SOBRE A DOR
Marcia Mattar
se mover pode doer
A dor é uma das condições que mais interfere com nossa mobilidade e nossa locomoção. Afeta a realização física da vida cotidiana e produz um inevitável estresse psíquico, com suas consequências emocionais.
Um quadro doloroso associado aos movimentos (refiro-me, especialmente, às dores dos músculos e articulações) pode interferir gravemente na independência funcional da pessoa em sua vida cotidiana, na qualidade do seu sono, no trabalho e nas relações sociais.
A dor que se prolonga piora muito a qualidade da vida.
O número de pessoas, em todas as idades, que apresentam, apresentaram ou, possivelmente, apresentarão queixas de dor em alguma parte do corpo (especialmente nos músculos, coluna vertebral e outras articulações) é progressivamente maior.
Qualquer dor é uma sensação dominante, no “conjunto sensorial”, quero dizer que a dor, é indisfarçável sempre que se faz presente e, enquanto se manifesta, interfere e altera o uso do corpo, provocando adaptações automáticas que tentam evitá-la, modificando a mobilidade, o necessário para seguir movendo-se.
Nos movemos numa “conversa do cérebro” com o corpo muscular-articular, modulada pelos sentidos e as emoções. Essa movimentação “natural”, que nos conduz pela vida no mundo, sem que precisemos pensar em como nos movemos, simplesmente é um modo físico de sobreviver. Nos movemos mesmo antes de nascermos e o nosso desenvolvimento, desde o nascimento, é observado pelas habilidades e independência motora desde bebês, sem planejamento.
Quando a dor é provocada ou acentuada pelo movimento, o Sistema neuro motor, que regula as ações voluntárias e as adaptações ao ambiente, tempo e espaço, que são automáticas durante a movimentação, funciona para que o corpo encontre uma outra organização, outro caminho locomotor, para prosseguir no movimento, que seja o mais confortável e eficiente possível.
A dor modifica nosso script de movimentos, porque assim evitamos a repetição ou a piora da dor.
Por isso, mancamos automaticamente, assim que espetamos um espinho no pé, recolhemos a mão quando tocamos algo muito quente, evitamos dobrar o tronco quando a coluna dói, etc.
A dor durante o movimento é um sinal que o cérebro recebe, dos sentidos (a periferia do corpo) que indica alguma inflamação (injúria ou lesão), sinalizando que algo está mal, o que gera, imediatamente no cérebro, um modo de acomodar-se, protetivo, conservador da capacidade, mas que evite a dor e o agravamento da lesão.
Assim acontece na dor aguda, como numa entorse, um trauma, fratura, lesão ligamentar, no momento do evento. Essa dor aguda pode incapacitar e/ou impedir a mobilidade. Esse sinal doloroso protetor, persiste durante o processo de resolução, desaparecendo, progressivamente, com a cicatrização da lesão. Dessa forma, se pode restaurar a função que havia sido afetada pelo trauma.
Entretanto, há dores nas articulações, ossos e músculos que não se originaram em traumas, surgiram de modo insidioso ou súbito e são flutuantes em frequência e intensidade. Quando isso acontece, estamos diante de uma dor cronificada, que pode ser “incorporada” ao movimento, como se fizesse parte dele.
Agudas ou crônicas, as dores envolvidas na nossa mobilidade sempre provocam modificações e ajustes dos nossos modos naturais de movimentarmos, que se convertem em compensações funcionais e o corpo desenvolve tensões à distância da dor, que permitem seguir com a funcionalidade da vida apesar da dor.
Acontece que, esses mecanismos automáticos de adaptação às dores frequentemente produzem sintomas dolorosos à distância da dor original…como dor lombar após algum tempo de dores nos joelhos, ou dor no pescoço, quando um dos braços está com dificuldade.
Há dores de origem reumática, traumática e mecânica.
Os músculos, ossos, tendões e articulações, que realizam a parte mecânica da mobilidade do nosso corpo, são afetados por impactos, atritos, pressões, relacionados a posturas mantidas, estiramentos repetitivos ou traumáticos e a isso se chama estresse mecânico.
Os músculos (cerca de 80% deles) são responsáveis pela sustentação da nossa postura vertical, mas quando estamos sentados, apesar de mantermos o nosso tronco na posição vertical, esses músculos de sustentação estão relaxados (automaticamente); não é escolha, é como todos os corpos humanos se comportam enquanto estamos sentados. Assim, nossa musculatura de sustentação está quase sempre “relaxada”, pois a maioria das nossas atividades são realizadas nessa posição. Por isso, no cérebro, essa musculatura tem um registro muito “tênue”. Quanto maior o uso que fazemos de uma parte do corpo, mais representada ela está no cérebro.
É da nossa Natureza manter a posição ereta. Portanto, a manutenção do peso do corpo é vertical, em pé e sentado, com ou sem os músculos sustentadores ativados.
Quando, sentados, nossos músculos que sustentam a verticalidade estão relaxados, o peso do tronco ereto e vertical passa a se apoiar nos ossos, ligamentos e articulações.
Essas estruturas recebem esse peso e “aceitam” o papel de apoiar a verticalidade do corpo humano enquanto nos movimentamos. Isso acontece durante todo o tempo que passamos sentados.
O sedentarismo produziu a substituição da sustentação muscular, pelo apoio ósseo da postura humana. Essa adaptação natural ao cotidiano sedentário tem consequências.
As dores musculares e articulares são, em sua maior parte, de origem biomecânica. Quer dizer, surgem no corpo como resultados desse modo de se mover, silencioso, mas “agressivo” para os ossos e articulações, que ficam sobrecarregados enquanto realizamos nossos afazeres do dia a dia, pois sem a força presente da musculatura sustentadora, os ossos são responsáveis pelas funções de direção e coordenação do movimento (o que é natural).
Mas, se ao mesmo tempo, recebem o apoio do peso durante os movimentos, estão “sofrendo” com uma perda de microcirculação e nutrição, provocada pela pressão do peso nas articulações.
Pensemos em subir e descer escadas, ou o meio fio. nesse movimento, os joelhos realizam os movimentos de flexão e extensão necessários para se subir ou descer.
A maioria das pessoas não está sustentada na força das coxas e glúteos, então o peso do corpo também se apoia nos joelhos durante os movimentos. Por isso, pessoas com dores nos joelhos detestam escadas.
Os ossos sobrecarregados aguentam, mas sofrem.
A dor biomecânica é desenvolvida, ao longo de um tempo, silenciosamente, por um padrão motor que sobrecarrega (faz apoio e sustentação de peso) uma articulação ou tendão e seus “arredores anatômicos”.
O corpo, dá, em geral, pequenos “sinais “dessas sobrecargas.
A característica desse processo, é que o desconforto, que inicialmente é esporádico e se resolve com uma noite de sono, não nos impede a mobilidade. vai produzindo compensações, adaptações, invisíveis e inevitáveis, no modo como nos movemos.
Esses sintomas dolorosos se produzem enquanto nos movimentamos no cotidiano, provocando micro traumas no corpo, enquanto apenas levamos a vida.
Mas quando a dor se instala, persiste e se integra no movimento, torna-se impossível não a notar.
Dor é uma sensação-sentimento, uma vivência quase sempre desconfortável, muitas vezes impeditiva e deprimente.
Precisa ser respeitada, diagnosticada, acolhida e adequadamente tratada.