pensamento, seu caráter mais vivo que é também uma ressureição. Nas palavras de Quignard: “Nos livros que os homens mortos compuseram, não são os mortos que estão à espreita como fantasmas temíveis, mas um inqualificável caractere vivaz, uma ressurreição que persiste entre alegria e dor na fronteira da vida, que não se completa, mas que continua, se estende e nos fala”.
A fome do pensamento, diz o autor, não está saciada, ao mesmo tempo que o ódio ao pensamento provoca fome às ideias. Vivemos no tempo das ideias famélicas, das ideias minguantes e, portanto, é preciso um movimento em direção ao banquete do pensamento, ao que frutifica, ao que impulsiona e eleva a vida. A natureza, diz ele, nos introduziu na vida para elevá-la e não para diminuí-la; para acrescentar um impulso a um impulso, pra revigorar a ereção do universo. Ainda que o humano fuja dessa elevação, o Logos pode nos trazer de volta a ela.
[1] Esse livro faz parte da coleção Bienal lançada pela editora Hedra por ocasião da Trigésima Bienal de arte de São Paulo. A coleção reúne livros de pequenos formatos até então inéditos em língua portuguesa, alguns embora de grande reputação, hoje confinados ao esquecimento do grande público.
[2] Loggin ou Logginos teria sido um autor grego que escreveu no tempo do imperador Tibério e que dedicou a sua obra a Postúmio Terenciano.