Sobre a representação física das superposições quânticas
ARTIGO /
Newton da Costa* e Christian de Ronde** //
A possibilidade de não haver uma realidade preexistente às nossas percepções faz da mecânica quântica um tema de intensa discussão nos campos do saber. Em particular, no âmbito da lógica, Newton da Costa e Christian de Ronde apresentam-nos seus estudos, ainda em desenvolvimento, da relação entre a lógica paraconsistente e a mecânica quântica.
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1 – Introdução
As superposições físicas existem tanto na física clássica quanto na quântica. Entretanto, o que significa exatamente ‘superposição’ em cada caso é algo extremamente diferente. Na física clássica, é possível haver superposições de ondas ou campos. Uma onda (campo) α pode ser acrescentada a uma onda (campo) β diferente e a soma dará uma ‘nova’ onda (campo) µ = α + β. Não há estranheza alguma neste caso, pois a soma de vários estados dá como resultado um único estado. Na mecânica quântica, pelo contrário, a soma de estados não pode ser reduzida a um único estado. Não existe uma interpretação óbvia de tal superposição de estados. Hoje, as superposições quânticas desempenham um papel central nos desenvolvimentos técnicos mais interessantes como a teleportação quântica, a criptografia quântica e a computação quântica (Leibfried et al., 2005; Ourjoumtsev et al., 2007). A questão que pretendemos tratar neste artigo concerne ao significado das superposições quânticas e sua representação física. Há muitas interpretações da mecânica quântica, cada qual fornecendo uma resposta melhor para esta pergunta. Em seguida, analisaremos algumas dessas propostas. E argumentaremos em favor da importância de desenvolver uma nova interpretação das superposições quânticas em termos da lógica paraconsistente.
A lógica paraconsistente é a lógica das teorias inconsistentes mas não triviais. As origens da lógica paraconsistente remontam aos primeiros estudos sistemáticos que tratavam da possibilidade de rejeitar o princípio da não contradição. A lógica paraconsistente foi elaborada, independentemente, por S. Jaskowski, na Polônia, e pelo primeiro autor deste artigo, no Brasil, por volta de meados do século passado (a respeito de lógica paraconsistente, ver, por exemplo: da Costa, Krause e Bueno, 2007). Uma teoria T fundamentada na lógica L, que contém um símbolo ¬ para negação, é chamada inconsistente se tiver, entre seus teoremas, uma sentença A e sua negação ¬A; caso contrário, diz-se que é consistente. T é chamado trivial se qualquer sentença de sua linguagem também for um teorema de T; caso contrário, diz-se que T é não trivial. Na lógica clássica e na maioria das lógicas usuais, uma teoria é inconsistente se, e somente se, ela for trivial. L é paraconsistente quando pode ser a lógica subjacente de teorias inconsistentes mas não triviais. Claro, nenhuma lógica clássica é paraconsistente. A importância da lógica paraconsistente não se limita ao âmbito da lógica pura, tendo sido estendida a vários campos de aplicação, como controle robótico, controle de tráfego aéreo (Nakamatsu et al., 2002), sistemas de controle para máquinas autônomas, raciocínio deôntico anulável (Nakamatsu et al., 2001), sistemas de informação (Akama e Abe, 2001) e medicina. A seguir, tentamos chamar atenção para a importância de estender o âmbito da lógica paraconsistente ao relato formal das superposições quânticas. Discutiremos o significado do termo ‘superposição’, bastante diferente tanto na física clássica, quanto na física quântica. Na seção 3, apresentaremos diferentes interpretações da superposição quântica, tais como aquelas propiciadas pela interpretação empírica de van Fraassen, a mecânica Bohmiana, a interpretação de vários mundos e a abordagem de Genebra para a lógica quântica. Na seção 4, argumentaremos em favor da importância de considerar uma interpretação da superposição em termos da lógica paraconsistente.
2 – O que é a superposição quântica?
Na física clássica, todo sistema físico pode ser descrito exclusivamente através de suas propriedades atuais, sendo que a ‘atualidade’ expressa o modo pré-existente de ser das próprias propriedades, independentemente da observação, onde o “pré” se refere à sua existência anterior à medição. Cada sistema tem um estado matematicamente determinado, caracterizado em termos de um ponto no espaço de fase. A mudança do sistema pode ser descrita pela mudança de suas propriedades atuais. Propriedades potenciais ou possíveis são consideradas como os pontos onde o sistema pode chegar num instante futuro. Conforme observado por Dieks:
Na física clássica, a descrição mais fundamental de um sistema físico (um ponto no espaço de fase) reflete apenas o atual e nada que seja meramente possível. É verdade que às vezes ocorrem, na física clássica, estados envolvendo probabilidades: pense nas distribuições de probabilidade ρ na mecânica estatística. Mas a ocorrência de possibilidades em tais casos meramente reflete nossa ignorância sobre o que é atual. Os estados estatísticos não correspondem a características do sistema atual (o que não é o caso com as superposições da mecânica quântica), mas quantificam nossa falta de conhecimento acerca dessas características atuais (Dieks, 2010, p. 125).
A mecânica clássica nos diz através da equação de movimento como o estado do sistema se desloca ao longo da curva determinada pelas condições iniciais no espaço de fase. A representação do estado do sistema físico é dada por um ponto no espaço de fase Γ e as magnitudes físicas são representadas pelas funções reais sobre Γ. Essas funções comutam umas com as outras e podem ser interpretadas como possuidoras de valores definidos independentemente da observação física; ou seja, cada magnitude pode ser interpretada como sendo de fato pré-existente para qualquer medição possível. Na formulação ortodoxa da mecânica quântica, a representação do estado de um sistema é dada por um raio no espaço Hilbert H. Mas, ao contrário do esquema clássico, as magnitudes físicas são representadas por operadores em H que, em geral, não comutam. Esse fato matemático tem consequências interpretativas extremamente problemáticas, pois assim fica difícil afirmar que essas magnitudes quânticas sejam simultaneamente pré-existentes. Para restringir o discurso a diferentes conjuntos de magnitudes comutantes, precisam ser escolhidos alguns Conjuntos Completos de Observáveis Comutantes (CSCO). A escolha de uma representação particular (dada por um CSCO) determina a base onde os observáveis diagonalizam e onde o raio pode ser expresso. Assim, o raio pode ser escrito como diferentes combinações lineares dos estados:
αi | φiB1 > + αj | φjB1 >= αq | φqB2 >= βm | φmB3 > + βn | φnB3 > + βo | φoB3 > (1)
As combinações lineares dos estados também são chamadas de superposições quânticas.
A natureza das relações que o princípio da superposição requer para existir entre os estados de qualquer sistema é de um tipo que não pode ser explicado em termos dos conceitos familiares da física. No sentido clássico, não se pode retratar um sistema como estando parcialmente em cada um dos dois estados e ver a equivalência disso com o sistema estando completamente em algum outro estado. Existe uma ideia totalmente nova envolvida, à qual é preciso se acostumar e em termos da qual deve-se proceder à construção de uma teoria matemática exata sem que se tenha um cenário clássico detalhado (Dirac, 1974, p. 12).
A diferença formal de se usar vetores em H em vez de pontos em Γ parece implicar que, na mecânica quântica – afora a “possibilidade” que se encontra na mecânica clássica – haja outro âmbito diferente que precise ser considerado e se refira, a cada instante, às propriedades contraditórias. Para ver isso, considere o seguinte exemplo: dado um sistema de spin 1/2 cujo estado seja |↑z >, deixamos que ele interaja com um campo magnético na direção z. Todos os resultados que possam ser atuais no futuro são propriedades potenciais do sistema, de maneira análoga como todas as posições que podem ser atingidas por um pêndulo estão no caso clássico. Mas, a cada instante, por exemplo, no instante inicial, se considerarmos a direção z e o operador de projeção |↑z ><↑z | como representantes de uma propriedade atual pré-existente, haverá outras propriedades incompatíveis surgindo a partir da consideração de operadores de projeção para projeções de spin noutras direções. Por exemplo, na direção x, os operadores de projeção |↑x ><↑x | e |↓x><↓x| não comutam com |↑z ><↑z | e, assim sendo, não podem ser considerados como possuidores de valores definidos simultaneamente. Desde a interpretação de Born para a função da onda, essas propriedades costumam ser consideradas possíveis. Entretanto, essa possibilidade é essencialmente diferente da ideia de possibilidade discutida na física clássica que se relaciona com a ideia de um processo. Se considerarmos que o formalismo da mecânica quântica fornece uma descrição do mundo, uma representação do que há – e não apenas faz referência a resultados de medição – a cada instante as propriedades |↑z ><↑z |, |↑x ><↑x | e |↓x><↓x| devem ser levadas em conta pois todas fornecem informação não trivial acerca do estado de coisas. Em particular, as propriedades |↑x ><↑x | e |↓x><↓x|, que constituem a superposição, são propriedades contraditórias.
Na abordagem da lógica quântica, uma das propriedades, a saber, aquela onde podemos escrever o estado de coisas como um termo único, é considerada ‘atual’ enquanto as demais são tidas como propriedades em ‘potencial’. As propriedades em potencial podem se tornar ‘atuais’ num instante futuro conforme a probabilidade dada pelos números em módulos quadrados acompanhando os estados. Essas propriedades – em nosso exemplo: |↑x ><↑x | e |↓x><↓x|, |↑y><↑y | e |↓y><↓y| – são sempre partes de superposições com mais de um termo e são constituídas por propriedades contraditórias. Entretanto, a partir de uma perspectiva matemática, independentemente de seu modo de existência, as propriedades tanto em potencial quanto atuais são colocadas no mesmo nível no quadro algébrico que descreve o estado de coisas conforme a mecânica quântica: as projeções do spin em todas as direções são átomos da rede e não há prioridade formal das propriedades atuais sobre as propriedades em potencial. No laboratório, é precisamente esse âmbito de potencial contraditório que precisa ser considerado pelo experimentador nos desenvolvimentos que estão acontecendo hoje com relação ao processamento das informações quânticas enquanto computação e comunicação quântica. Isso parece apontar na direção que essas propriedades têm existência que não pode ser reduzida à “atualidade em que se transformarão num instante futuro”. Conforme observado por Dieks (2010, p. 120): “[…] a superposição corresponde a diferentes indicações possíveis do dispositivo de medição (diferentes ‘posições do ponteiro’); ou seja, a diferentes resultados possíveis da medição. Está claro que todos os resultados possíveis ocorrem em bases iguais na superposição do estado final, de forma que não há sinal de que algum deles seja mais real do que outro.” Há muitas abordagens que tentam interpretar as superposições quânticas. Na seção seguinte, discutiremos algumas dessas propostas.
3 – As várias interpretações das superposições quânticas
Conforme vimos acima, a descrição formal da mecânica quântica parece implicar um grande afastamento da noção clássica de possível ou provável. Entretanto, no geral, há várias interpretações da mecânica quântica e, em particular, do significado de uma superposição quântica. Na próxima seção, vamos rever algumas das possíveis interpretações das superposições quânticas já presentes na literatura.
Levando em consideração o comentário de Dieks (1988, p. 189), concernente à superposição do gato de Schrödinger (nos estados ‘morto’ e ‘vivo’), que diz: “É o vetor estado que está numa superposição, não o próprio gato. ‘Vetor estado’ e ‘gato’ são dois conceitos em diferentes níveis do discurso.” A partir de uma ótica realista geral, que considera a física como fornecedora de uma expressão do mundo, surge a questão se essa representação formal ou matemática dada por superposições, a saber equação (1) – que nos permite calcular a probabilidade dos possíveis resultados da medição – pode estar conceitualmente relacionada com uma noção que nos permita pensar, independentemente dos resultados da medição, sobre a ‘superposição de estados no espaço de Hilbert’ de maneira análoga ao que pensamos sobre um ‘ponto no espaço de fase’ (no nível formal) como descrevendo um ‘objeto no espaço-tempo’ (no nível conceitual). O que está descrevendo uma superposição? Será que podemos criar ou encontrar conceitos adequados capazes de fornecer um relato realista representacional de uma superposição quântica independente dos resultados da medição? Conforme também veremos, a partir de uma perspectiva empírica geral, ninguém se compromete a responder esse conjunto de perguntas.
3.1 – Superposições quânticas como um ‘dispositivo teórico para prever os resultados da medição’
A ideia de que a função de onda quântica relacionada a uma superposição é apenas um dispositivo teórico sem conteúdo ontológico remonta à interpretação dada por Bohr à mecânica quântica. A impossibilidade de interpretar a função de onda quântica de forma ontológica pode ser compreendida em relação à sua caracterização de Ψ em termos de um dispositivo algorítmico que compute os resultados da medição.[i] Essa posição tratada de forma radical parece acabar no relato instrumentalístico compartilhado implicitamente por muitos e desenvolvido explicitamente por Fuchs e Peres (2000). Bas van Fraassen, que consideramos seguidor ferrenho das ideias de Bohr, também assumiu uma posição anti-metafisica com respeito à interpretação da função de onda quântica. Sua justificativa se baseia em seu relato empirista tanto da física quanto da filosofia (van Fraassen, 1991; seção 9.1). Num dos seus mais recentes artigos, e em sintonia com van Fraassen, Dieks argumenta a favor da posição Humeana:
Os Humeanos sustentam que precisamos assumir a existência de apenas um mundo, o qual seja o atual e comum; que as regularidades deste mundo são expressas em nossas leis e teorias; e que introduzamos outros possíveis mundos e circunstâncias contra-factuais puramente como construção de raciocínios de forma a extrairmos as peculiaridades das leis que formulamos. Mundos possíveis são ferramentas mentais e não entidades que existam realmente. Modalidades, como a necessidade e a possibilidade, são conceitos que introduzimos com base em nossas teorias e não correspondem a características da realidade que transcendam a descrição comum em termos de eventos atuais (Dieks, 2010, p. 126).
A partir de uma ótica empirista, o formalismo não precisa fornecer uma descrição d’o que existe. As superposições podem, assim, ser consideradas como um dispositivo teórico através do qual podemos nos dar conta das probabilidades de cada observação atual. O empirismo pode ser ligado à probabilidade em termos da interpretação de frequência que se baseia, contrário ao conceito original de probabilidade, não na ideia de que a probabilidade descreve, em termos de ignorância, um estado de coisas existente, mas, sim, no conjunto de resultados empíricos encontrados numa série de medições repetidas. Entretanto, e independentemente dos problemas encontrados em tais posturas empiristas, se as superposições são consideradas apenas como um dispositivo teórico, a questão da interpretação parece perder sua importância. Pois, por que deveríamos seguir uma interpretação se, conforme destacam Fuchs e Peres, a mecânica quântica cumpre a função e já “fornece um algoritmo para computar as probabilidades para eventos macroscópicos”? Há outras razões que podem ser apresentadas a partir de uma ótica empirista – conforme argumenta o próprio van Fraassen (1980) –, mas elas permanecerão apenas secundárias da busca da ciência.
3.2 – Superposições quânticas como ‘descrição de campos quânticos’
Conforme observado por Bacciagaluppi (1996, p. 74), o programa da variável oculta tenta “restaurar uma maneira clássica de pensar n’o que existe.” Nesse sentido, a proposta de Bohm transforma a mecânica quântica numa teoria que restaura a possibilidade de discutir em termos de um estado de coisas definido (descrito em termos de um conjunto de propriedades definidas valorizadas). Na mecânica Bohmiana, o estado de um sistema é dado pela função de onda Ψ junto com a configuração de partículas. A função de onda quântica deve ser compreendida em analogia com um campo clássico que movimenta as partículas em conformidade com a seguinte relação funcional: dx/dt = ▼S, onde S = hδ (δ sendo a fase de Ψ). Assim, as partículas sempre têm uma posição bem definida em conjunto com o resto de suas propriedades e a evolução depende do campo quântico. Segue-se que não há superposições de estados; a superposição é dada apenas no nível do campo e permanece tão misteriosa quanto a superposição dos campos clássicos. Dado um campo quântico φ(x), a partícula se moverá conforme esse campo. Se mudarmos o campo quântico acrescentando outro campo ψ(x) tal que o novo campo quântico seja agora a superposição φ(x) + ψ(x), não há peculiaridade ontológica envolvida, pois agora a partícula também tem uma posição bem definida e evoluirá conforme o novo campo. Presume-se que, devido ao fato de que o novo campo é diferente do original, a partícula se moverá de maneira diferente e seguirá uma trajetória diferente em comparação com o primeiro caso. O campo não só tem um caráter dinâmico como também determina a probabilidade epistêmica da configuração de partículas via a regra usual de Born.
3.3 – Superposições quânticas ‘descrevendo vários mundos’
As interpretações de vários mundos são interpretações de não-colapso que respeitam a formulação ortodoxa da mecânica quântica. A interpretação de vários mundos é considerada uma conclusão direta da primeira, proposta de Everett em termos de “estados relativos” (Everett, 1957). A ideia de Everett era deixar a mecânica quântica encontrar sua própria interpretação, fazendo justiça às simetrias inerentes ao formalismo do espaço Hilbert de forma simples e convincente. A principal ideia por trás das interpretações de vários mundos é que as superposições se relacionam a coleções de mundos, em cada uma das quais é realizado um valor de uma observável, que corresponde a um dos termos na superposição (DeWitt e Graham, 1973). Além de ser simples, alega-se que ela possui um encaixe natural com o formalismo, respeitando suas simetrias. A solução proposta para o problema da medição é fornecida assumindo-se que cada um dos termos na superposição é real em seu próprio mundo correspondente.
Toda a questão da transição do ‘possível’ para o ‘atual’ é tratada na teoria de maneira muito simples – não existe essa transição, tampouco ela é necessária para que a teoria esteja de acordo com nossa experiência. Do ponto de vista da teoria, todos os elementos de uma superposição (todas as ‘ramificações’) são ‘atuais’, não sendo nenhum mais ‘real’ que o resto. É desnecessário supor que todos menos um sejam destruídos, já que todos os elementos separados de uma superposição obedecem individualmente à equação da onda com total indiferença à presença ou ausência (‘atualidade’ ou não) de quaisquer outros elementos. Essa total falta de efeito de uma ramificação sobre outra também implica que nenhum observador terá ciência de qualquer processo de ‘divisão’ (Everett, 1973, p. 146-147, grifos nossos).
Assim, não é apenas o único valor visto em ‘nosso mundo’ que é atualizado, mas, sim, a ocorrência de uma ramificação em cada medição, dando surgimento a uma multiplicidade de mundos com seus correspondentes valores atuais. As possíveis divisões dos mundos são determinadas pelas leis da mecânica quântica, mas cada mundo se torna um ‘mundo clássico’.
3.4 – As superposições quânticas ‘descrevendo potenciais resultados da medição’
A escola de Genebra para a lógica quântica e abordagens semelhantes tentam considerar a física quântica como sendo relacionada aos âmbitos de atualidade e potencialidade de maneira análoga à física clássica. Conforme essa escola, tanto na física clássica quanto na quântica, as medições provocarão mudanças fundamentais no estado do sistema. O especial para um sistema clássico é que os ‘observáveis’ podem ser descritos por funções no espaço de estados. Essa é a razão principal pela qual uma medição correspondente a tal observável pode ser deixada de fora da descrição da teoria “caso não se esteja interessado na mudança de estado provocada pela medição”, mas “apenas interessado nos valores dos observáveis.” É nesse sentido que a situação difere bastante para um sistema quântico. Os observáveis também podem ser descritos como medições valoradas da projeção no espaço Hilbert, mas “nenhum valor definido pode ser atribuído a tal observável específico para uma parte substancial dos estados do sistema.” Para um sistema quântico, ao contrário de um sistema clássico, não é verdade que “tanto uma propriedade quanto sua negação seja atual.”[ii] Continuando com as considerações de Heisenberg na nova física, Constantin Piron foi uma das figuras pioneiras no desenvolvimento da noção de potencialidade dentro da estrutura lógica da mecânica quântica (Piron, 1976; 1983). Segue-se (Smets, 2005) que uma propriedade física, sem importar ser ela clássica ou quântica, é especificada como o que corresponde a um conjunto de projetos experimentais definidos. Um projeto experimental definido (PED) é um procedimento experimental (de fato, uma classe de equivalência de procedimentos experimentais) que consista numa lista de ações e uma regra que especifique de antemão o que precisa ser considerado como resultado positivo, em correspondência com a resposta afirmativa a uma questão dicotômica.
Cada PED testa uma propriedade. Um dado PED é dito certo (por correspondência, uma questão dicotômica é dita verdade) se houver certeza de que uma resposta positiva será obtida quando o experimento for realizado ou, mais precisamente, no caso em que, onde quer que o sistema seja colocado numa situação de medição, ele fará acontecer um certo fenômeno definido. Uma propriedade física é dita atual no caso dos PEDs que a testam estarem certos e é dita potencial quando não for este o caso. A propriedade ser atual ou potencial vai depender do estado no qual se considera o sistema. Embora nesta abordagem tanto a atualidade, quanto a potencialidade sejam consideradas modos de ser, as propriedades atuais são consideradas atributos que existem, como elementos de uma realidade física, enquanto as propriedades em potencial não são consideradas existentes da mesma forma que as reais. São, sim, consideradas como possibilidades com respeito à atualização, porque as propriedades em potencial podem ser atualizadas devido a alguma mudança no estado do sistema. Neste caso, a superposição fornece a medição – dada pelos números reais que aparecem no mesmo termo que o estado – sobre as propriedades irracionais em potencial que poderiam se tornar atuais numa dada situação. Assim, a potencialidade, conforme a noção da física clássica, pode ser vista como potencialidade, referindo-se a uma futura atualidade.
4 – Superposições quânticas e lógica paraconsistente
Embora as interpretações que discutimos na seção anterior a partir de seus comprometimentos tanto formal, quanto metafísico tenham muitas diferenças, ainda há algo que compartilham em comum: todas tentam evitar contradições. De fato, a ‘contradição’ tem sido vista com descrença no pensamento ocidental devido a certas pressuposições metafísicas que remontam a Platão, Aristóteles, Leibniz e Kant. Mesmo depois do desenvolvimento da lógica paraconsistente em meados do século XX e o subsequente progresso técnico que essa teoria permitiu, tal aversão à contradição ainda está presente nos dias de hoje. A famosa declaração de Popper de que a aceitação da inconsistência “significaria o colapso completo da ciência” continua sendo um desafortunado preconceito na atual filosofia da ciência (ver: da Costa e French, 2003, cap. 5).
Deixando de lado as posições instrumentalistas, algum de nós argumentou noutra instância (de Ronde, 2010) que, na farta literatura voltada para a interpretação da mecânica quântica, é possível encontrar duas estratégias principais que tentam achar uma resposta para a charada que pergunta ‘do que trata a mecânica quântica’. A primeira estratégia é começar com um pressuposto conjunto de princípios metafísicos e avançar no sentido de um novo formalismo. Dentre os exemplos dessa estratégia encontram-se a mecânica Bohmiana, que foi discutida acima (seção 3.2), ou GRW (Ghirardi et al., 1986), que introduz termos não lineares na equação de Schrödinger. A segunda estratégia é aceitar o formalismo ortodoxo da mecânica quântica e avançar no sentido de criar e elucidar os princípios metafísicos que nos permitiriam considerar a pergunta: ‘do que trata a mecânica quântica?’. Dentre os exemplos desta segunda estratégia encontram-se a lógica quântica e suas diferentes linhas de desenvolvimento, como a Escola de Genebra de Jauch e Piron (seção 3.4), a interpretação modal (ver, por exemplo, Dickson e Dieks, 2002; Vermaas, 1999; de Ronde, 2011). Através dessa ótica, a importância é concentrar-se no formalismo da teoria e tentar aprender com as simetrias, as características lógicas e relações estruturais. A ideia é que, aprendendo sobre tais aspectos da teoria, podemos também desenvolver as condições metafísicas que devem ser levadas em conta numa interpretação ontológica coerente da mecânica quântica.
A computação quântica lança mão do variado fluxo de informações na superposição considerando, inclusive (em princípio), os caminhos contraditórios. Também a criptografia usa a relação entre termos contraditórios para enviar mensagens que evitem espiões clássicos. No nível formal, a abordagem via integrais de trajetória também considera as várias trajetórias contraditórias dentro de dois pontos (Feynman e Hibbs, 1965). Já que tanto o formalismo quanto os experimentos parecem considerar ‘elementos contraditórios’ dentro da mecânica quântica, nós argumentamos que pode ser profundamente interessante desenvolver um formalismo que leve a contradição em conta ‘desde o princípio’.[iii] Nossa proposta se concentra na ideia de que valeria a pena desenvolver uma nova interpretação das superposições quânticas em termos da lógica paraconsistente. Deixamos o assunto para um artigo futuro onde possamos apresentar um esquema formal explícito para as superposições quânticas (da Costa e de Ronde, 2011). Entretanto, deve ficar claro que não consideramos que a lógica paraconsistente seja a ‘lógica verdadeira’ que deva substituir a lógica clássica; da mesma forma que não enxergamos a mecânica quântica como uma teoria que deva substituir a mecânica clássica (da Costa e Frenc, 2003; de Ronde, 2011). Neste sentido, o físico deve reconhecer a possibilidade de usar novas formas de lógica – como a paraconsistente – que possam ajudar a compreender características de diferentes domínios da realidade, características que não possam ser acomodadas por meio da lógica clássica. Não acreditamos que haja uma ‘lógica verdadeira’, mas, sim, que distintos sistemas lógicos possam ser usados para elaborar e compreender aspectos complementares da realidade.
Relembrando as palavras de Albert Einstein, dizendo que “somente a teoria é capaz de dizer o que pode ser observado”[iv], pode-se argumentar que somente dentro de uma teoria é possível considerar e responder pelos fenômenos. A partir dessa ótica, o desenvolvimento do formalismo pode ser visto não apenas como uma mera melhoria técnica, mas também como uma maneira para abrir novos caminhos de compreensão e mesmo desenvolver novos fenômenos. O desenvolvimento formal não é compreendido aqui como algo que vai além da teoria, mas, sim, como uma maneira de melhorar e mostrar algo que ‘não estava aqui antes’ no formalismo – conforme o caso do GRW ou da mecânica Bohmiana. Esse desenvolvimento, como é visto aqui, leva a sério as características que a teoria parece nos mostrar, expondo-as em toda a sua força, ‘desde o início’.
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*Newton A. C. da Costa é lógico, matemático, filósofo e criador da lógica paraconsistente, que envolve o conceito de quase verdade. Atualmente é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
**Christian de Ronde é pesquisador do Centre Leo Apostel (CLEA) e Foundations of the Exact Sciences (FUND); professor da Vrije Universiteit Brussel e Universidad de Buenos Aires.
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Leituras sugeridas
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Notas
[i] Segundo Bohr (Von Weizsäcker, 1974, p. 338), a questão da onda de Schrödinger é apenas uma magnitude abstrata de cálculo e não designa por si só fenômeno algum.
[ii] Discussão particular com Diederik Aerts em 2010.
[iii] De maneira análoga àquela em que Décio Krause desenvolveu uma Q-teoria de conjuntos, que leva em consideração partículas indistinguíveis com um cálculo formal “desde o início” (Krause, 1992).
[iv] Tais palavras, conforme o próprio Heisenberg, o levaram ao desenvolvimento do princípio da incerteza em seu artigo fundamental de 1927.