Sobre o Balcão de Jean Genet
O texto de Jean Genet “O Balcão” trata da alma humana em seus interstícios mais profundos e multifacetados, em seu funcionamento fora de sua superficialidade aparente. Ao longo de toda tradição metafísica clássica a alma é considerada o mais “divino” no homem e, portanto, seu funcionamento, bem como suas expressões, circunscreve-se em um diminuto aparecer, fazendo dissimular o incomensurável e inexprimível rio de pulsões que nos atravessam. A Genet não interessa falar do homem que se mostra socialmente, que reproduz modos de ser culturalmente instituídos, mas do aqueronte que banha todos nós.
Sem rodeios ao penetrar naquilo que mais genuinamente nos define, no que tem força para se erguer e romper as finas camadas da civilização, o autor sabe e nos fazer saber que toda vida é dupla: que para além do que aparece em superfície, há um eu alargado que não pode ser fixado ou contido, reduzido a uma identidade ou disciplinado; um eu que resiste e não se permite cair nas ilusões do que é presente.
Três personagens são destacados no Balcão: o general, o juiz e o bispo. Três autoridades, três das mais notáveis representações do mundo da superfície, três ideários do assim pretendido melhor funcionamento da vida social: a ordem, a justiça e a santidade. O homem comum deposita toda a suas crenças nesses valores transcendentes e baliza sua vida na convicção que deve (e pode) dirigir sua alma à perfilação desses ideais. Genet, invertendo por completo a artificialidade que paira sobre a massa dos comuns, mostra que tais personagens não antagonizam com a desordem, com o crime e com o pecado, mas vivem em simbiose com eles, necessitando de suas emergências para constituir-se (eis a fala do juiz: “diz que é ladra!!!”) e justificar-se, mas mais do que isso, para realizar-se enquanto sujeito do desejo. Ou seja, o gozo do juiz não é com a justiça que diz proclamar, mas é com o crime que diz combater.
Não são ali os indivíduos tipos perversos, mas as próprias funções, e os indivíduos que as ocupam não têm outra saída do que desempenhar-se perversamente. Não à toa, há uma duplicação de tais figuras no luxuoso e sofisticado bordel de Madame Irma. Lá eles se tornam personagens encenados, fantasias de clientes ávidos por prazer, mas quando a revolução eclode, assumem seus papéis de verdadeiros homens do Estado. Essa duplicação intencional revela mais uma vez a perversidade de tais figuras de poder que regem, decidem e comandam a vida coletiva. A autoridade é duplicada em fetiche ao mesmo tempo que o fetiche é a autoridade. Esse espelhamento demonstra que não há distinção entre fantasia e realidade; entre quem é e finge ser. Como ensina Freud, cada um de nós é fruto dos próprios delírios e encena sua fantasia de modo a encontrar um caminho de realização do desejo.
Genet nos coloca no caminho do que Deleuze chama de potência do falso, onde não se pode mais se decidir pelo verdadeiro. O falso não é o erro, o engano, a confusão, mas uma potência que põe em questão todo modelo formal da verdade. A potência do falso destrona a forma do verdadeiro, fazendo morrer o homem verídico. Da mesma forma, a fantasia não é a mentira, a invenção falsa elaborada pelo sujeito. A fantasia é o que está fora da dominação da lógica ordenadora, legalista e moralizante. Ou seja, a fantasia é a experiência singular que quer superar a realidade humana, empobrecida pelas repressões advindas por todos os lados.
A importância do texto de Genet reside no fato de que é na arte que a fantasia ganha um universo objetivo de percepção e compreensão. Daí Marcuse dizer que a arte é o mais visível “retorno do reprimido”, não só no nível individual, mas no próprio nível histórico. A imaginação artística modela a “memória inconsciente” de libertação que fracassou, da promessa que foi traída.
Ao lado de fora do Balcão uma revolução está em curso. A revolução está lá fora, fora da perversidade, fora da ordem, fora da encenação. A revolução não é vista, apenas ouvida. Ela não se atualiza em cena, mas sua causa é temida. Por outro lado, a revolução também não é redentora, não põe fim às perversas maquinações do poder. Ela é sempre o que está fora, sempre o que não se compõe com a encenação farsesca da ordem, da justiça e da santidade. A arte é revolucionária porque é irreconciliável com o estabelecido, com a univocidade dos sentidos, mas está sempre a gestar novas forças, novas potências e novas alegrias.
FICHA TÉCNICA
Texto: Jean Genet
Idealização: Alexandre Barros, Carmen Frenzel e Renato Carrera
Direção: Renato Carrera
Elenco: Alexandre Barros (Juiz), Andreza Bittencourt (Carmen), Carmen Frenzel (Irma), Fernanda Sal (Mulher e Enviado), Ivson Rainero (General), Jean Marcel Gatti (Revolucionário e Escravo), José Karini (Chefe de Polícia), Lucas Oradovschi (Carrasco e Roger), Ricardo Lopes (Bispo) e Yumo Apurinã (Chantal)
Tradução: Angela Leite Lopes
Assistente de Direção: Jean Marcel Gatti
Cenário e Direção de Arte: Daniel de Jesus
Figurino: Maria Duarte
Produção de Figurino: Márcia Pitanga
Caracterização: Mona Magalhães
Assistente de Caracterização: Everton Cherpinski
Iluminação: Renato Machado
Programação Visual e Vídeos-Projeções: Daniel de Jesus
Trilha Sonora: Gustavo Benjão
Fotografia: Sabrina da Paz
Filmmaker: Sandro Demarco
Assessoria de Imprensa: Júnia Azevedo (Escrita Comunicação)
Redes Sociais: Lucas Gouvêa
Produção: Gabriel Garcia
Assistente de Produção: Isabella Ferreira
Realização: A Palavra Forte Produções Artísticas
Apoio: Bossa Rio, Café Manuedu, Rádio Roquette Pinto e Restaurante La Fiorentina
SERVIÇO
Temporada: 7 a 31 de julho 2022, de quinta a domingo (dias 7, 8, 9, 10, 14, 15, 16, 17, 21, 22, 23, 24, 28, 29, 30 e 31/07)
Horário: 19h
Ingressos: R$ 7,50 para comerciários; R$ 15,00 para jovens de até 21 anos, estudantes e maiores de 60 anos; e R$ 30,00 para os demais – vendas na bilheteria do teatro
Local: Teatro Arena do Sesc Copacabana
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Rio de Janeiro
Classificação etária: 18 anos
Duração: 140 min