Bruxaria deleuziana: o exercício em vórtex como criação de Corpo sem Órgãos
O homem da Verdade está além do bem e do mal
– entoou uma voz que não era uma voz.
– O homem da Verdade cavalgou ao encontro do Todo-É-Um.
~H. P. Lovecraft & E. Hoffmann Price
A primeiro atitude necessária para apreender uma bruxaria deleuziana é transvalorar sua própria bibliografia: ao modo de um leitor assíduo de Spinoza e Bergson que retira deles menos seu usuais legados acadêmicos, mas, justamente, sua radicalidade, seu acréscimo até então impensável na filosofia. De um lado, Spinoza (2014), em sua carta de n. 43, destinada a Jacob Osten, reafirma que o conceito de Deus é imprescindível à sua obra. Isso desmonta a ideia de que Spinoza seja propriamente um “ateu”. O polidor de lentes decerto quer expulsar da filosofia o Deus transcendente das Escrituras, mas também quer recuperar e transformar um deus pagão, imanente. De outro lado, Henri Bergson – autor de obras cujos títulos já dizem tudo, como A energia espiritual e As duas fontes da moral e da religião – se filia à mística na filosofia, tendo em Plotino uma inspiração inesgotável. O filósofo francês, em A energia espiritual (2009), diz que fantasmas surgem quando virtuais oriundos de pessoas diferentes se encontram; e considera a telepatia algo possível. Mas isso jamais causaria espanto em quem apreende com cuidado um filósofo do campo relacional, cujos “indivíduos” são imanentes a um campo ontológico imanente e, por isso, comum. Já em As duas fontes da moral e da religião (2005), ele coloca o misticismo cristão como o único que seria de fato “completo”.
O próprio Deleuze, em 1946, fez um prefácio para um livro esotérico, Études sur la Mathèse, do Dr. Jeal Malfatti de Montereggio, escrevendo que o livro “apresenta um interesse capital”, provavelmente devido a sua semelhança com teses spinozistas (DOSSE, 2010).
Os filósofos ingleses contemporâneos serão pródigos em assinalar o aspecto místico de Deleuze: Joshua Ramey (2012), em The Hermetic Deleuze, realiza, a partir de Spinoza e Bergson, uma nova montagem do que Deleuze evoca na história da filosofia, tecendo uma linhagem que remonta Deleuze ao Hermetismo, passando por Pico della Mirandola, Nicolau de Cusa e Giordano Bruno.
Em nosso livro Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica (JOB, 2013), colocamos lado a lado as ontologias herméticas e deleuzianas, e mostramos o quanto elas ressoam intensamente entre si. No livro, colocamos os Sete Princípios Herméticos em relação com os Sete Itens do Simulacro, esses últimos presentes na obra Diferença e Repetição de Deleuze (2006) e trabalhados por Manuel de Landa (2004) enquanto uma “lista ontológica” presente ao longo da obra deleuziana, a qual muda os conceitos a partir dos problemas, no entanto mantendo uma ontologia coerente.
Cabe um pequeno cuidado em relação aos Sete Princípios do Hermetismo. Eles foram escritos no começo do século XX por William Walker Atkinson, com o pseudônimo “Os Três Iniciados”. Atkinson era advogado e membro do Movimento Novo Pensamento, movimento esotérico criado no século XIX nos EUA, em que inexistia um hermetismo “puro”, tecendo relações com o cristianismo (DESLIPPE, 2018). Nos textos clássicos medievais do hermetismo, inexistem considerações sobre a vibração. Mais tarde, a vibração veio a ser um dos princípios de O Caibalion de Atkinson (CHAPEL, 2020). A vibração será um tema capital em Deleuze , sobretudo em seu A dobra (2000). Nele, Deleuze se filia a uma série de “filósofos vibracionais”, como Bruno, Leibniz, Whitehead e Simondon, conceituando o acontecimento como vibração em harmonias infinitas.
Deleuze e Guattari recorrem à bruxaria “nagualista” de Don Juan Matus, onipresente na obra do antropólogo Carlos Castaneda. Também essa presença nos parece precisa: as conceituações de Don Juan de tonal (mundo normalmente perceptível) e nagual (mundo sutil) possui ressonâncias, em Bergson, com o atual (o presente do sensório-motor) e virtual (a memória e a consciência) respectivamente – conceitos caros a Deleuze.
Deleuze e Guattari farão menções à ioga em Mil platôs (1996), quando conceituam o Corpo sem Órgãos (CsO). Nesse conceito, conjurarão maneiras de modular a intensidade para atingir um limiar de virtualidade, uma espécie de “zero positivo”, o plano de imanência, que seria a soma de todos os CsO. Deleuze e Guattari dirão que as drogas podem ajudar nesse processo, mas que é preciso prudência para evitar um “regime de abolição”, ou mesmo morte. O CsO é o ato mágico deleuziano por excelência. Longe de criar ritualísticas, os autores fornecem meios conceituais para se ampliar a percepção, as experimentações etc. O plano de imanência reaparece em O que é a filosofia? (DELEUZE; GUATTARI, 1992) associado também ao Tao.
Em Mil Platôs (1997a), para além de algumas citações de Don Juan, a bruxaria aparece intensamente através da literatura. Um exemplo recorrente é o horror cósmico do escritor norte-americano H. P. Lovecraft, sobretudo no conto “Através dos portais da chave de prata”, escrito em parceria com E. Hoffmann Price. No conto, o personagem Randolph Carter – um possível alter ego de Lovecraft –, através de um artefato – a chave de prata do título – passa por vários portais desconstruindo seu ego e chegando a uma espécie de “iluminação”. Ele decide retornar, assustado com tamanhas desconstruções, mas, sem condições de voltar a um corpo humano, precisa disfarçar-se.
Ainda em Mil platôs (1997b), no verbete “Rizoma”, ao falar acerca das “multiplicidades anômalas, nômades, em devir, de transformação”, Deleuze e Guattari afirmam que “do ponto de vista da pragmática, é a bruxaria que as maneja”. Aqui fica claro que a bruxaria, na obra dos pensadores, é muito mais que uma mera referência sui generis, sendo o grande exemplo de uma pragmática das multiplicidades. Em O que é filosofia?, afirmarão, ainda, que “Pensar é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa”.
Reciprocamente, os bruxos reconhecerão em Deleuze e Guattari uma filosofia em ressonância com a bruxaria. O bruxo e filósofo inglês Matt Lee (2020) os associa à bruxaria de Austin Osman Spare, por considerar a bruxaria desse último como sem representação, bem ao gosto de Deleuze e Guattari. Spare foi um bruxo e artista plástico do início do século XX, conhecido pelo transe chamado “postura da morte”, pela conceituação da energia mística “Kia” e pela criação dos sigilos. Esse bruxo foi a maior referência de Peter J. Carroll (2016), um dos sistematizadores da contemporânea Magia do Caos. De fato, Carroll (2008) usa em um de seus livros, The Apophenon, vários autores afins de Deleuze e Guattari, como Spinoza, Leibniz e Whitehead. No entanto, dizer que a Magia do Caos seria uma magia sem representações é algo controverso. O sigilo, prática recorrente entre os adeptos da Magia do Caos, pode ser considerado uma representação: consiste em escrever um desejo, retirar as letras que se repetem e formar um símbolo com as que restarem. Durante um transe – que pode ser um orgasmo –, deve-se fixar o símbolo e, em seguida, esquecê-lo. Por esse e outros motivos, o pesquisador de estudos da religião Colin Dunggan (2014) considera a Magia de Caos uma espécie de “psicologização” da bruxaria.
Por sua vez, o bruxo britânico Peter Grey (2017), em seu Bruxaria apocalíptica – considerado um dos livros mais importantes de bruxaria moderna -, escreve: “A Bruxaria é rizomática, não hierárquica”, em ressonância com a pragmática das multiplicidades, proposta por Deleuze e Guattari.
Em nosso mais recente livro, Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica (JOB, 2020), é conceituado o exercício em vórtex. Vórtex é um “conceito anterior ao conceito”, para remeter ao impensável, a partir de uma intensificação radical do conceito de devir, pensado à luz de um viés puramente vibracional. A filosofia da diferença de Deleuze e Guattari é uma grande influência, assim como a interpretação da mecânica quântica de ondas (em que inexistem partículas, apenas ondas) do físico Milo Wolff (2019), e da antropologia de Tim Ingold. A expressão pragmática do vórtex é o exercício em vórtex. Nessa prática, duas influências se tornam contundentes: a autoinquirição de Sri Ramana Maharshi (2012) e o estado vibracional, sobretudo na forma como Waldo Vieira o sistematizou (TRIVELATTO, 2015).
A autoinquirição é uma prática do Advaita Vedanta, sabedoria antiga não-dual indiana baseada em seus textos sagrados mais antigos, os Vedas, cuja expressão em Ramana tornou-a mais compreensível no “Ocidente”. Consiste em usar todos os fenômenos da percepção, sejam pensamentos, emoções ou sentimentos, para apontar para a Consciência (awareness), o que se aproximaria, em Deleuze e Guattari, do conceito de caos (em O que é filosofia?), quer dizer, de onde tudo emerge, mas impensável.
O estado vibracional (EV) é o resultado da Mobilização Básica Energética, cujas ressonâncias mais antigas estão no Qi, a energia vital chinesa. O primeiro ocidental a falar de forma contemporânea sobre o EV foi o engenheiro de som Robert Monroe, mas foi o médico e médium Waldo Vieira que sistematizou as práticas do EV. A Mobilização Básica Energética consiste em concentrar e direcionar a energia do corpo, através da imaginação e da força de vontade, de forma a aumentar as percepções.
Confluindo sobretudo a autoinquirição e o EV, criamos o exercício em vórtex, que é um mergulho no caos, para, em seguida, trabalhar as vibrações no corpo, expandindo-as. O exercício permite uma apreensão intuitiva e precisa do “conceito” de vórtex e uma ampliação da percepção do mesmo na vida.
Consideramos o exercício em vórtex um exemplo de criação de CsO e, portanto, uma prática de bruxaria deleuziana, praticada já por inúmeras pessoas, normalmente com resultados eficazes .
A bruxaria deleuziana está em pleno vigor, desde o divertido e inventivo coletivo argentino Estación Alógena (SALZANO, 2008), até o nosso exercício em vórtex. O clamor sempre foi de alegria. Deleuze propõe, em momentos preciosos de sua obra, que é preciso aprender a rir com Kafka, Beckett e Francis Bacon. Pois é isso mesmo: é preciso, diferentemente de rir da bruxaria, rir com a bruxaria.
Referências Bibliográficas
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