Oito questões de cosmologia e um comentário
Os antigos diziam que a Natureza tem horror ao vácuo.
O mundo quântico mostrou quanto isso é verdade.
Os astrônomos diziam que a Natureza tem horror ao infinito.
A cosmologia mostrou como o que aparece como infinito no mundo, esconde um caos.
As religiões antigas diziam que o mundo foi criado em um momento mágico e único, há um tempo finito.
A união do mundo quântico com a cosmologia mostrou que o mais provável é que o universo seja eterno.
Nos séculos passados, supunha-se que o mundo se estruturou na estabilidade.
Os físicos hoje reconhecem que a configuração atual do cosmos foi o resultado de uma instabilidade.
Preâmbulo
Entre os problemas que a Cosmologia se propõe examinar alguns não possuem significado no interior do corpo formal da Física, ou melhor, não podem sequer ser ali formulados. Dentre estes está aquele que muitos cientistas argumentam ser seu objetivo maior: qual a origem do universo? Teria ele um começo, separado de nós por um tempo finito ou seria eterno?
A Cosmologia ultrapassa os limites da Física por que ela teria como objetivo a descrição da origem de tudo que existe, a matéria, a energia e até mesmo a estrutura do espaço-tempo.
Ela permite também colocar a pergunta mais fundamental entre todas: por que existe alguma coisa e não nada?
Neste Simpósio queremos entender algumas dessas questões que os físicos nunca atacaram frontalmente, considerando-as fora do alcance da ciência, tratando-as como questões pertinentes exclusivamente ao território da Filosofia.
O nada
Por que existe alguma coisa e não nada? Alguns filósofos, como alguns matemáticos, consideram essa uma falsa questão. A acreditar em Russel, se não existe nada, existe então o conjunto vazio. A partir dele, constrói-se um número infinito de subconjuntos, estruturas, coisas matemáticas. Coisas. E o vazio se enche.
O vazio cheio
O vazio completo de matéria e dessa substância sempre presente, o espaço-tempo isento de qualquer deformação, estaria na origem de tudo-que-existe. O universo se construiu através de um tempo de existência enormemente grande – que, sem temor algum, chamaríamos de infinito – onde a matéria é uma consequência natural de transformação, de transfiguração, daquele vazio. Se é assim, abre-se então uma eficiente resposta à questão anterior, isto é, existe alguma coisa e não nada porque o vazio é instável, não pode permanecer vazio.
Matéria ou antimatéria?
Para os astrônomos, a questão cosmológica é outra: por que existe a matéria que observamos e que constitui nossos corpos? Dirac mostrou que o universo pode conter matéria e antimatéria. Por que então elas não se aniquilaram, gerando um mundo distinto do atual, repleto de radiação, luz, fótons, impedindo assim a presença humana?
A questão causal.
Como atravessar esses caminhos que levam ao passado e que Gödel, desafiando as formas convencionais do espaço-tempo, em homenagem a Einstein, pacientemente construiu? Como entender esse mistério temporal, que a gravitação universal permite, e no qual ao caminhar em cada momento para meu futuro estou me aproximando de meu passado? Como uma tal sentença pode ser despida de um caráter ridículo de fantasia?
Local ou global?
Passar das fórmulas infinitesimais associadas às equações diferenciais, típicas da física newtoniana, às expressões globais até então submersas no imaginário e que a Cosmologia através de formas topológicas, teve o cuidado e a inesperada tarefa de trazer à superfície, conduz a um modo de pensar que vai além do simples cálculo matemático. Ela requer um passo além de uma dicotomia nostálgica que nada mais faz do que exprimir um evitável duelo local-global.
A questão teleológica.
As propriedades específicas da matéria e a evolução do cosmos se associam com um objetivo final? A massa das partículas elementares, por que têm precisamente este valor que medimos? As constantes das interações, a carga do eletron, a massa do neutrino, por que possuem este valor preciso e não outro? Estariam esses valores relacionados à estabilidade deste universo, permitindo sua existência por um tempo suficientemente longo para o aparecimento da vida? A explicação da aparência do universo estaria assim à nossa espera?
O todo e as partes
Devemos rever a questão que aflige alguns pensadores, como Nietszche descreveu, em sua programação inacabada sobre a teleologia de Kant, ao afirmar que “…o todo não condiciona necessariamente as partes, enquanto as partes condicionam necessariamente o todo.”
Ou, ao contrário, deveríamos ouvir atentamente o matemático-filósofo Lautman que nos conduz a aceitar uma simbiose benéfica a ambos, às partes e ao todo? A Cosmologia traz à cena a afirmação de que podemos falar da totalidade do mundo identificando-o com essa estrutura riemanniana quadridimensional espaço-tempo e que constitui um substrato material para a descrição iterativa de todos os processos que chamamos a realidade.
Se essa totalidade resiste ou não aos ataques dos filósofos não é nossa questão, não é relevante, pois aqui se trata preferencialmente de incentivar o diálogo. Se as posições de uns e outros são opostas, devemos entende-las como uma questão formal, passageira. O diálogo deve permanecer. Através de Lautman, é a matemática que se intromete para gerar um modo comum a físicos e filósofos, de tratarem a questão das partes e do todo e permite este diálogo.
Reconhecemos então que o que está em questão não é a negação da certeza do outro, mas o jogo de pensar como entretenimento da vida.
Infinitos
Chegamos então finalmente a Cantor, esse criador de uma multiplicidade de infinitos, gerando uma sucessão ilimitada de labirintos. O que fazer com esses transfinitos? Como escapar deles? Atirá-los ao lixo das ideias utópicas?
Os filósofos vão encontrar os físicos. Mas é de matemática que se trata. Cantor não oferece a realidade, mas provoca a criação de caminhos para a entrada de mundos conduzindo a outros mundos, em uma sucessão inesgotável de universos.
Comentário
Não devemos esperar soluções definitivas a essas questões. Pois cada uma destas respostas não deveria ser estática, categórica, imutável. Ela deve evoluir, propagar-se, variar, ter uma estrutura semântica leve, flutuante, para que um certo peso histórico que lhe foi atribuído por gerações sucessivas de especialistas na física protegidos por uma particular visão de mundo, possa lhe ser retirado e a leveza que a cosmologia traz apareça.
Como tratar essas diferentes questões a não ser em uma perspectiva afastada do trabalho cotidiano do cientista, na produção de um olhar maior do que o limitado em sua prática?
A cosmologia permite esse afastamento do procedimento convencional, restringindo o movimento dominante na atividade científica onde o objetivo maior se identifica com a expressão de resultados implicando uma função prática.
O sucesso da orientação tecnológica consolida de fato um poder trágico que inibe modos grandiosos de pensar, ao estabelecer critérios práticos do êxito de uma investigação, incentivando a construção de gadgets que encantam e distraem, mas que diminuem o esplendor da vida, reduzindo-a à configuração de um passatempo infantil.
Enfim, não devemos esquecer que a cosmologia torna factível a ideia da dependência cósmica das leis da física sugerindo cenários do mundo que estão e estarão – possivelmente para sempre- fora de controle observacional. Somos levados a requisitar uma nova forma de reconstrução do modo científico de representar a natureza.
Além do mundo tecnológico que a ciência permitiu produzir, existe este outro território onde ela permite o acesso a outros modos de construção do real. É um caminho difícil, estranhamente afastado de nosso cotidiano e que produz riscos de diversos tipos. No entanto, pelo que vimos conversando, é onde imperiosamente devemos penetrar, para que os sonhos dos primeiros construtores do universo – sonâmbulos como Kepler, Newton, Brahe e outros-continuem estimulando as novas gerações, permitindo uma liberdade incontrolável do pensamento sobre o Cosmos, e que, embora sem nenhuma consequência de natureza prática, não sejam postos fora como inúteis.
Referências
Bertrand Russel: Meu pensamento filosófico (1960) Ed. Nacional
P.A.M. Dirac – Lectures on Quantum Field Theory (New York 1966)
- Lautmann: Les Mathématiques, les Idées et le Réel Physique, Paris, Librarie Philosophique J. Vrin, 2006.
M Novello e S E P Bergliaffa: Bouncing Cosmologies in Physics Reports (2008)
Friedrich Nietzsche: La téléologie à partir de Kant (Association Culturelle Eterotopia France, Paris 2017)
M Novello in Manifesto Cósmico (Cosmosecontexto.org.br)
George Cantor: Contributions to the founding of transfinite numbers (1915) re-editado pela Ed. Dover.
- Novello – O Universo Inacabado (2018) Ed. N – 1.
- Koestler: Os sonâmbulos