Por uma tentativa de reencantamento na vida moderna: a técnica como aparato de ressensibilização estética
No que diz respeito à modernidade ocidental e, principalmente, à condição do homem moderno, podemos propor alguns prognósticos que nos levam a um panorama interessante: para Georg Simmel, em As grandes cidades e a vida do espírito (1903), é inegável que o ritmo frenético que envolve o cidadão da cidade grande cotidianamente o condiciona a uma atitude de reserva, um caráter blasé. Essa indiferença aparente, seja ela simulada ou internalizada, é um mecanismo de sobrevivência. Com um número tão grande de estímulos e ameaças possíveis e simultâneas, o homem moderno se recolhe, adotando uma postura automatizada. Oportuno salientar, entretanto, que, para Simmel, não se trata de não enxergar as coisas, como os parvos, por exemplo: o filho da cidade grande percebe, apreende, mas as sente como nulas, cobertas por uma tonalidade acinzentada, melancólica. Esse efeito da modernidade já havia sido ensaiado por Charles Baudelaire, em O Spleen de Paris (a melancolia de Paris, podemos traduzir), publicado em 1869.
A perda do Halo e Os olhos dos pobres, poemas baudelairianos, presentes no trabalho supracitado, analisados por Marshall Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar (1982), focalizam pontos centrais para a discussão: em A perda do Halo, é posta abaixo a sacralidade da poesia. O poeta se desprende de seu halo, que é visto, agora, caído em um lamaçal. De acordo com Karl Marx, a perda do halo é inevitável frente ao avanço capitalista. Tudo o que é sagrado é profanado. Como elucida Berman, “ninguém é intocável, a vida se torna inteiramente dessantificada”. (BERMAN, 1986, p. 111). A burguesia transforma todos que eram considerados em um plano superior, como o médico, o padre e o poeta, em seus trabalhadores assalariados. E a experiência de algo sagrado, dessa forma, é impossibilitada.
Em Os olhos dos pobres, vemos um panorama do homem moderno em meio a nova Paris, cuja planta, para Foucault, gera as condições necessárias para “a guerra encarniçada de todos contra todos”. (FOUCAULT, 2014, p. 301). Não é mais possível ignorar os pobres, as classes operárias, as, assim descritas pelo eu lírico baudelairiano, “famílias de olhos”, enquanto se tem um encontro romântico nos bulevares. Como nos diz Berman, é nesse momento que o amor moderno perde sua inocência. A presença dos pobres lança uma sombra inexorável sobre a cidade iluminada. O estabelecimento daquele amor magicamente inspirado desencadeia agora uma mágica contrária e impele os amantes para fora do seu enclausuramento romântico, na direção de relacionamentos mais amplos e menos idílicos. Sob essa nova luz, sua felicidade pessoal aparece como privilégio de classe. (BERMAN, 1986, p. 148).
A saída à rua e o desconforto do choque levam o herói de Baudelaire ao enfrentamento de sua própria dualidade, de suas controvérsias. Ao mesmo tempo em que diz se solidarizar com a família universal de olhos, pondera Berman, é sugerido o seu incômodo interior em ter que lidar com os pobres se pondo no centro da cena e, assim, tornando-se impossíveis de serem varridos para longe do alcance da visão e do espírito. (BERMAN, 1986, p. 149). O sujeito moderno é, inevitavelmente, complexo e contraditório.
Retornando ao ensaio de Simmel, aponta-se que, nos milagres e confortos gerados pela técnica na condição moderna, revela-se um espírito que se tornou tão impessoal que, a personalidade, por assim dizer, não pode se contrapor a isso. O indivíduo está submerso sob uma organização descomunal de coisas e potências. Como, deste modo, cultivar a espiritualidade, a delicadeza e o idealismo? (SIMMEL, 2005, p. 588). Perante a rapidez e a objetividade expansiva da vida nas grandes cidades, o homem moderno se resigna a exercer o seu papel como engrenagem de uma máquina.
A técnica, sem dúvidas, torna-se inseparável da modernidade. Nos diz Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1935), algo decisivo: “o modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”. (BENJAMIN, 1994, p. 169). Nesse sentido, Benjamin é propositivo, o seu quadro não é catastrófico: que, em um meio no qual os sentidos se encontram cada vez mais anestesiados, a técnica, especialmente o cinema, possa servir como um aparato para a ressensibilização estética. É evidente, contudo, que o otimismo de Benjamin não é ingênuo: a técnica é uma faca de dois gumes. O aparato técnico, incontestavelmente poderoso, pode ser utilizado para finalidades não tão generosas: por meio dos jogos de cenas, da construção de imagens, de perspectivas, torna-se possível simular uma atmosfera aurática, um halo, em torno de algo que não o possui. Vejamos o caso de Adolf Hitler, por exemplo, e da estética nazifascista presente em O Triunfo da Vontade (1935). A promessa de um guerreiro impermeável, a grande fantasia do homem moderno, conforme esboça Susan Buck-Morss em Estética e anestética: O “Ensaio sobre a obra de arte” de Walter Benjamin reconsiderado (1996) se torna possível sob a ilusão da técnica.
Em contraponto a isso, Benjamin e Buck-Morss enxergam, na técnica, a possibilidade de destacar algo que passaria despercebido aos anestesiados sentidos modernos. Através da cena cinematográfica, promover o despertar de uma consciência àquilo que o homem moderno, a olho nu, já não vê. Fazer da técnica um artefato não mais de alienação, e sim de quebra com o institucionalizado. Utilizar dessa técnica, enfim, para a construção de um novo modo de experiência.
Na modernidade, segundo Walter Benjamin em O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936), a nossa capacidade de intercambiar experiências é o que está em jogo. Estamos cada vez mais pobres no que se refere a experiências comunicativas. A minha aposta pessoal, em consonância com ele, acredito eu, é a de que, ainda assim, podemos encontrar formas de nos elaborarmos a nós mesmos neste mundo fragmentado. Por meio da linguagem, seja ela cinematográfica ou literária, suplementar o encantamento. Transpor o vazio. E, se essa for uma esperança alta demais, sigamos com Foucault como caminho de fuga: que possamos refletir, do que nos é apresentado como universal, necessário e obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto de imposições arbitrárias. (FOUCAULT, 2005, p. 347). Perante uma tradição que já não cabe e uma ideia de futuro que nada garante, nos concentremos no presente e façamos algo com ele. Comecemos, por que não, reivindicando a arte.
Como conclusão, proponho o trecho final do conto Alexandrita, do próprio Nikolai Leskov para dar contorno à aposta de Benjamin sobre a técnica: “[…] quer queiram, quer não, o velho viu e leu na pedra algo que parecia já existir nela, mas que, antes dele, nunca se manifestara aos olhos de ninguém. Eis o que às vezes significa olhar uma coisa com o espírito extraordinário da fantasia”. (LESKOV, 2012, p. 165).
Por meio da técnica, enfim, encontrar um novo modo de olhar sobre uma realidade já conhecida e, quem sabe, recuperar as afinidades singulares entre a alma, o olho e a mão propostas por Paul Valéry.
Referências:
Baudelaire, Charles. O Spleen de Paris: Pequenos Poemas em Prosa. São Paulo: Editora 34, 2020.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 165-196.
BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: O “Ensaio sobre a obra de arte” de Walter Benjamin reconsiderado. Travessia: revista de literatura, Florianópolis, n. 33, p. 11-41, jan. 1996. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/16568. Acesso em: 1 out. 2023.
FOUCAULT, M. O Que São as Luzes? In: Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 335-351.
Foucault, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.
LESKOV, Nikolai. Alexandrita. In: LESKOV, Nikolai. A Fraude e Outras Histórias. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 147-165.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana: Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 11, p. 577-591, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/WfkbJzPmYNdfNWxpyKpcwWj/. Acesso em: 1 out. 2023.