Por que o mundo tem que acabar? – Neo-apocalíptica e a Escatologia Líquida
Diariamente o mundo acaba diante dos nossos olhos, seja no cinema na atual safra de filmes-catástrofe, em séries de TV sobre Nostradamus, previsões “científicas” de algum tipo de futura catástrofe ambiental ou em algum “hoax” descrevendo cometas, asteroides ou planetas errantes que cairão sobre a Terra. Por que o mundo tem que ser destruído? No passado, todas religiões possuíam uma Escatologia: alguma narrativa sobre o fim dos tempos onde os maus seriam punidos e os bons salvos. Mas essas religiões se tornaram “líquidas”: sob os escombros das antigas religiões salvacionistas viraram pastiches que se rendem ao utilitarismo das necessidades do presente – “teologia da prosperidade”, “cabala do dinheiro” ou o islamismo dos homens-bomba. Esqueceram do futuro. Por isso, essa nova religião “líquida” e ecumênica precisa criar uma nova Escatologia, uma narrativa midiática sobre o “fim dos tempos” que junte convicções eco ambientais, geofísica e astrofísica. O componente moral da escatologia que entra em crise com a perda da legitimidade simbólica dessas grandes religiões monoteístas. Desde o pós-guerra, sob os escombros das teogonias e escatologias das grandes religiões monoteístas, há o surgimento do misticismo de massas que se convencionou chamar de New Age. As religiões tornaram-se “líquidas”: mescla de fundamentalismo nostálgico com uma colcha de retalhos que vai além do sincretismo religioso – rende-se ao utilitarismo. Essa liquefação dos grandes sistemas religiosos do passado corresponde à própria liquidez da infraestrutura econômico-financeira da ordem global – a liquidez ou a financeirização das praças financeiras conectadas em tempo real. A Globalização necessita agora de uma nova religião ecumênica que dê legitimidade às novas bases materiais. Uma nova religião igualmente sem pátria, global, feita a partir do pastiche dos escombros dos grandes sistemas religiosos.
Introdução
Se o leitor estiver lendo esse artigo é porque o mundo, mais uma vez, não acabou. Diariamente, em algum lugar da chamada grande mídia ou nos sites e blogs mais recônditos da Internet, está sendo divulgada ou repercutida alguma notícia a respeito de previsões apocalípticas sobre crises ambientais, o fim do planeta, do sistema solar ou do próprio Universo. São matérias jornalísticas que variam de um tom sério ao irônico, como “fatos diversos” ou “matérias frias”. Mas, sempre fica uma ambiguidade de fundo que fascina muitos leitores: e se for verdade?
Uma das mais recentes foi no ano passado. Um autoproclamado astrônomo russo, Dr. Dyomin Zakharovich, um pedaço do Planeta X (ou “Nibiru”) atingiria a Terra o último dia 16. Repercutido pela mídia, com toques conspiratórios sobre um suposto acobertamento dos dados pela NASA, o dia chegou e nada aconteceu.
Mas agora um respeitado astrônomo britânico, Lord Martin Rees, fala em “asteroide do Juízo Final” e alerta para a necessidade da criação de um sistema de defesa global.
Sem falar no Planeta Nibiru (ou “Planeta X”, “Hercólubus”, “Nêmesis” etc.), planeta com a massa de Júpiter, que passaria pelo Sistema Solar perturbando todas ar órbitas planetárias e jogando a Terra numa catástrofe cósmica. Turbinado pela profecia Maia em 2012, previam que o planeta gigante passaria perto de nos naquele ano.
Agora, a sua passagem foi prevista para outubro do ano passado, como afirmou David Mead no livro Planeta X: A Chegada de 2017. Como sempre, com mais acusações conspiratórias de que a NASA sabe de tudo, mas esconde do público para que apenas a elite mundial se salve em bunkers subterrâneos construídos nesse momento.
Em canais fechados de TV como o History Channel, National Geographic ou Discovery há uma profusão de séries com uma gama de variações sobre o tema: hipótese para a extinção dos dinossauros, o que aconteceria com as cidades vazias se a humanidade desaparecesse, asteroides, efeito estufa, tsunamis, derretimento das calotas polares, aquecimento global, pandemias e… as indefectíveis profecias de Nostradamus, sempre com novas interpretações.
Acrescenta-se a tudo isso a atual safra de filmes-catástrofes provocados por aliens, profecias, vírus, pragas zumbis, catástrofes climáticas e ambientais etc. como Extermínio (2002), Doomsday (2008), Cloverfield (2008), A Estrada (2009), Virus (2009), Fim dos Tempos (2008), É o Fim (2013), Interestelar (2014) e assim por diante em uma lista interminável.
Por exemplo, o diretor Roland Emmerich (Independence Day e O Dia Depois de Amanhã) afirmou que a sua insistente relação com o temas apocalípticos “é um caso de amor”.
Se a recorrência é um método científico no qual por indução podemos achar constantes, padrões e sentidos, o que poderia significar essa reincidência do tema do fim do planeta e/ou da espécie humana? Principalmente quando percebemos essa recorrência de meados dos anos 1990 até o início desse século XXI nos meios de comunicação e na cibercultura da blogosfera, sites e redes sociais.
Para pesquisadores que vão da tradição sociológica crítica como Theodor Adorno (expoente da chamada Escola de Frankfurt) até historiadores como Marc Ferro, os conteúdos da indústria cultural vão muito mais além do mero entretenimento ou material informativo.
Para Adorno, arte e produtos do espírito humano abre uma possibilidade para “desvendar o inconsciente da historiografia da sociedade”. Seriam como “sismógrafos da História” (ADORNO, 1978).
Ou especificamente no caso do cinema, para Marc Ferro todo filme é uma representação da sensibilidade ou do imaginário de uma determinada época, tornando, especialmente o cinema de ficção, um excelente caminho para a história psicossocial, nunca atingida pela análise de outros tipos de documentos (FERRO, 1992).
Mas ao falarmos de “imaginário” ou “sensibilidade” de uma determinada época, temos que precisar de que sociedade estamos falando: de uma cultura globalizada cujo polo irradiador é a indústria cinematográfica e de entretenimento norte-americanas. Cujo cinema e literatura são simplesmente obcecados pela destruição da América por monstros, eventos geológicos, meteoros, ataques alienígenas, catástrofes climática etc. – só no cinema e no rádio, Nova York e Los Angeles já foram destruídas na ficção, respectivamente, 40 e 27 vezes (FISCHER-BAUM e KALAF, 2014).
Parece que Hollywood sempre viu as grandes cidades da América como desastres à espera de acontecer, como acabou se concretizando com o atentado terrorista ao WTC em 2001. As imagens tanto na TV quanto ao vivo foram tão surpreendentes na similaridade com os filmes catástrofes que muitos depoimentos de testemunhas nas ruas falaram sobre uma estranha sensação de irrealidade. A tal ponto que pensadores como Jean Baudrillard declararam que o evento jamais aconteceu, já que o episódio não teria sido um fato histórico no sentido estrito, mas midiático – o poder da precessão das imagens ou do simulacro sobre o tempo histórico (EICHENBERG, 2003).
Porém, revisitando mais uma vez Adorno, “toda ideologia tem o seu momento de verdade”, nas palavras do pesquisador alemão (ADORNO, 1978). Toda ideologia não é apenas uma mera falsa consciência que mascara a realidade pela mentira ou ilusão. Se a ideologia for entendida como a totalidade de produtos espirituais, um conjunto de objetos confeccionados para atrair as massas, seria possível encontrar aquilo que Adorno chamava de “espírito autônomo inconsciente” – aquilo que atrai e motiva as massas para viver as ideologias como entretenimento e catarse.
Dessa forma, ao prestar atenção ao “momento de verdade” de toda produção ideológica, Adorno abre a discussão para o tema do inconsciente da cultura: o plano arquetípico ou simbólico da sociedade no sentido propriamente junguiano – quando a recorrência de um tema ou conteúdo ficcional transforma-se em sincronicidade, ou numa “coincidência significativa” (JUNG, 2011).
Em outros termos: a qual necessidade arquetípica corresponderia essa recorrência pelo tema do apocalipse ou do final dos tempos? Por que o mundo tem que acabar? Por que essa necessidade pelo fim, embalada como ficção e entretenimento para consumo de massas?
Ou será ainda que esse consumo pelo final dos tempos representaria algum sintoma, algum mal estar na cultura? O que indicaria esse, por assim dizer, sismógrafo cultural adorniano?
Desde relatos da Bíblia até obras de arte, o apocalipse conta com representações em diferentes culturas. De imediato, essas representações atenderam a agendas políticas para promover o ódio contra certos grupos. No século XIV os franceses relacionaram seus inimigos britânicos a representações demoníacas e a guerra contra a Inglaterra como o final dos tempos da luta do Bem contra o Mal.
Ou ainda com a ascensão do antissemitismo no século XIII, Jesus Cristo e seus seguidores passaram a ser vistos como cavaleiros, enquanto os judeus retratados como as forças de Satã.
Mas, por outro lado, o crescimento do Milenarismo na História (doutrina religiosa baseada na Bíblia que anunciava o regresso de Jesus Cristo para constituir um reino de mil anos) materializou uma antiga visão religiosa segundo a qual o tempo caminha inexoravelmente para um fim. Mesopotâmicos, antigos egípcios e os povos indo-arianos compartilhavam dessa mesma visão fatalista da temporalidade (FENN, 1997).
1999: o divisor de águas
Há uma evidente dimensão simbólica ou arquetípica – as diferentes representações do tema do fim em diferentes épocas e culturas. Entretanto há uma outra dimensão, secular, com a marca da atualidade – as descrições do fim numa sociedade tecnologizada e globalizada.
O ano de 1999 foi uma espécie de divisor de águas nas profecias sobre o fim do mundo. Naquele ano a chegada do novo milênio foi marcada pela confluência das profecias de Nostradamus e do “bug do milênio” – a contagem anual em dois dígitos criaria um caos informático nas redes de computadores na virada para o ano 2000, gerando desordem econômica e social semelhante ao final da primeira temporada da série Mr. Robot.
Por que um divisor de águas? Se olharmos em perspectiva os diversos apocalipses previstos para a humanidade, antes de 1999 a grande maioria girava em torno de interpretações de textos bíblicos como a chegada de Jesus para os adventistas em 1843 ou para os mórmons em 1891.
Ou ainda por pastores televisivos como Pat Robertson nos EUA que previu para 1982 um “julgamento no mundo” pelo próprio Deus.
Em outras palavras, o fim do mundo tinha uma natureza escatológica.
O estudo sobre o fim
A Escatologia é uma parte da Teologia e da Filosofia. Significa “último” mais o sufixo “logia”, podendo ser definido como “estudo sobre o fim”. Pretende tratar sobre os últimos eventos da história do mundo ou do destino final do gênero humano.
Conceito criado no século XVII pelo teólogo A. Calov, o conceito “Escatologia” vai expressar os pontos centrais de muitos sistemas religiosos do passado (fim dos séculos, ressurreição, juízo final etc.) e tensões não resolvidas dentro da Filosofia como a tensão entre o destino individual e o coletivo ou o destino do humano e o do universo como um todo.
O racionalismo vai criticar a preocupação escatológica, primeiro ao vê-la como alienação: Feuerbach achava que a imortalidade não seria realizada numa pós-morte ou ressurreição, mas na História e na imanência e por isso a preocupação escatológica apenas encobriria que a imortalidade está já presente na espécie humana (FEUERBACH, 1997); e Marx via na ideia de uma realização humana num paraíso futuro, em algum além vida, como forma de alienação ideológica para desviar a atenção do proletariado para as condições de miséria reinantes do capitalismo no presente (MARX, 1968).
Nietzsche propôs uma desescatologização radical ao anunciar a morte de Deus: a ideia de Verdade ou sentido final não passariam de ilusões da verdade, um engodo para encobrir a existência humana contraditória em um mundo sem Deus (NIETZSCHE, 2016).
Já Freud cria um movimento de des-transcendentalização com a Psicanálise ao afirmar que a realização humana já se encontrava consigo mesmo através da superação de traumas e neuroses, e não no destino final da espécie (FREUD, 2010).
Muitas religiões possuem suas profecias sobre o final do mundo, comumente associado a conceitos como “Messias”, “profetas” ou “novos reinos” que unificariam o que foi perdido antes da intromissão do pecado na História humana.
As religiões monoteístas são salvacionistas, isto é, colocam como condição para a salvação diante do fim dos tempos a vida ortodoxa em conformidade com os ensinamentos do salvador.
Se a Teogonia é o componente das religiões sobre as narrativas da Criação, a Escatologia será narrativa do destino final do gênero humano.
Para os judaísmo teremos o “fim dos dias” e posterior “era messiânica”. Os cristãos esperam o Apocalipse e o Juízo Final fundamentado nas profecias do Apóstolo João. E o Islamismo está à espera do chamado “décimo segundo Imam”. Para essas religiões salvacionistas é necessário um evento apocalíptico, o juízo final, que puna os maus e salve os bons que seguirem os preceitos para a salvação (SOFRONIOU, 2017).
É precisamente esse componente moral da escatologia que entra em crise com a perda da legitimidade simbólica dessas grandes religiões monoteístas, seja pelo materialismo da sociedade de consumo, seja por escândalos diários repercutidos na mídia: o cristianismo sempre associado aos escândalos da Igreja Católica repercutidos pela mídia (pedofilia, corrupção etc.); o islamismo associado ao radicalismo, terrorismo e intolerância; e o judaísmo associado aos crimes de guerra de Israel no confronto com a causa palestina que repercute diariamente na mídia internacional.
Escatologias líquidas
Após a Segunda Guerra mundial encontramos duas tendências aparentemente contraditórias: de um lado a crise ou o esvaziamento da autoridade simbólica das religiões tradicionais pela expansão do materialismo, niilismo e hedonismo do imaginário da sociedade de consumo; e do outro o renascimento de uma espécie de misticismo de massas com a expansão da astrologia como bem observaram Theodor Adorno (ADORNO, 2008) e Roland Barthes (BARTHES, 1980) na década de 1950 e o chamado movimento “New Age” – movimento espiritual buscando a fusão Oriente/Ocidente ao mesclar autoajuda, psicologia motivacional, parapsicologia, esoterismo e física quântica.
Parafraseando o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, as religiões tornaram-se “líquidas”: mescla de fundamentalismo nostálgico com uma colcha de retalhos que vai além do sincretismo religioso – rende-se ao utilitarismo. Como, por exemplo, no católico que participa da missa dominical em busca de paz e no meio da semana frequenta uma “mesa branca” em busca de conselhos cotidianos.
Como observa Bauman, o homem moderno não procura acabar com Deus e as formas religiosas. Simplesmente desloca para o Universo todas as realidade que o circunda. E o homem individual passa a ser o centro, e não mais Deus, o Universo. Tudo passa a existir e ter valor na medida em que lhe dê respostas para suas necessidades.
Vivemos numa era em que “esperar” se transformou num palavrão. Gradualmente erradicamos (tanto possível) a necessidade de esperar por qualquer coisa, e o adjetivo do momento é “instantâneo”. Não podemos mais gastar meros 12 minutos fervendo uma panela de arroz, de modo que foi criada uma versão de dois minutos para microondas. Não podemos ficar esperando que a pessoa certa chegue, de modo que aceleramos o encontro…Em nossa vidas pressionadas pelo tempo, parece que o cidadão (…) do século XXI não tem mais tempo para coisa alguma. (BAUMAN, p.13, 2008)
Nesse contexto de modernidade líquida, as religiões evangélicas se converteram em teologias da prosperidade, mais preocupadas com o sucesso no presente do que com a vinda de Jesus no fim dos tempos.
Ou ainda como igrejas neopentecostais juntam sessões de “descarrego” com a própria figura de Jesus para a expiação do Mal ou dos “trabalhos feitos” que emperrariam a vida pessoal do crente.
Essa liquefação dos grandes sistemas religiosos do passado corresponde à própria liquidez da infraestrutura econômico-financeira da ordem global – a liquidez ou a financeirização das praças financeiras conectadas em tempo real.
A Neoapocalíptica
A Globalização necessita agora de uma nova religião ecumênica que dê legitimidade às novas bases materiais. Uma nova religião igualmente sem pátria, global, feita a partir do pastiche dos escombros dos grandes sistemas religiosos.
Porém, há um problema: esse utilitarismo e individualismo da modernidade líquida centrado no instantâneo, fez a cultura esquecer do futuro.
Como construir uma nova Escatologia, a descrição de algum evento apocalíptico futuro que tenha a mesma função moral das escatologias do passado diante desse individualismo utilitarista da modernidade? Como agora redimir os bons e punir os maus?
Para, no final, justificar a ordem existente (seja política, econômica ou social) como condição necessária para alcançarmos a salvação. É necessária a elaboração de uma “Neo-apocalíptica”.
Uma nova Escatologia, agora elaborada pelas narrativas de apocalipses sem a presença de Deus, Jesus ou juízos finais: agora será um asteroide, um cometa, o aquecimento global, ou alguma espécie de catástrofe cósmica. Por assim dizer, uma “neo-apocalíptica secularizada”.
Um bom exemplo desse imaginário pode ser acompanhado no filme 50/50 (2011), uma comédia dramática no qual um jovem descobre que está com câncer. Ao receber o diagnóstico, ele não se conforma: “Por que? Não fumo, não bebo e reciclo o lixo todos os dias…”. Um bom exemplo de como boas condutas ambientais têm na atualidade um componente muito mais moral do que racional – no futuro, o aquecimento global (ou o câncer) poderá destruir o planeta, mas a culpa não será minha…Estarei salvo com a minha consciência.
Essa é a motivação por trás da safra atual de filmes-catástrofes e na profusão se séries pseudocientíficas na TV sobre futuras catástrofes ambientais, astronômicas ou releituras das profecias de Nostradamus – agora o “Rei do Terror” descrito nas Centúrias é o Planeta X…
Essa nova religião ecumênica da Globalização já possui uma Teogonia: o Big Bang da Cosmologia. Falta agora uma Escatologia plausível, uma neo-apocalíptica que tente juntar convicções eco-ambientais com geofísica e astrofísica.
E a Nova Jerusalém depois do fim dos tempos, a “Era Messiânica” do judaísmo, não será mais a cidade celestial, mas a imortalidade no ciberespaço cujo hardware foi construído pelas mesmas corporações que vendem o discurso do fim do mundo.
Escatologia tecnológica: Noosfera e Singularidade
É nesse ponto que encontramos o aspecto mais surpreendente dessa nova escatologia líquida em construção: o encontro do impulso religioso milenarista para uma descrição do fim com as pesquisas em Inteligência Artificial, Robótica, computadores e Internet. Aquilo que o engenheiro computacional e criador do conceito de “realidade virtual, Jaron Lanier, chama de “totalitarismo cibernético” criado a partir de uma “religião das máquinas” que, nesse momento, seria a motivação místico-religiosa por trás das pesquisas do Vale do Silício (LANIER, 2010a).
Assim como nas narrativas escatológicas, também o desenvolvimento computacional com a sua Lei de Moore (que sustenta que os computadores duplicam sua capacidade a cada dois anos) vislumbra o momento final no qual “os computadores se humanizam e seres humanos tornam-se computadores”, segundo Lanier. Para ele, noções como Noosfera e a Singularidade seria a síntese futura da realização dessa escatologia tecnológica (LANIER, 2010b).
Se para Freud, as raízes do mal estar na cultura derivam de três sofrimentos (a vulnerabilidade e finitude do corpo, a fúria do mundo exterior e os vínculos com outros seres humanos – FREUD, 2010), para Lanier no fundo todos os esforços da engenharia cibernética correm no sentido da solução desse mal estar da espécie: a busca da imortalidade através de uma gigantesca mente computacional definida como “singularidade tecnológica” que levaria o homem à imortalidade.
Os cientistas da computação são humanos, e são tão aterrorizados pela condição humana como qualquer outro. Nós, da elite técnica, buscamos alguma forma de pensar que nós podemos DAE uma resposta à morte. Isso ajuda a explicar o fascínio de um lugar como a Singularity University. O influente Vale do Silício narra uma história que seria assim: um dia, num futuro não muito distante, a Internet vai de repente ser incorporada a uma super Inteligência Artificial, infinitamente mais inteligente do que qualquer um de nós individualmente. Vai se tornar um ser vivo em um piscar de olhos e dominar o mundo antes que os seres humanos percebam o que está acontecendo (LANIER, 2010).
Segundo Lanier, tudo pode soar como muitos filmes de ficção científica (uma Internet recém-senciente criada a partir de todo o pensamento humano cotidianamente digitalizado pelas redes sociais, sites e blogs). Mas seriam ideias correntes entre os principais orientadores, patrocinadores (Cisco, Google, Nokia, Autodesk) e tecnólogos influentes do Vale do Silício.
Jaron Lanier acredita que tal motivação mística tornou-se o principal atrativo do ciberespaço. Para ele, muitos hackers têm a esperança de um dia viverem para sempre após um upload final para o interior de um computador. Lanier caracteriza essa fantasia como o início de uma “cultura de zumbis” dominado por ex-humanos que “estão preparados para deixar tudo para trás imaginando viverem em um disco rígido, interagindo unicamente com outras mentes e demais elementos de um ambiente que existe somente em um software”
Por exemplo, Robert Jawstron (engenheiro da NASA) foi um dos primeiros a propor o advento da “inteligência descorporificada”. Ele antevê o dia em que nos tornaremos uma “raça de imortais” baseados em uma mente computadorizada.
“Um dia um cientista será capaz de retirar o conteúdo da sua mente e
transferi-lo para a memória do computador. Porque a mente é a essência do ser, podemos dizer que tal cientista entrou no computador e passou a habitá-lo. No mínimo podemos afirmar que a partir do momento que o cérebro humano habita um computador ele está liberado da fraqueza da carne mortal … Ele está no controle do seu próprio destino. A máquina é seu corpo, ele é a mente da máquina… Esta parece ser para mim a forma mais inteligente e madura de vida no universo. Habitar placas de silício e não mais limitado pela duração da vida no interior do ciclo mortal de um organismo biológico. Tal espécie de ser viverá para sempre” (JAWSTRON, 1984, pp. 166-67).
Surpreendentemente é nessa confluência entre misticismo, religião e tecnologia que encontramos a questão arquetípica profunda por trás da necessidade pela escatologia: se o mundo teve um início e a inteligência humana é o que conduz o movimento histórico, tudo deve ter um propósito, um fim, um sentido – a busca da imortalidade, a transcendência daquilo que nos torna seres frágeis e finitos. No fundo, a busca da ressureição diante da morte.
Mas dessa vez sem o elemento moral do “Juízo Final” – a revelação do grau de recompensa de cada pessoa, a prova da soberania de Deus e a execução do julgamento divino. Por isso o prefixo “neo” para a descrição do novo apocalipse do fim dos tempos: o fim da História e a ressurreição como a pura realização da Razão, conectada com uma consciência planetária (noosfera) através da singularidade tecnológica – a criação de uma supra-inteligência humana que o levará à imortalidade.
Essa escatologia líquida e a neo-apocalíptica que vislumbram um final dos tempos, também produz uma mudança temporal no presente: a transformação do devir em uma espécie de contagem regressiva para um fim.
Necrospectiva
Paradoxalmente, a previsão do futuro destrói o próprio futuro ao transformá-lo em uma contagem regressiva. É aquilo que o pesquisador francês Jean Baudrillard chama de “necrospectiva”: a liquidação de todo e qualquer futuro em uma contagem regressiva. O futuro transformado em bomba relógio. O tempo não mais contado aditivamente como nas retrospectivas, mas como subtração começando do fim nas proféticas “necrospectivas” (BAUDRILLARD, 1997).
Como todo tipo de olhar que use o prefixo “retro”, a retrospectiva é um misto de nostalgia e compulsão de colecionador em querer catalogar e organizar o passado. Dessa forma, a necessidade retrospectiva é um subproduto do pensamento racionalista Ocidental de tentar encontrar nos eventos recorrências, padrões ou sentido. Lá tentamos achar lições ou conhecimentos que nos orientem em direção ao futuro.
Ao contrário, na necrospectiva as utopias ou ideologias são substituídas pela contagem regressiva do fim da História. Todo o presente transforma-se num conjunto de bombas em contagem regressiva para a explosão final: a Lei de Moore na informática, o crescimento populacional e o aquecimento global na esfera ambiental, o crescimento das dívidas globais na esfera econômica etc.
Não só perdemos a utopia como um final ideal, mas também como tempo histórico em sua continuidade. Ocorreu algo como fosse um curto-circuito, uma inversão das dimensões temporais – efeitos precedendo as causas, fins precedendo as origens – o que levou à situação paradoxal da utopia realizada, que põe um fim na própria dimensão utópica. Isso cria uma situação impossível, no sentido que exaure todas as possibilidades. Por esse ponto de vista, o problema que temos em mãos não é de mudar como a vida é vivida, o que no passado foi a utopia máxima, mas apenas sobreviver, numa espécie de utopia mínima (BAUDRILLARD, 1997, p.452).
Essa noção baudrillardiana de necrospectiva que reduz o presente como uma bomba relógio que consome o futuro permite vislumbrar a possível função de cimento ideológico das escatologias líquidas num mundo globalizado: o presente como uma “utopia mínima”, isto é, como a redução da vida a uma luta pela sobrevivência diante das catástrofes futuras – a neo-apocalíptica.
O sociólogo norte-americano Christopher Lasch procurou entender porque apesar de vivermos em uma época de confortos materiais desconhecidos em épocas passadas, vivemos obcecados por ideias de catástrofes iminentes – ecológicas, energéticas, econômicas, militares, nucleares, astronômicas etc. A preocupação da sobrevivência passaria, então, a ser o traço proeminente na cultura atual. O tema teria entrado de forma tão profunda na cultura popular e no debate político que qualquer tema se apresentaria como um questão de vida e de morte (LASCH, 1986).
Para Lasch, o comportamento da vida cotidiana passa a assumir as características mais sinistras típicas de vivências em situações extremas: auto-observação irônica, individualidade multiforme e anestesia emocional.
Lasch argumenta que por trás dessa cultura terapêutica que oferece verdadeiras tecnologias do eu (autoajuda, autoconhecimento, técnicas de desenvolvimento pessoal e das potencialidades internas) estaria uma “subcultura do milênio”: a imaginação apocalíptica derivada de fundamentos religiosos e na versão secularizada do apocalipse pregada por ecologistas (Clube de Roma), economistas neo-malthusianos (esgotamento energético e a ameaça da explosão populacional) etc.
Se este “mínimo eu” passa a ser a vivencia cotidiana num presente sem futuro, em contagem regressiva para a realização escatológica de alguma neoapocalíptica para as massas, qual a alternativa filosófica, existencial ou mesmo cosmológica para esse mal estar da cultura? É o que veremos adiante, à guisa das considerações finais.
Gnosticismo: a escatologia realizada
O Titanic já afundou. Os cavaleiros do Apocalipse já cavalgaram há muito tempo pela Terra. O Apocalipse não foi televisionado e nem foi roteirizado por uma produção hollywoodiana. Já ocorreu há muito tempo com o “Big Bang” da Criação.
Esse é o princípio da filosofia gnóstica. O Mal já estava na própria Criação. Por isso o Gnosticismo[1] sempre foi associado a uma espécie de “escatologia realizada”. Isto significa que qualquer realidade que vale a pena se desfez antes da Criação, com a queda mitológica de Sophia. O Big Bang foi o Apocalipse. Os seres humanos seriam apenas fragmentos da Divindade suprema agarrados a destroços mortos flutuando em um oceano de matéria escura.
Stevan Davies sintetizou esta tragédia cósmica da seguinte maneira: “Deus enlouqueceu e se tornou como nós” (DAVIES, 2011).
Por meio da gnose podemos encontrar o nosso caminho de volta para a divindade suprema.
Essa ideia gnóstica da “escatologia realizada” nunca foi bem sucedida ao longo da história da filosofia, mesmo sabendo que as religiões continuam falhando em prever quando a Terra vai acabar. Parece que as pessoas simplesmente não querem uma história que começa no final.
Como vimos, a Escatologia desempenha um papel importante em praticamente todas as religiões. O Gnosticismo não é diferente neste aspecto. No entanto, o Gnosticismo é único em que a distinção entre o futuro escatológico e salvação no presente começa a desaparecer.
Isto é particularmente verdadeiro no chamado Valentianismo – de Valentino, nascido em Cartago em torno de 100 DC e aluno de São Paulo quase se tornou papa. Fez uma interpretação gnóstica da mensagem de Cristo. Para ele, Cristo não foi um “salvador”, mas um “curador” já que nada há para ser salvo, pois o mundo é imperfeito não pelo pecado, mas pela obra falha de um deus criador inautêntico (HUTIN, 1963).
A posição Valentiniana no fim do mundo está intimamente ligada ao seu ensino sobre a origem do mundo. Segundo a doutrina Valentiniana, os seres humanos (personificados como Sophia) eram originalmente parte da coletividade divina ou plenitude (pleroma). O mundo se origina quando os seres humanos caem em um estado de sofrimento e de deficiência. A existência física é explicitamente identificada com este estado de queda. Da mesma forma, a dissolução do mundo e restauração a Plenitude ocorreria por meio da gnose.
Para os valentianos, as ideias cristãs sobre o fim do mundo e uma ressurreição física eram interpretações ingênuas. Por meio de experiências visionárias e rituais acreditavam que a gnose restauraria a plenitude e dissolveria a ilusão do mundo no presente. Para a pessoa que tem a gnose o fim do mundo já teria chegado!
Considerações finais: o fim do mundo como sintoma
Como vimos na Introdução desse artigo, para Theodor Adorno toda ideologia tem o seu momento de verdade. Apesar do mito do fim do mundo ter se transformado em uma franquia cinematográfica e um próspero mercado de produtos que vão desde as promessas de salvação espiritual até a salvação física em abrigos nucleares, há um elemento verdadeiro em tudo isso: o de ser um sintoma da condição humana alienada nesse mundo.
Se a hipótese escatológica de um fim onde tudo será redimido foi uma tentativa de solução para as principais tensões existentes nas religiões (a tensão entre o indivíduo falível e mortal e o Divino imortal e perfeito) e na filosofia (a tensão entre o destino humano e do Universo como um todo), ela também expressou o mal estar da condição humana em um cosmos hostil: o estranhamento e alienação em relação à existência, a desconfiança gnóstica de que seríamos prisioneiros em um cosmos hostil, nas mãos de um Demiurgo enlouquecido – desconfiança tão bem expressa cinematograficamente em filmes como Show de Truman (Truman Show, 1998) ou em Prometheus (2012).
A cada blackout onde vemos as crianças vibrarem por brincarem no escuro ou porque as aulas acabaram; a cada banco que é roubado nas telas do cinema; a cada vítima do serial killer Jason nos filmes de terror; a cada vez que Nova York vai pelos ares pelas mãos dos terroristas, ETs ou catástrofes climáticas no cinema, em todos esses momentos está latente o secreto desejo humano de que todo esse mundo hostil e sem sentido desapareça e para nos libertar definitivamente.
Por isso, toda a indústria do entretenimento explora esse mal-estar oferecendo imagens arquetípicas de libertação e quebra da ordem – rotinas que são quebradas por vilões, ETs, serial killers, catástrofes variadas etc. – para no final a ordem ser restabelecida por heróis que põem a ordem na casa nos fazendo voltar conformados ao nosso cinzento cotidiano depois que as luzes do cinema se acendem.
Por isso o fim do mundo, o apocalipse, a ressurreição ou a salvação sempre foram postergados para o futuro ou para o além. Dessa forma, a heresia gnóstica da “escatologia realizada” sempre foi esquecida. Ninguém parece gostar de histórias que começam do fim.
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor (1978), Temas Básicos da Sociologia, São Paulo: Cultrix.
_________ (2008) As Estrelas Descem à Terra – a coluna astrológica do Los Angeles Time, São Paulo: Taurus.
BARTHES, Roland (1980), Mitologias, Rio de Janeiro: Difel.
BAUDRILLARD, Jean (1997), “The End of Millennium and the Countdown” In: Economy and Society, V. 26, N.4, November, 1997, Routledge.
BAUMAN, Zygmunt (2008), Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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[1] Termo usado para designar todo um conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã. É também aplicado a renascimentos atuais desses grupos e, por analogia, a todos os movimentos que se baseiam no conhecimento secreto da “gnose”. Essa generalização pode levar a uma confusão, tornando a noção de “gnóstico” ou “gnosticismo” vaga e escorregadia. Pela natureza oculta do ensinamento gnóstico e pelo fato de muito material a respeito ser proveniente das críticas da ortodoxia cristã torna-se difícil uma descrição precisa dos antigos sistemas gnósticos. A descoberta, em 1945, dos textos gnósticos do século IV em Nag Hammadi (Egito) trouxe uma maior clarificação sobre a natureza do gnosticismo na Antiguidade, embora muitos concordem que o tema continue com muitos pontos dúbios. Ao mesmo tempo, o chamado moderno gnosticismo tem se desenvolvido a partir das origens no Ocultismo do século XIX. Em meados daquele século, Eliphas Levy trás todo o espectro de assuntos do gnosticismo à luz do dia por meio da discussão da cabala judaica. Do pioneirismo de Levy, surge em cena a maior figura do renascimento do oculto: Helena Blavatsky que se tornou a figura embrionária do movimento espiritual alternativo não somente do século XIX mas de grande parte do século XX. A fundação da Sociedade Teosófica em 1875 por Blavatsky e o trabalho de seu devotado aluno G.R.S.Mead (tradutor especializado em textos gnósticos e herméticos), tornou o gnosticismo acessível ao público fora da academia, o que preparou o caminho para o gnosticismo para as massas no século seguinte.