Pintura e poesia
João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas brasileiros, foi um grande admirador das artes plásticas. Já em seu primeiro livro (aliás, de signo surrealista), Pedra do sono, de 1942, vemos essa relação, que é explicitada em poemas dedicados a Picasso e a André Masson. Com o ingresso na carreira diplomática, o poeta de Recife, então residente no Rio de Janeiro, desloca-se, em 1947, para a Europa (Barcelona, primeiro), onde estreita sua afinidade com as artes e os artistas. A convivência com Joan Miró, cujo estúdio João Cabral frequenta, é um ponto alto dessa proximidade, registrada no brilhante ensaio que o autor escreve sobre o pintor catalão, publicado em 1950.
Figuras importantes aparecem em diferentes livros, ao longo do percurso do poeta. Escultures, pintores, arquitetos são nomeados já nos títulos de vários poemas, que em geral estabelecem com suas faturas uma aproximação notadamente poética: mais que descritiva ou explicativa, nos poemas de João Cabral a relação entre a poesia e as artes tende a ser sobretudo procedimental, eu diria. Isso significa que, em poemas dedicados a Mary Vieira, a Franz Weissmann, a Le Corbusier, a Oscar Niemeyer, a Vicente do Rego Monteiro, a Mondrian, a Cícero Dias (etc.), vemos ser emulado o fazer desses artistas. Ou em outras palavras, ainda: João Cabral não reproduz, como poeta, um quadro ou uma escultura, e sim produz, com o poema, o que um artista opera em sua própria linguagem.
O que permite essa sintonia entre os fazeres é o dado poético, que de fato é compartilhado pelas diferentes linguagens das artes. Afinal, como já há muitos séculos foi designada, num sentido muito amplo mas elementar, poesia significa fazer, produzir: é o que lemos, por exemplo, num dos mais famosos diálogos platônicos (O banquete), onde a poesia é definida como aquilo que promove a “passagem do não-ser ao ser”. Uma passagem, seria preciso acrescentar, que se contrapõe à ordinária instrumentalização das linguagens e das técnicas, não se encerrando, com isso, no “ser” produzido: ela é sempre renovada por um constante devir, presente nos distintos gestos poéticos que, com efeito, ao mesmo tempo continuam e recomeçam o fazer originário, que é, enfim, a própria poesia.
É assim que a poesia coincide com o desvelamento, isto é, com o que também podemos chamar de criação (de imagens, de formas, de sentidos…), estando, portanto, presente em poemas, por certo, mas igualmente em quadros, em estátuas, em edifícios: em todo trabalho de abertura, de ampliação do mundo, que faz com que algo antes não-existente passe, então, a existir. Daí entendemos a força da poesia, desde sempre apontada (seja por detratores ou por defensores), já que em seu trabalho desvelador ela se articula com a ontologia, com a política e com a ética. Só podemos elaborar novas formas de vida – outros modos de com-viver – quando conduzimos um trabalho que é, em suma, eminentemente poético.
João Cabral de Melo Neto soube precisar a complexidade e a relevância desse fazer. Isso está cifrado em vários poemas, como disse. Mas, nestas breves linhas, creio que podemos retomar alguns versos que nos mostram o próprio poeta como aprendiz da poesia, ou melhor: nos mostram um sujeito diante de um gesto pictórico de desvelamento, que se abre para ele, conduzindo-o então por essa reiterada abertura, com a qual, enfim, ele parece coincidir. O poema foi publicado em Museu de tudo, em 1975, e se chama, justamente, “A lição de pintura”:
Quadro nenhum está acabado,
disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além de outro quadro
que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva a outra e a muitas outras.
No poema, os versos – o ir e vir, o avançar e retornar – são o caminho para esse aprendizado da pintura-poesia, que não se esgota. Como numa espécie de mise en abyme, o quadro-poema vai além dos seus marcos, por assim dizer, sendo aparentemente sem fim, em razão do próprio fazer que o realiza sem, contudo, reduzi-lo ao feito. E, ao acompanhar esse desvelamento, o próprio sujeito se desvela, ampliando-se. Fazer – poesia – é fazer-se. Permanece assim a continuidade dessa produção que, mais que tudo, é potência, ainda que oculta: como porta escondida que leva a outras, e mais outras.
Podemos escutar nos versos ecos da importante convivência de João Cabral com Joan Miró. Dizia o poeta sobre o pintor: “Em Miró, mais do que em nenhum outro artista, vejo uma enorme valorização do fazer. Pode-se dizer que, enquanto noutros o fazer é um meio para chegar a um quadro, para realizar a expressão de coisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro, para Miró, é um pretexto para o fazer. Miró não pinta quadros. Miró pinta”.
Daí que o pintar, o escrever, o esculpir (etc.) não possam ser reduzidos aos objetos produzidos, que de resto estão sempre sob risco de apropriação pelos interesses mais estranhos a eles: as pautas mais urgentes, as polêmicas do momento, o espetáculo do mercado global, enfim, os distintos marcos onde se instrumentalizam as imagens, em geral, hoje, sob as consignas da representação e da representatividade. Mas a poesia ensina, como vimos: quadro nenhum pode encerrá-la, porque, enquanto houver desvelamento, quadro nenhum está acabado.