Omar Khayyám ou quando a cosmologia se expressa em poesia
O mal maior é fazer uso da palavra para ocultar o pensamento
Nenhum físico, nenhum cientista, nos dias de hoje ousaria apresentar suas ideias sobre o mundo, suas investigações em seu campo de saber sob forma de poesia. Ao contrário, os trabalhos científicos requerem que eles sejam descritos de modo impessoal, sóbrio, frio, levando o leitor a acreditar em sua isenção, ausência de sua vontade sobre os fatos descritos, garantia de neutralidade. Uma tal orientação garante a priori ao texto do cientista um ar de seriedade que lhe permitiria acesso à academia, a ser apresentado, lido, discutido e aceito ou não pelos seus pares. Hoje, dificilmente um texto escrito em versos seria sequer lido, ao ser apresentado como um texto cientifico.
No entanto, no século 11, em plena idade média, uma voz vinda do Leste, da Pérsia, misturando astronomia, filosofia e poesia de um modo singular vai se derramar no ocidente e, em especial, em pleno século 19, permanecendo entre nós desde então.
Ao realizar a imensa tarefa de produzir o novo calendário astronômico persa, Omar Khayyám faz de seu saber dos astros, um caminho natural para a poesia e realiza a fascinante tarefa de fusão da astronomia com a poesia.
Seria fantasioso e inútil esperar que naquele século, quinhentos anos antes da revolução astronômica de Thycho Brahe, Galileu Galilei, Johanes Kepler, Isaac Newton, uma visão cientifica pudesse se instalar e ser entendida como um espelho da realidade.
Foi assim que suas verdadeiras atividades cientificas sempre foram associadas a seus textos de álgebra, das soluções exatas de algumas difíceis equações que ele demonstrou e não tenhamos reconhecimento de seus pensamentos em outras áreas do saber. Em particular, suas dúvidas, suas interrogações sobre o mundo.
Mas quando Khayyám pretende mais do que isso, mais do que limitar-se à tarefa reconhecida e meritória de resolver equações –que não despertam nenhum sentimento, a não ser a certeza de uma verdade matemática — quando produz uma visão de mundo, o que chamaríamos hoje de uma cosmologia, e o faz através de versos, essa sua visão é ignorada e desprezada como se fora pensamento de natureza outra, certamente não-científico, simples reflexão pessoal.
Possivelmente, alguém do establishment cientifico de hoje diria, referindo-se aos textos de Khayyám que eles não merecem serem lidos e, como alguns arrogantes cientistas do ocidente, afirmar que seus textos nem sequer são errados (..”it is not even wrong”!). Ou seja, não se classificam como atividade de reflexão científica na qual se poderia atribuir um qualificativo, certo ou errado.
Entretanto, curiosamente, as incertezas que ainda hoje os cosmólogos possuem sobre o cosmos, eram apresentadas, naquele século 11, por Khayyám através de suas poesias. Com efeito, talvez sua mais notável herança tenha sido seus pensamentos sobre a origem e evolução do universo e o significado de sua existência. Expressa sua visão desse cosmos eterno, sem começo nem fim, com um simbolismo matemático simples, universal, um círculo e o faz em forma de poesia:
Esse círculo dentro do qual vir e ir
Não têm origem e nem algum fim,
Quem poderá contar-nos verdadeiramente
De onde nós viemos e para onde vamos?
Omar, astrônomo, se questiona sobre aquilo que não vê no céu: a origem e o sentido do mundo. Rejeita as certezas impostas pelo poder central e exibe uma revolta contra os religiosos.
Um homem vive só – não é ateu nem crente.
Não é rico nem pobre — vive no presente.
Descrente da verdade, não afirma nada.
Quem será este ser – tão triste e tão valente?
Sua crítica à religião lhe valeu a perseguição quando o sultão Malik Shah que o protegia e lhe dava ambiente para realizar suas observações astronômicas morre. Omar é então perseguido por suas ideias, em particular pelos religiosos graças a versos em que explicita sua irreverência
Quantos Sábios e Santos, com tanta fluência,
Diziam ter desvendado o Enigma da Existência!
Charlatães do saber, foram escorraçados,
E a boca, entregue ao Pó, calou toda eloquência.
Ao questionar sobre nosso saber, assim como o faz Khayyám, devemos refletir sobre o sucesso da ciência moderna em afastar as crendices populares que impediam as transformações, boas e más, que a ciência espalhou pela sociedade. Como consequência, perguntar como é possível que ainda hoje existam ingênuos que, como na idade média, se deixam guiar por negações religiosas às reflexões da ciência.
Por fim, aqui estamos nós, 950 anos depois das indagações de Khayyám, perscrutando continuamente os céus e, através dos astros, imaginando esses múltiplos momentos de evolução desses outros universos que vieram antes e virão depois deste.
E, com essa prática, conseguir dissipar as incertezas medievais que transbordam dos versos de Khayyám sobre o conhecimento real do cosmos, mas, infelizmente, não todas.
Referências
Rubáiyát, memória de Omar Khayyám (Apresentação de Luiz Antônio de Figueiredo) Editora Unesp, 2012.