Por que as Clínicas da Família?
Em 1978 foi definida em Alma Ata a estratégia da Atenção Primária à Saúde (APS) que passaria a ser o primeiro contato dos indivíduos, das famílias e das comunidades com os sistemas nacionais de saúde. Dez anos depois, criou-se o Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Brasileira. Nela, a saúde foi definida como um direito da população e um dever do Estado. Para implementar a APS, no marco do SUS, foi constituída, a partir de 1994, a Estratégia Saúde da Família (ESF).
Essas práticas inauguraram, a nível estatal, uma noção ampliada de saúde, e passaram a inscrever-se em um território e a uma população associadas a um serviço e a uma equipe de saúde. A Estratégia Saúde da Família tinha como principal foco o contexto social no qual as pessoas adoecem. E suas práticas intencionavam conter o adoecer e o sofrimento das pessoas.
No município do Rio de Janeiro a ESF foi implementada através do sistema de Clínicas da Família, que integram o programa “Saúde Sempre Presente”. As clínicas da família são as unidades de atenção que promovem a saúde, e buscam a prevenção de doenças realizando atendimento individual, visitas domiciliares e grupos de atenção. A constituição desse sistema ampliou a cobertura de saúde, produzindo uma melhoria nos índices de morbidade e mortalidade da população.
Há vários anos me dedico a pesquisar a Estratégia Saúde da Família: os profissionais, principalmente os médicos de família, e a população, os “usuários” do sistema. Com essas preocupações comecei a pensar o espaço das clínicas, ou do encontro entre médicos e usuários, como um espaço “entre”: entre dois discursos, entre duas percepções do corpo, entre duas visões de mundo.
Num contexto em que a tendência geral de pesquisa se centra nas altas tecnologias, em experimentações genéticas, nas biotecnologias constitutivas das novas visões das pessoas, faz sentido continuar pesquisando serviços e clínicas da família, contextos de tecnologias pessoais e comunicacionais?
Considero que nos serviços de saúde temos acesso à vida, enquanto emaranhado de linhas, que abrange a micropolítica dos afetos, dos sofrimentos, dos conflitos (e também das alegrias). E a vida é feita de histórias. Mas a vida não se deixa conter, a vida vaza. Assim, nos serviços de saúde nos defrontamos com uma característica fundamental da existência humana que é o que chamo de ‘resto’; do não representado ou do inacabado que constitui a dimensão humana. O resto, o real, se apresenta como um sofrimento difuso, como um não saber. Como aquilo que vaza das nossas categorias analíticas. Percebi que o espaço “entre” poderia ser considerado um espaço vazado.
Esse ‘resto’ se manifesta no dia a dia dos profissionais que trabalham nas clínicas da família quando devem receitar um remédio, mas a usuária não pode ler porque está quase cega e o marido é analfabeto; quando devem visitar uma velhinha acamada num quarto sem janelas e sem perspectiva de começar o tratamento; quando se preocupam por não poder solucionar o encaminhamento do usuário para realizar os exames de imagens ou laboratoriais; quando a magnitude dos problemas é tal que quase paralisa a ação. Isso acontece com os médicos de família e os profissionais do programa, porque estão perto dos usuários, porque são os que estabelecem o primeiro contato. E é nesse contexto que percebemos o ‘não saber’, os restos, os vazamentos e, também, a criatividade para resolver esses problemas.
Em momentos como este, no qual o SUS e o sistema de Clínicas da Família estão sob um forte ataque que visam o seu desmantelamento, em que se faz necessário repetir essas verdades que, de tão presentes, terminamos por esquecer.
O SUS e a ESF significaram um avanço enorme para a saúde dos brasileiros que mais precisam. Em vez de dar término a esses programas, o investimento deveria ser direcionado a aperfeiçoá-los.