Prolegômenos à ficção
O convite para escrever sobre o tema me entusiasma e, ao mesmo tempo, perturba. A direção oposta dos verbos tem o mesmo motivo: por si mesmo, ele exigiria algo da extensão de um livro. Como não é isso que me pedem, tentarei fazer que a dimensão cabível contenha o roteiro de um mapa que algum dia deverá ser detalhado. Daí a constituição do ensaio em blocos. O primeiro dirá respeito à razão da pouca atenção que a cultura ocidental tem prestado à ficção, se não mesmo a considerá-la sinônimo de fraude e mentira.
A não tematizar os pré-socráticos, cujo trato exigiria explicações infindáveis, a primeira consideração do ficcional passa inevitavelmente a caber a Platão. Não me demorarei a pesquisar em seus Diálogos para sentir-me no direito de declarar que neles está contida a primeira e bastante exitosa tentativa de desconsiderá-lo. Se bem usada, sua razão seria compreendida por uma criança.
Que é a Ideia (koiné) senão a forma eterna, incorruptível e humanamente irreprodutivel? O padrão pelo qual as coisas do mundo se guiam? Mediante sua afirmação, eram montadas as primeiras oposições basilares para o conhecimento: o visível e o invisível, o aparente e a permanência, o instável e o irredutível. Os dois primeiros pares já foram bastante discutidos; fixemo-nos no último. Deverei ressaltar que sua crença e afirmação ultrapassam a concepção platônica e contiuam em vigor muito além do que se reconhece como de estrita proveniência platônica. Mais correto será dizer que Platão soa mesmo no mais entranhadamente contemporâneo.
Entre os gregos, o monumento por excelência da permanência era fornecido pela metafísica. Sem nela me deter, bastará assinalar o conceito de essência (ousia), que ultrapassa o plano filosófico e ingressa na linguagem geral. Que supõe a ousia senão reconhecer que a essência de algo oferece segurança e se contrapõe à aleatoriedade fenomênica? Que resposta melhor contra a ansiedade gerada pela certeza da morte senão a de que ela não implica extinção de quem agora sente?
O aferrar-se ao que há de permanente em algo do que vive tem a função certa de dar segurança a quem, ao viver, convive com o visível e acidental. Aquele que vive tem então outra certeza além de sua derrota. Conquanto a substância, reservada a propriedades desta ou daquela coisa, tenha uma propriedade não só metafísica, também ela costuma ser contaminada pelo risco da essência. Que pode desempenhar melhor o papel de permanência e constância senão a figura do Deus único, onipotente e responsável pela origem das criaturas? Não por acaso o pouco que aprendi do teológico me faz recordar que a uma concepção religiosa não basta dispor da razão porquanto precisa do sustento da fé. Onde a criatura apenas utiliza a força da razão sucede um raciocínio semelhante ao que encontro enunciado por Thomas Paine, enquanto personagem de A Morte de Danton (Dantons Tod, 1835), de Georg Büchner:
(…) Ou bem Deus criou o mundo ou bem não o criou. Se não o criou, o mundo tem sua
origem em si mesmo e Deus, portanto, não existe, pois deus se torna deus somente por isso que contém em si a origem de todo o ser.. Ora, porém, Deus não pode ter criado o mundo, pois, ou bem a criação é eterna como deus ou, então, tem um começo. Se este último caso for verdadeiro, Deus deverá tê-la criado em determinado momento. Deus, portanto, depois de ficar inativo durante uma eternidade, tornou-se, em certo momento, ativo; teve por conseguinte, de sofrer uma modificação em seu ser, a qual permite que lhe aplique o conceito de tempo, e tanto uma coisa quanto a outra contradizem a essência de Deus (Büchner, G.: 1835, VIII cdena, 69 – 70)
Contra a orientação racional, a afirmação do divino provoca a experiência mística e a espécie de metáfora que lhe é peculiar, a metáfora explosiva, conforme a designação de Hans Blumenberg.
Ao então falarmos em uma espécie de metáfora, começamos a abordar o que excede da razão estrita, muito embora não se oponha a seu raio extenso. Mas a afirmação não deixa de parecer duvidosa. Nosso raciocínio não supõe o uso e, portanto, a presença do racional? Não era por ela que recorremos à passagem de Paine, o heroi da independência americana, que, também participante da Revolução francesa, por pouco escapara da guilhotina.? Sim, por certo, nos apoiamos na razão ao acusarmos a categoria de permanência como forjada como maneira de assegurar a defesa da segurança individual. Sucede que a questão da metáfora, indispensável para o roteiro a ser aqui cumprido, mostrará que a defesa da razão, para que não se converta em dogmática, precisa ampliar seu modo de uso. É o que será desenvolvido no bloco seguinte.
Em recente mesa-redonda, a ensaísta Flora Süssekind lançou mão de uma fábula para, em poucas palavras, definir a situação em que nosso país atualmente se encontra. Uma parasita lança-se sobre um inseto hospedeiro e o devora lentamente. Não pode fazê-lo com maior rapidez porque a morte do corpo que o acolhe corresponderia a seu próprio desaparecimento.
À simplicidade da fábula corresponde sua extrema eficácia. Por ela, recordamos a deterioração da saúde – a oposição do governo à difusão da vacina contra a epidemia que assola o mundo – da educação – com a intervenção contra algumas de nossas poucas instituições de pesquisa, o corte de verbas e de bolsas – o desmatamento progressivo da Amazônia, a invasão das terras indígenas por grileiros, a defesa dos costumes mais grosseiros. O desmantelamento do aparato de um estado democrático é tão evidente que deveria parecer espantoso que ainda haja grupos que o apoiem. (De fato, não há nada de espantoso, contando as vantagens financeiras que favoreçam “representantes do povo” ou grupos beneficiados).
A evidência da eficácia da fábula é indiscutível, sendo por isso mais de lamentar que sua disseminação seja tão lenta e ignorada pela rede mediática. Dela, aqui tratamos porque concretamente nos mostra que sua força está no uso da linguagem, mais especificamente da metáfora. Não deixa de ser com certo pesar que a ela recorremos apenas como maneira de concretizar as questões da linguagem e da metáfora.
Costuma-se pensar a linguagem como o meio por excelência de comunicação. Ao fazê-lo, esquecemos nada menos que sua peculiaridade, trocando-a por seu efeito mais patente. Ela, ao contrário, era bem definida por Wilhelm von Humboldt:
A linguagem não é um produto (ergon) mas uma atividade (energeia). Sua verdadeira definição só pode portanto ser genética. Pois ela é a obra sempre repetitiva do espírito em fazer o som articulado capaz de expressar o pensamento (apud Bruns,G. L., 1974, 64)
Dizê-la energeia (atividade ou produção) e não ergon (produto), ou seja, como Humboldt acrescentava, atividade formativa e não só eficiente, não só corrige a concepção grosseira usual, como encaminha no mesmo sentido no concernente à metáfora. Mas não nos demos pressa em vir a essa.
Embora o ultrapasse da visão pragmática da linguagem já pareça louvável, ainda permanece algo muito preliminar. Um pouco mais deve ser acrescido. Para fazê-lo, nos aproximamos de um pensador que nunca antes havíamos acentuado.
Em “ ‘Espírito’ e ‘Vida’ na filosofia contemporânea” (“ ‘Geist’ und ‘Leben’ in der Philosophie der Gegenwart”, 1930), Ernst Cassirer partia de “O Teatro de marionettes” (Über den Marionnetentheater) (1810), de von Kleist, e, com ele, da polaridade entre vida (natureza) e conhecimento (espírito); mais especificamente da obra inacabada de Max Scheler, A Posição do homem no cosmo (Die Stellung des Menschen im Kosmos, 1928).
Assim como o dramaturgo, Scheler partia do dualismo entre vida e espírito e procurava superá-lo. De acordo com a citação feita de Scheler:
(…) Aquilo que faz o homem verdadeiramente humano é um princípio que se põe em oposição direta a toda Vida qua Vida, e que, como tal, não pode ser trazido de volta a ‘a evolução natural da vida’ (apud Cassirer, E.: 1930, 860).
Conforme a oposição postulada, o espírito é o reverso da vida; o conhecimento, por conseguinte, não pode ser entendido como uma direção de natureza orgânica. Ainda permanece fiel à exposição que fazia de Scheler a afirmação de que espaço e tempo são puros schemata, i. e., “formas vazias de cognição”. O que equivale a declará-los não objetos, sem que por isso se confundam com o nada (idem, 861). O então especificamente humano é “não estar ligado à atualidade do momento que o circunda” e sim à possibilidade da “contemplação livre do Possível” (ibidem, 862). Especificidade que encontraria sua concretização na capacidade de dizer não, em contraste com o animal apenas passível de acatar o possível que a atualidade lhe oferece.
Sem ter tido acesso ao livro de Scheler, preciso ter o cuidado em identificar o que é de um e outro pensador. De acordo com a tradução de Cassirer de que disponho, entende-se que o enfático ‘não”, enquanto propriedade do humano, supõe que, para Scheler, o Espírito é, em si, “absolutamente impotente. Todo o poder de que ele se vale em sua luta com a vida não se origina de si mesmo, deve antes, em um rodeio único, chegar a ele do reino da própria Vida, passo a passo por um ato de ascetismo e de sublimação do impulso” (ibidem, 863). O que vale dizer, sem energia própria, o espírito dela se investe por força da própria vida. Noutras palavras, o Espírito converte sua falta de força própria em um meio de escamotear a Vida a que se contrapõe e converter a força da vida em qualidade de si próprio. Por essa subtração – termo que introduzo por minha conta e risco – Vida e Espírito deixariam de ser opostos e se tornariam homogêneos. A interrogação formulada por Cassirer não deixa dúvidas sobre a divergência que separa os dois pensadores:
Se Vida e Espírito pertencem a mundos inteiramente díspares – se eles são completamente estranhos entre si em sua natureza, assim como em suas origens – como é possível que, não obstante, possam realizar uma obra perfeitamente homogênea, que possam cooperar e se interpenetrar na construção do mundo especificamente humano, o mundo da ‘significação’? (ib., 864)
A mesma interrogação reaparece um pouco adiante – reiterá-la tem o papel de retirar qualquer dúvida acerca da maneira como os dois pensadores se aproximam e, afinal, se separam:
As Ideias não são eficazes; meramente conduzem e direcionam; iluminam o curso da Vida, mas não a compelem a assumir uma certa direção. No entanto, apesar de tudo isso: como a Vida é capaz mesmo de ver as ideias que o Espírito lhe exibe e que por elas dirige seu caminho (…)? (ib., idem)
Em formulação mínima: “Como a transcendência da Ideia pode ser reconciliada com a imanência da Vida?” (ib., 866)
Assim, em lugar da enigmática reconcialiação proposta por Max Scheler, Cassirer distingue vida e espírito por encontrar na primeira uma energia eficiente e no segundo, uma energia formativa (ib., 868-9).
Aqui, então chegamos ao dado fundamental. A energia formativa, constitutiva do conhecimento, não lida com coisas ou objetos mas sim com signos, símbolos e significados. Ao contrário da conclusão a que Scheler chegara: a força do espírito não deriva da própria vida senão de sua própria interioridade. “A atividade mediata da criação de forma por certo difere da atividade imediata do trabalho e da ação no rumo que toma e na meta que visa, mas não é menos que a outra atividade pura, actus purus” (ib., 869). E assim afinal vislumbramos a presença plena da linguagem. Dela se diz que, conquanto diversa da atividade do trabalho, não é menos atividade que aquela. Empregando mais explicitamente a formulação de Cassirer, a linguagem, em suas diversas formas discursivas – desde a matemática até à poética, passando pela filosófica, a científica e a religiosa – é constituída pela energia formativa que engendra o conhecimento.
Se o nosso propósito fosse introduzir o pensamento de Cassirer deveríamos a partir de agora tratar dos três volumes de sua Filosofia das formas simbólicas (Philosophie der symbolyschen Formen, 1923, 1925, 1929). Como não é nossa meta, torna-se mais apropriado vir-se à questão da metáfora.
Grande parte deste bloco foi dedicado à procura de ultrapassa da visão estereotipada da linguagem. O mesmo há de ser feito agora a propósito de um dos seus principais instrumentos: a metáfora. Usualmente, dela se pensa como uma imagem do sentido lexicalizado. Algo, em suma, trivial, banalizado pelos oradores e complicado pelos poetas. Ora, o que pretendemos demonstrar é que esse juízo não vale mais do que para a metáfora convencional, a exemplo das que as transmissões mediáticas não se cansam de repetir. Contentemo-nos com o exemplo mais convencional possível: “Fulaninha é uma perfeita rosa”. Mas, de posse de tal informação, que se diria perante a abertura de um poema famoso como A Terra devastada (The Waste land):
April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain [1]
Diferençar entre a metáfora banal, mero recurso conversacional, e a fecunda, não há de ser empecilho para se reconhecer a maior complexidade que ela assume na poesia da modernidade. Ela é implicitamente reconhecida em artigo do fim do século XIX, assinado por Mallarmé, “Crise du vers”. Destaco algumas passagens básicas:
“A literatura aqui sofre uma crise estranha, fundamental” (Mallarmé, S.: 1886 – 1892 – 189 , 360); ela decorreria da desobrigação do poeta ante a rima. Nos modelos que referia, não dispunha agora mais do que “réserve et abandon” (idem, 361). Em seu lugar, o poeta e eventual prosador, encontrava o império estabelecido do musical. E, em correspondência, duas consequências que permanecerão decisivas na poética contemporânea (de qualidade): “Falar não concerne à realidade das coisas senão comercialmente; na literatura, isso se contenta em fazer-lhe uma alusão ou em distrair sua qualidade a que incorporará alguma ideia. (…) A obra pura implica a disparição elocutória do poeta (…) (ibidem, 366).
Como é frequente suceder com textos capitais, deles se extraem consequências que estarão longe de ser unânimes. Sem que cite a fonte, mas a conhecendo, Gerald L. Bruns dela faz uma inferência, da qual discordo:
(…) A poesia é uma espécie muito diversa de fala que exprime um pensamento; ela requer um ato da mente que transforma o pensamento em som – som que exibe seu significado não como ideia, mas simplesmente como som (Bruns, G. L.: 2001, 85)
A melhor maneira de negar que a musicalidade mallarmaica se confunda com a absolutidade do sonoro pareceu-me recorrer ao testemunho de um poeta qualificado. Em correspondência privada e, obviamente, sem se referir à passagem citada, Augusto de Campos testemunhava em nome dos participantes do movimento concreto:
Uma diferença que vejo entre a poesia concreta brasileira e a internacional (europeia, americana) –é que a brasileira é prenhe de significados (Verbovocovisual), enquanto as demais se limitam quase sempre à beleza visual, como os poemas-figura ornamentais do barroco europeu (Campos, A.: e-mail de maio de 2016)
Procuro contextualizar a razão da maior complexidade do poema na modernidade. Levanto a hipótese de que ela é uma decorrência direta da perda da visão religiosa da realidade. O que se convencionou chamar de a morte de Deus provoca a perda de uma expectativa ordenada e estabilizada do mundo e da vida. Com isso, a atividade poética ao mesmo tempo que se marginaliza, i. e., deixa de fazer parte do aparato do discurso oficializado, ganha em eficácia. Essa, não mais orientada por uma concepção de permanência – a vida mortal tem por detrás ou acima de si o lugar que lhe será conferido de acordo com as ações cometidas – é tentada a experimentar, em sua linguagem, novas combinações. Baste-nos lembrar o paradigmático Un coup de dés, cuja complexidade não se restringe à combinação verbal, pois se estende ao uso do espaço em branco da página em que se deposita o poema. Embora pouco competente, recordo ainda a pintura abstrata.
Não se diz que tal complexidade formal ou a diluição, ou menor desaparição do figurativo ofereça necessariamente resultados positivos, mas apenas ser inegável a dificuldade muito maior de recepção e efeito da arte contemporânea. Seu ressalte é tanto mais acentuado perante a banalização da linguagem com a expansão da rede mediática. Banalização tanto mais de lamentar porquanto o desenvolvimento técnico dos recursos de apresentação poderia provocar a ampliação do interrelacionamento entre as pessoas. Por que assim não sucede senão por efeito da produção capitalista? Com o desaparecimento da opção socialista, sucedida bem antes da extinção do bloco soviético, pois decorrente da ditadura stalinista, o capitalismo se tornou o único sistema a comandar o mundo. Encontramo-nos pois diante do impasse: por um lado, a poesia de respeito se converte progressivamente em linguagem extremamente minoritária, por outro, a linguagem dominante, sob a suposição de ser técnica e científica, é cada vez mais repetitiva, corriqueira e banalizada. (Entre uma e outra, a linguagem das autoridades jurídicas é tão só complicada, latinizada e, em nome da justiça, parcial).
Temos em nosso país um exemplo evidente desse conflito. Refiro-me ao que sucede com o movimento concreto. Com o desaparecimento precoce de um crítico da qualidade de Mário Faustino e de um tradutor do peso de José Lino Grunewald, assim como de cofundadores do movimento, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, o concretismo de inconteste qualidade, tanto como produtor, quanto como tradutor, veio a se restringir a Augusto de Campos. É certo que ele é premiado internacionalmente e sua presença se faz sentir em certas redes sociais, portanto que sua produção não é absolutamente solitária, mas nada disso isso provoca a extensão da corrente. Seria entretanto arbitrário considerar que do fato é responsável apenas a banalização da linguagem mediática. Mais pontualmente, esse é o resultado do perfil que permanece ativo no pensamento nacional: dele, continua distante o ato mesmo de pensar, agora sob a pressão das formas do identitarismo, da questão dos gêneros, do testemunho e do documental. Sem se negar a importância de alguns deles – a questão do gênero e a nítida diferenciação entre documento e ficção – seu caráter absoluto não permite, para falar com Cassirer, o uso da função dinâmica, propriamente formativa da linguagem, e não só seu papel de instrumento eficiente.
Sem nos determos, tal esterilidade se apresenta na dificuldade, inclusive na academia, de aceitar-se o exercício da teorização. (Estendermos a respeito nos levaria a falar da realidade dos cursos de letras).
A exemplo do que fizemos a propósito da linguagem, de que começamos a tratar com a fábula utilizada por Flora Süssekind, preferimos, no trato da metáfora, desenvolvê-la o quanto possível por casos particulares – Mallarmé e os concretos. De maneira abstrata, restringimo-nos a recordar a passagem capital da Poética aristotélica (cf. Aristóteles: -, 21, 57b, 25ss). O filósofo grego apresentava duas concepções de analogia. A primeira era constituída pela analogia perfeita, correspondente à fórmula em que dois nomes, por terem uma propriedade comum, são considerados análogos (o cravo é branco, a inocência sem mácula, portanto o cravo é análogo à inocência). A segunda configura a analogia imperfeita, porquanto o segundo nome – no caso do exemplo acima, a ‘inocência’ – não encontra correspondência compatível com o primeiro nome.
Se a analogia perfeita engendra uma metáfora pobre, em troca, a imperfeita é responsável pela desejável. Acrescente-se: da pobre não há mais nada a dizer – além de descartá-la; da rica, ao invés, a propriedade que se lhe dá, é sempre passível de ser substituída por outra. Na fábula acima lembrada, o parasita está para o hospedeiro, assim como o estrago que ele causa está para as instituições democráticas. Estas não foram dadas previamente, apenas se mostraram válidas, considerando que o parasita era identificado com nosso atual governo. Nada, contudo, impedirá que a passagem do tempo provoque que o parasita e o que ele destroi recebam outras identificações. A metáfora é rica justamente porque a atualização do termo que falta na analogia imperfeita é passível de designar outras situações e a interpretação proposta não impede a existência de outras. É a própria fecundidade da metáfora rica que a separa do significado lexical congelado.
Sua compreensão nos afasta de seu entendimento banalizado. Assim sucede desde os gregos e corre pelos séculos até o XVIII. Oferecemos um pequeno exemplo. Como A Divina comédia foi reconhecida desde seus contemporâneos como um grande poema, tentou-se defini-la, no Renascimento, como poema teológico, e não por sua potência metafórica. Não por acaso a definição não prosperou pois a teologia não podia ser comparada a um gênero então tomado como ornamental ou então como imitatio de um modelo.
No século XVIII, do ponto de vista dos gêneros literários, a grande novidade é o romance. É bastante sabido, a partir sobretudo do romance inglês, que seu enredo se queria montado a partir de situações cotidianas. Essa era a maneira por excelência de escapar dos corredores da corte e ter sua leitura estimulada pelo público anônimo e capaz de ler. Em que consistira a excepcionalidade primeira do Life and opinions of Tristram Shandy (1759) de Laurence Sterne (1713 – 1768) senão em romper com a roteirização do cotidiano e a consequente linearidade do enredo? (Lembrá-lo é indiretamente acenar para a incrível intuição de nosso Machado em escolhê-lo como modelo).
O prosaísmo do romance correspondia a uma exigência contemporânea – o público principiava a crescer, com ele, o cotidiano a substituir os enredos mitológicos ou os modelos clássicos gregos e latinos. Tal exigência, no entanto, respaldava a manutenção dominante nos séculos precedentes: o critério da imitatio, deixava de ser das obras clássicas e incorporava o cotidiano. Pouco depois, o romantismo, que se estenderia por toda a Europa e por suas colônias americanas, negaria ambas as acepções da imitatio em favor da expressão da individualidade. Mas o critério de vigência secular não se abateria e a obra literária, passando a ser entendida como expressão do autor, vinha a ser estimada como … imitação de seu autor. Chegado a este ponto, podemos acenar para outro bloco.
Muito antes, no apogeu romano, como esclarece o filólogo Manfred Fuhrmann, fictio não concernia ao que será depois chamado de belas letras, muito menos a algo estabelecido por lei, ou seja, promulgado pela assembleia do povo, mas sim casuísticamente por um magistrado romano, a fim de que o crime de furto pudesse ser atribuído a um estrangeiro (cf. Fuhrmann, M.: 1983, 413).
Em termos mais amplos, conforme o próprio início da Institutio oratoria:
Quando se fala, com tanta frequência, em justiça, na força da alma, na moderação e noutras virtudes semelhantes, (…) seria de duvidar que o papel do orador é o principal em todas as partes em que a força do talento e a abundância da palavra são indispensáveis? (Quintiliano: -, I, 12)
Mas a questão de sua temporalidade não é tão facilmente resolúvel. Insistimos não só em que sua tematização explícita só se efetuará a partir do século XVIII, como que seu aprofundamento teórico se cumpre bem recentemente, ao passo que sua razão de ser, já objeto de indagação dos gregos, será desenvolvida por um nosso contemporâneo, Wolfgang Iser.
É a partir de anotação que Aristóteles atribuía a um certo médico grego que Iser vai iniciar sua indagação: se a vida conhece a morte, dizia o médico Alcmaion, assim sucede porque ela não enlaça a seu começo o seu fim. A ficção se origina deste desenlace e consiste em estabelecer uma ligação pelo meio. O que vale dizer, a ficção é motivada por a vida ser formada por descontinuidade e requerer o estabelecimento de conexões.
Por isso ainda a ficção é, ao mesmo tempo, um conector e uma transgressão – um e outro têm a mesma razão: ambos não são estabelecidos por fatos, mas justamente por seu oposto, algo derivado da imaginação. Acrescentemos: a ficção tem a aparência de algo ilusório, superficial e que se indispõe contra o princípio de realidade. Esta impressão a relega ao plano do ornamental, a que a maioria dos séculos (e de nossos contemporâneos) a exila. Já a segunda impressão tem a direção contrária de condensar em si o que não cabe na realidade, a que bem poderíamos chamar a realidade do irreal. Isso ficará mais claro quando tratarmos da raiz da ficção, que se fixa na cláusula do “como se”. Vistas em conjunto, as duas impressões mutuamente se anulam e provocam a preponderância da primeira, porque mais fácil de ser assumida.
Pressupostos dados, venhamos ao mínimo de sua história. É apenas no começo do século XIX, entre 1813 e 1815, que Jeremy Bentham se dedica a ela. Note-se que, embora em data assim recente, seu cuidado não tinha por objeto a concepção de literatura ou sua relação com a retórica, mas sim algo bem distante: as irregularidades da jurisprudência inglesa. Prova de um interesse estritamente pragmático está em que não tenha escrito sequer um artigo a respeito, limitando-se a anotações que seriam reunidas, no século seguinte, pelo linguista e filósofo Charles K. Ogden, na obra Theory of fictions (1932).A passagem seguinte mostra inclusive seu descaso, senão desprezo pelo uso literário do termo :
As ficções do poeta, em seu caráter de fabulador histórico ou fabulador dramático, dispondo ou não as palavras de seu discurso em forma métrica, são puras de insinceridade (…) e não visam senão a agradar, a menos que, em certos casos, visem a excitar para a ação (…) (ib., 18)
Mesmo que não tenhamos o propósito de expor suas anotações, umas mínimas considerações não devem ser descuradas. Bentham toma como a priori que o mundo é formado por entidades – mais comumente poderíamos entendê-las como substâncias. Nas entidades, ressalta a distinção entre as ficcionais e as reais. “Uma entidade real é uma entidade a que, por ocasião e para o fim do discurso, se intenciona realmente atribuir existência” (Ogden, C. K.: 1932, 10).
Quase contemporâneo de Ranke (1795 – 1886), Bentham (1748 – 1832 era muito menos positivista que o historiador alemão; tanto assim que, enquanto este entenderá a história como soma de fatos, pela definição acima se verifica que, para Bentham, o caráter de real é atribuído a certa entidade. O caráter de perceptível não lhe é bastante, sendo por isso imprescindível que sua atribuição se cumprisse “on the occasion and for the purpose of discourse”. Daí a urgência que sentia de diferençá-la da entidade ficcional. Como logo estabelecerá com uma argúcia infernal: “À linguagem, então – exclusivamente à linguagem – é que as entidades fictícias devem a sua existência; a sua impossível, mas indispensável existência (their impossible, yet indispensable, existence” (idem, 15).
Considere-se ainda que, se em data recente, Hans Blumenberg englobava a ficção em sua reconsideração da retórica, 55 anos antes, Bentham fazia algo semelhante com a inversão dos nomes: a retórica sacerdotal ou jurídica era uma forma de enganar, i.e., de atualizar o uso da ficção. As duas referências parecem mostrar a dificuldade de precisar o estatuto da ficção. Antes de novos esclarecimentos, devemos tratar do segundo antecessor: Hans Vaihinger.
Pode parecer estranho mas não é surpreendente que a segunda investida em esclarecer o ficcional, a se cumprir quase um século depois, em 1911, expusesse o mesmo descaso pela ficção na arte verbal. Mas isso deixa de surpreender se se considera tantos terem sido os séculos em que se falou da ficção sem sentir-se a necessidade de precisá-la. Para que precisar o que de antemão se justificava como mero divertimento, falsidade ou engano? Os dois precursores, por conseguinte, hão de ser lembrados pela função que concediam a um objeto de que nenhuma teoria do conhecimento havia explicitamente considerado.
Se Bentham superpusera o ficcional à extensão da retórica sacerdotal e jurídica, Vaihinger mais o estendera ao tornar o real confundido com a indagação do ficcional. Mas não só por isso eles não coincidiam: o que em Bentham tinha o peso do material, conquanto reconhecido por ser pela linguagem, converte-se um século depois na ênfase do subjetivo.
Demonstra-o a leitura que Vaihinger faz da “coisa em si kantiana”. O conceito kantiano é considerado uma ficção, confundido com um mero instrumento de cálculo; pela ficção, a realidade torna-se calculável. Tendo êxito nesta função, a “coisa em si”, será depois abolida. “(…) Para o nosso ponto de vista, a sucessão e a coexistência das sensações são o real derradeiro, a que se acrescentam dois polos, objeto e sujeito” (Vaihinger, H.: 1911, 112).
Pensado como um instrumento de cálculo, o princípio kantiano será então desmontado. Assim, mais amplamente, o ficcional é apenas uma ferramenta útil na construção de conceitos. Deste modo, mantendo-o em confronto com a argumentação kantiana, a interpretação ética se apoia em um fundamento de mesma espécie – Deus, a imortalidade, a punição, etc. Em uma visão mais geral, Vaihinger divergia da interpretação kantiana da ética por entender que ela impunha uma base ideal, por si não integrável à realidade. As ficções são duradouras enquanto instrumentos. O legado kantiano era deformado por ser lido positivisticamente, i.e., pelo primado do científico.
O desencanto que mantenho quanto à argumentação de Vaihinger começa com sua reiteração na utilidade a que sujeita as ficções. Para melhor entendê-lo, fixemo-nos no que entende por realidade e o que concede ao ficcional. Para fazê-lo, a transformação a que submete a “coisa em si” não é bastante. A elaboração puramente mental – a sucessão do movimento e as sensações provocadas por ela – reduz o mundo à elaboração subjetiva que dele se faça. O que chama de “ficção originária” limita-se à elaboração mental. O que vale dizer, a ficção não provoca uma forma discursiva diferenciada, pois se restringe a ser uma armação útil e provisória, comum a toda construção discursiva. Noutras palavras, o positivismo do autor deixa de considerar a ficção como ornamento, i.e., integrável à retórica, para torná-la peça de uma engrenagem, a partir de certo momento dispensável. Mais concretamente, a ficção é submetida ao império do conceito, como uma serva útil e cordata. Instrumento de uso do conhecimento, a hipótese de Vaihinger é um instrumento que favorece o domínio das coisas e sobre as coisas. Como então seria de estranhar que o autor não tivesse nada a dizer sobre a ficção poética? No seu comum desprezo por ela, Bentham e Vaihinger concordavam. Se a ficção tem a propriedade de ser útil, a ficção poética ocupa um lugar à parte e nada privilegiado: é posta entre o dogma e os instrumentos de cálculos – é desprezível quando deixa de ser útil.
Nenhum dos obstáculos enumerados fez impossível que, no fim do século passado, Wolfgang Iser, ultrapassando o cientificismo de Vaihinger, tornasse de algum modo valiosa sua contribuição para pensar a ficção poética. Dizia ele:
Uma representação que carece de correspondência com a realidade, é a negação daquilo que caracteriza o dogma e a hipótese. (…) Portanto o ato vazio de representação torna-se apreensível como um suplemento que não existe por si e que, em consequência, pode-se articular a qualquer conteúdo possível, pois esse suplemento não é determinado por uma correspondência com a realidade (Iser, W.: 1991, 241-2, grifo meu)
Essa reviravolta era possível pelo realce que o teórico de Konstanz dará à cláusula do “como se”. Recorrendo à passagem já aqui referida, pode-se mais redondamente dizer: à medida que se põe no meio entre o fim e o começo da história real de uma existência, a ficção, fundando-se em um “como se”, completa e transgride a história real, pois não se funda em uma fatualidade antes ignorada. Por isso, a ficção é incomparável às formas discursivas que se mantêm presas à análise da realidade. Melhor dito, se as formas discursivas que pretendem decifrar a realidade têm por fundamento o conceito, a ficção, por excelência a que temos chamado de ficção interna, encontra seu instrumento de base na metáfora, ou seja, no produto de uma analogia incompleta.
O nome de Iser foi destacado pelo papel decisivo que desempenhou na recuperação de Vaihinger para uma teoria da ficção. Mas não passaria de estreiteza se aí encerrássemos seu destaque. Muito mais do que descongelar Vaihinger, assim como ressaltar parte da teorização de Ingarden, Iser é responsável por uma guinada decisiva, na abordagem contemporânea da ficção literária. Refiro-me à constituição da estética do efeito (Wirkungsästhetik). Para dizê-lo esquematicamente, ela consiste (a) em realçar a importância da fenomenologia husserliana para a apreciação do ficcional, (b) assim é feito pelo destaque de que o texto ficcional não está completo por sua escrita por alguém, porquanto sua atualização só se completa pela intervenção do leitor: “(…) A literatura oferece a oportunidade de formularmo-nos a nós mesmos, formulando o não-dito” (Iser, W.: 1976, II, 93). Dito de maneira mais explícita, depender o ficcional mais do metafórico do que do conceitual faz com que seu texto contenha mais do que declaraa letra impressa. Isso equivale a afirmar que “o texto não se propõe a reproduzir as disposições do leitor, mas a agir sobre elas e modificá-las” (idem, 85). Para que, no entanto, a participação do leitor seja consistente será preciso que sua atividade “seja de algum modo controlada pelo texto” (ibidem, 105). O que vale dizer – conquanto a intervenção do leitor não feche o texto em si mesmo, i. e., se sua interpretação permanece sujeita a outras leituras e assim só deixa de suceder quando o próprio texto deixa de cativar a recepção, o que equivale a declarar que o texto se desvincula da realidade que o envolve – tal intervenção se coordena com o esquema cognoscitivo estabelecido ou admissível pela letra do texto. (Não se trata de reiterar a “morte do autor”, mas sim a participação do polo do leitor). O texto ficcional tem sempre uma dupla autoria, a de quem o escreveu e a daquele em que provoca um efeito que se atualiza em palavras e frases. A referida dualidade estabelece a comunicação específica do ficcional: “(…) O processo de comunicação se põe em movimento e se regula não por causa de um código mas mediante a dialética de mostrar e ocultar” (ibi., 106).
Esperando que os esclarecimentos acima seja suficientes, procuremos pensar na extensão a que a ficcionalidade remete, em suas espécies, e na consequência que passa a ter para uma teoria do conhecimento.
Extensão: considere-se que os séculos que consideraram prescindível precisar o que na Antiguidade o direito romano entendia por fictio são também aqueles que, conforme Heidegger, julgaram dispensável dedicar-se à concepção de Ser. Sua indagação seria descessária porque de antemão sabe-se que é o Ser. No caso de curiosidade, bastaria recorrer ao que dele já haviam dito Platão e Aristóteles). Em troca, na medida que se aprofunda a indagação do ficcional, constata-se que dele só se isenta a linguagem matemática[2].
Embora com um desvio considerável, a nota introduzida permite continuar a linha de pensamento. Não estamos habituados a considerar a matemática como o recurso por definição exato e insofismável? Sem embargo, a consideração seguinte é passível de ser feita: que significaria que as próprias teorias matematicamente fundadas variam e são modificadas senão que elas contêm uma parcela mutável, i.e., não convertíveis no que a filosofia clássica entendia como a essência de algo? Se há portanto alguma afirmação universal é que a mais matemática das formulações contém algo que não se confunde com a verdade em si, i.e., que também a matemática é uma linguagem e não a extração de uma propriedade do objeto a que se refere.
Na tenativa de ser mais preciso, recorro a uma reflexão derivada de O Ser e o tempo (1927). (Como seria arbitrário partir-se da conclusão de Blumenberg, que ironiza a concepção heideggeriana, que considera o Sein variável de acordo com as condições da Dasein (existência) (cf. Costa Lima, L.: 2015, 170 ss), levaremos descritivamente em conta que os enunciados do Ser remetem aos estados de ser e de existir).
Por estados de ser entendemos aqueles em que prepondera a apreensão de propriedades do objeto indagado, ao passo que estados de existir são aqueles em que dominam traços temporais do objeto indagado, entendendo-se que a temporalidade implica a interrelação de características do objeto com o sujeito da indagação. Se admitirmos a diferenciação, será aceitável dizer que as ciências, por excelência as ciências naturais, são aquelas em que a apreensão do estado de ser se impõe sobre a fusão do objeto com o sujeito. Mas, com independência das ciências naturais, que se supõe armadas sobre um tripé matemático, não se costuma tomar as ciências em geral, portanto também as ciências sociais, como um campo que se isenta da ficcionalidade? Essa expansão parece-me questionável.
Meu argumento parte da narrativa histórica. E tem por fundamento o que Reinhart Koselleck desenvolveu sobretudo em “Ficção e realidade histórica” (“Fiktion und geschichtliche Wirklichkeit”, 1976). O historiador lembra as várias fontes que concedem à escrita da história a função de declarar a “verdade nua”, sem adornos ou belos adereços. E encontra em Ranke sua afirmação majestática: próprio da história seria tudo (e tão só) “como foi propriamente (“wir es zugleich gewesen”) (cf. Koselleck, R.: 2021, 112).
Sem negar a diferença entre faticidade e ficcionalidade, Koselleck acentua que “res factae e res fictae são manifesta e diversamente entrelaçadas, em vez de separadas, enquanto traços de atividades ou campos de objetos de dois grupos disciplinares distintos” (idem, 115). Daí que “cada texto ficcional pode então, de modo excelente ou menos bom, (…) ser fundamentalmente proveitoso como testemunho para a facticidade” (ibidem, 118).
Contra a exclusividade factualidade de Ranke, mantida com quase exclusividade pela historiografia contemporânea, Koselleck assinala que os documentos históricos não se esgotam no que sustentam seus testemunhos:
(…) Os testemunhos, em um sentido compreensível e também refinado, são por nós tomados apenas como relíquias do que houve. A realidade da história daí derívada é, ao contrário, um produto de possibilidades verbais, de modelos retóricos e de passagens metodológicas, que, por fim, se reúnem em uma narrativa ou exposição. O resultado não é a restituição de uma realidade passada, mas sim, formulando com certo exagero, a ficção do fático (ib., 124-5, grifo meu).
A passagem é fundamental para a expansão de uma tese que apenas esboçamos. Se as “possibilidades verbais” exploradas pelo historiador estão longe de ser ser comparadas às que são praticadas pela ficção literária, tal não sucede, necessariamente, por uma questão de competência verbal, mas sim porque “o historiador permanece subordinado à instância de controle da realidade constritora. É uma instância de controle de natureza negativa, de que resulta o método histórico. Ou seja, ela não admite enunciado algum que não passe pelas tenazes da leitura das fontes, e as fontes têm resistência própria” (ib., 124 – 5).
Por que, cabe indagar, o fático e o fictício se entrelaçam? Porque a escrita da história não se descarta das fontes abordadas, a funcionarem como “testemunhos do que houve”, ao passo que a história os extravasa porque é derivada de “possibilidades verbais”. “A história, com efeito, nunca se consuma sem a linguagem, mas, ao mesmo tempo, ela é sempre, para mais ou para menos, diversa da linguagem” (ib., 121).
Uma atestação derradeira é fornecida por ensaio posterior do mesmo historiador, “Sobre o sentido e o não sentido da investigação histórica” (“Vom Sinn und Unsinn der Geschicte” (1997):
Só se pode dizer o que de fato sucedeu se todos os participantes, inclusive os mortos, condenados ao silêncio, expressarem suas versões alternativas. Até agora, para cada historiador permanece em vigor a regra jurídica do audiatur et altera pars (que também seja ouvida a outra parte). Em suma, antes que se possa postular a dita história real ou propriamente dita, devem ser analisáveis as alternativas das percepções que se anulam entre si (Koselleck, R.: 2021, 92)
A análise, por certo rápida, permite um passo adiante – ainda que mais rápido. Só as atividades cognitivas que pretendem declarar o estritamente dado pela natureza escapam da energeia da linguagem. A ficção não se confunde com essa energia, mas um traço de ficção penetra onde o resultado cognitivo não seja testemunho do que houve. O fato de as ciências, mesmo as ditas exatas, terem uma história significa que elas não se restringem a reproduzir o que antes delas já havia. Ou seja, a história, qualquer história, registra a não essencialidade do que se conhece, decorra ela do modelo interno possuido pela matemática ou da atualização de uma fração ficcional.
Dou por concluída as considerações genéricas sobre a ficção e venho a uma parte mais específica. O fato de, na hipótese aqui desenvolvida, a ficção ter uma incidência ampla não impede que haja diferenciações dentro de si. de imediato de Devemos de imediato distinguir entre o que tenho chamado de ficção interna e ficção externa.
Por ficção interna chamamos o que se costuma designar por literatura. O termo comum, ‘literatura’, é pouco apropiado porque muito do que é literário não se confunde com o discurso ficcional. Tenham-se como exemplo os casos analisados por Freud, – ele não seria o único auitor. Lembrem-se Pascal, Bergson, Lévi-Strauss, pensadores com uma extrema capacidade de verbalização. No sentido amplo do termo, literatura ainda abrange aqueles textos que, tendo uma função diversa de ser um meio entre o que, no plano da realidade, se mostra como começo e fim, se caracterizam pela exploração refinada e exemplar da linguagem. De um estrito ponto de vista discursivo, eles se caracterizam por pertencerem também a outra forma fiscursiva. Os exemplos são vários e, com alguma frequência, aparecem nas ciências sociais. No sentido restrito, a literatura se realiza na ficção interna, aquela que, nos termos de Iser, as incertezas da vida são preenchidas imaginativamente. Fundadas no eixo metafórico, sua excelência dependerá da capacidade autoral no uso do metafórico. Ainda com base em Iser, costumamos dizer que as ficções internas se estabelecem com base em um tripé. Elas partem da concepção de realidade vigente em um certo espaço e tempo, ou seja, de um horizonte do que, em um aqui e agora, se concebe como mundo. Deste arranque, deriva o nível da verossimilhança. Embora seu papel seja secundário, não é menos indispensável porque sem ele o receptor fica sem amarras para entrar no nível decisivo, o da exploração plena da imaginação. Se a verossimilhança é criada por semelhança com a realidade do autor, o nível decisivo é formada por diferença. É por sua articulação que se concretiza o “como se”, cumprido por cada obra em particular. (Acrescente-se de passagem: sua análise e teoria não se processam dentro do mesmo processo discursivo, i. e., não têm a metáfora como recurso dominante e muito menos pertencem ao campo do ficcional – muito embora, se ainda for preciso dizer, contem com recursos metafóricos e com o uso do ficcional – porque as operações críticas que hão de ser cumprdas precisarão da dominância de um lastro conceitual. O que vale dizer, conquanto o presente ensaio tenha o própósito de nos aproximarmos do ficcional, ele não pretende ser ficcionalmente escrito).
Venhamos à ficção externa. A teorização estabelecida por Iser não tem aqui qualquer responsabilidade. Recordemos que, na ficção interna, o primeiro vetor, a verossimilhança, implicava um comprometimento com aspectos da realidade envolvente, logo substituído pelo vetor que será determinante, a diferença, em que o fictício impõe a dominância da imaginação criadora. Na ficção externa, ao contrário, o fictício estrangula o imaginário, porque seu propósito não é transgredir a ausência de um meio na apresentação do real mas sim prolongar o que se toma como real, para que empreste ao texto o caráter de retrato da realidade. (O exemplo prototípico é fornecido pelo ritual do cotidiano. Alguém ao encontrar-se com um conhecido o sauda com um “como vai?” ou semelhantes. É sabido que a pergunta não é para valer. Como tampouco a resposta: “tudo bem”. Pergunta e resposta, por não conterem algum intenção verdadeira, têm um conteúdo ficcional. Sabemos contudo que não é bem assim. Para prová-lo basta que, na próxima vez que encontrarmos um conhecido, não usemos a fórmula ritualizada. A consequência será potencialmente desastrosa. Ou seja, o conteúdo só aparentemente era ficcional. A contraprova assinala que sua exigência era obrigatória. Ou seja, que sua convencionalidade partilha de um pacto (estranho pacto) com a veracidade. Sintetizamos a situação tomando-a como configuradora de uma ficção externa (ou aparente).
A distinção seria suficiente se não deixasse excluído o que aparece noutras modalidades discursivas, sobretudo, como já se disse, nas ciências sociais e no ensaio. À terceira espécie corresponde o que caracterizamos acima como dominância do aspecto de ser sobre o aspecto existentivo.Tomo como exemplares os casos freudianos. Em princípio, pela excelência verbal com que são compostos, cabem no que chamamos de literatura no sentido amplo. Mas a recordação do caso analisado na Psicopatologia da vida cotidiana deve ser exaltado porque explicitam os dois traços definitórios da terceita espécie de ficção: (a) conter uma marca ficcional (b) não prejudica seu cunho científico. Consideremo-lo com algum cuidado.
Em uma viagem de trem, Freud narra a história de um paciente, sucedida em região próxima de onde se encontravam. Dentro do relato, procura lembrar-se do nome de um certo pintor e, em seu lugar, sempre aparece o nome de outro. Este é o enigma que a indagação de Freud procura decifrar.
Os dados preliminares capitais para a interpretação proposta para o esquecimento do verdadeiro nome do pintor consistiam em (a) Freud lembrar-se da informação que lhe transmitira um médico amigo, que vivera muitos anos na Bósnia-Herzegóvina: os turcos aí residentes a tal ponto estimavam a potência sexual que identificavam seu enfraquecimento com a proximidade da morte; (b) um pouco antes da viagem indicada, Freud fora informado de um paciente seu que se matara em razão de um distúrbio sexual. Em ambos os casos, portanto, era concretizada a ligação entre “morte e sexualidade” (Tod und Sexualität) (cf. Freud, S.: 1901, 8).
É a partir destes dados – e só a genialiadade do intérprete foi capaz de conjugá-los – que derivará o entendimento freudiano para a estranha substituição de Signorelli por Boticelli e Boltraffio. Quanto aos termos substitutos, desde logo Freud assinala a duplicação da sílaba inicial. A seguir, como a continuação do segundo termo, reitera e o nome do lugar em que recebera a notícia da morte de seu paciente, Trafoi. A reiteração do “Bo” não é menos motivada pelo nome da região da Bósnia, de onde viera a informação engendradora do par “morte e sexualidade”. Em suma, o esquecimento nada tivera de arbitrário e acidental. Muito menos, a articulação dos nomes que poderíamos chamar de tampões. Tampões de quê senão do recalque em aceitar a estreita ligação entre morte e sexualidade? Recalque que não teria tamanha incidência se fosse verdadeiro tão só como crença de uma certa população, de uma certa região ou havendo ocorrido com o infeliz paciente.
Seria absolutamente injustificado que alguém que se dedicava a penetrar nas artimanhas que cada humano prepara para si mesmo não percebesse que seu próprio esquecimento dele reclamava ser esclarecido. Conquanto o próprio Freud não chamasse a atenção sobre esse detalhe, a situação provocadora de todo o enigma não se dava, como poderia parecer, em um sonho – a forma discursiva que chamaríamos de ficção espontânea. Ao contrário, era à luz do cotidiano desperto que o recalque mostrava sua força. O recalque terçava armas com o consciente, no próprio terreno em que a percepção e a memória teriam as condições mais favoráveis.
Passemos bem rapidamente às consequências do que vem a se ressaltar para uma teoria do conhecimento. A base tradicional desta tem sido o caráter absoluto da verdade. Nessa base tradicional, a verdade não se afirma tão só no sentido perceptual senão que seria uma propriedade metafísica, transcendentalmente inerente ao ser humano. A verificação, ao invés, de que a ficcionalidade se estende muito além abala a crença arraigada na tradição do pensamento ocidental, assim como mostra a unilateralidade do privilégio concedido ao conceitual. Em seu lugar, há de se afirmar que conceito e metáfora são os eixos da linguagem.
Não concluímos o ensaio sem recordar a dificuldade que o espera. O conhecimento mais difícil de ser prolongado é aquele a propósito do qual correm versões parciais, um tanto corretas, outro tanto ligadas a um bom senso grosseiro. Entre nós, isso sucede com excelência com o que costuma ser chamado de literatura. Ao atacarmos as ideias usuais de linguagem, metáfora e ficção, já nos expomos a esse risco. Porém o maior de todos concerne à literatura.
Rio de Janeiro: dezembro de 2021
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[1] Abril é o mais cruel dos meses, germinando / Lilases na terra morta, misturando/ Lembranças e desejos, excitando/ Com chuva primaveril a tórpida raiz (ttrad. De Idelma Ribeiro de Faria: 1985, 34)
[2] Há alguns anos, quando procurava estabelecer o alcance possível de uma teoria do ficcional, em palestra no Centro de ciências físicas, declarava que uma parcela de ficcionalidade penetrava no próprio enunciado matemático. Aproveito a oportunidade do convite que me é feito, para retificar o então dito. Aqui me escuso do passo em falso. Era levado a pensá-lo por considerar dois dados: (a) as próprias ciências matemáticas têm uma história; portanto seus enunciados mantêm uma terra incógnita; (b) deste modo, a realidade do matemático não se confunde com o que a teoria clássica do conhecimento entendia por essência (ousia), por definição, fixa e invariável. Por que então se a história das ciências matemáticas assinala que elas não se confundem com a essência por que não admitir que elas contêm uma parcela ficcional? A retificação se sustenta no seguinte raciocínio: se a essência supõe a captação de uma ordem própria ao objeto de que trata, a ordem do matemático é interna à sua própria operação. Ter o matemático uma história significa que a cognição do matemático se modifica internamente por sua diversa teorização. Tal mudança não supõe algum salto metafórico, mesmo porque a matemática ignora o metafórico. De todo modo, a retificação é proposta por alguém que desconhece o objeto de que fala. É provável que ela seja tão falaciosa como a hipótese anterior. A única proposta válida seria solicitar a manifestação dos especialistas.