O veneno de hoje é o remédio de amanhã: reflexões sobre drogas e psicotrópicos na sociedade da performance
ARTIGO //
Luis Granato* //
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O que há de escandaloso no crescente uso de medicações psicotrópicas nos países ocidentais nos últimos trinta anos? É possível estabelecer alguma relação entre este crescimento e a expansão paralela do uso de drogas ilegais? Para além de um discurso moralizante que cinde o problema, é possível uma reflexão propriamente antropológica que possa colocar em cena questões que nos ajudem a entender o fenômeno?
O uso de psicotrópicos se expandiu para uma população que, até cerca de 1980-1990, não era eleita para consumir esta classe de substâncias. ‘Eleita’, porque no regime legal atual estas substâncias não são de livre circulação comercial, são objetos mediados pela prescrição de um profissional, um técnico treinado e capacitado a avaliar a sua pertinência (conjugando diferentes classe de substâncias, potências, efeitos, temporalidade, diagnósticos etc.) a uma finalidade específica. A mediação visa garantir que o uso se inscreva em uma racionalidade técnica, que segue a ordem ‘especialista – diagnóstico – prescrição’. Não são os próprios potenciais consumidores que definem as substâncias pertinentes, esta relação comercial não pode ser estabelecida diretamente entre o fabricante e o consumidor (Pignarre, 1999).i O médico é o mediador social deste uso, que segue parâmetros estabelecidos (ainda que nem sempre consensuais) para a definição de um diagnóstico.
Até os anos 1960-1970 não era comum para o cidadão comum da classe média ir a um psiquiatra, tomar medicações psicotrópicas ou possuir algum conhecimento sobre sintomas psicopatológicos, critérios diagnósticos ou nomes de transtornos mentais. A psiquiatria estava intrinsecamente associada à loucura e consultar regularmente um psiquiatra carregava um peso estigmatizante. A chamada revolução farmacológica ocorrida nos anos 1950-60 alterou profundamente a abordagem dos transtornos mentais e paulatinamente o próprio papel social da psiquiatria, que passou a tratar casos que não eram considerados como ‘loucura’ propriamenteii. Até então, a psiquiatria não estava fortemente associada aos transtornos ‘neuróticos’ em adultos, não havia o aparato voltado para pessoas envolvidas com o uso prejudicial de álcool e outras drogas e era raro encontrar crianças em tratamento psiquiátrico. Em trinta anos ocorreu uma radical reordenação do campo, o que para alguns críticos é um sintoma de medicalização desenfreada e para outros corresponde a um maior acesso à informação e ao tratamento dos transtornos mentais. O fato é que nos anos 1960 a psiquiatria atendia uma outra clientela e com outros problemas: um sintoma inequívoco disso é o caso dos chamados ‘antidepressivos’, que apesar de serem conhecidos desde os anos 1960, só foram comercializados nos anos 1990. A depressão, especialmente em suas manifestações mais brandas, não era um objeto, não existia como fenômeno social. Healy (2002) aponta que a estimativa então era de 50 a 100 casos por milhão de habitantes e que atualmente a estimativa é de 100 mil a 250 mil casos por milhãoiii.
O que aconteceu desde a revolução farmacológica da psiquiatria dos anos 1950-1960 até a expansão do uso de psicotrópicos nos anos 1990-2000? Porque em um certo momento histórico se tornou parte do senso comum associar a tristeza/depressão, o uso prejudicial de álcool e drogas e as dificuldades emocionais/comportamentais/cognitivas da infância (para citar os casos típicos) ao acompanhamento de um psiquiatra e à prescrição de psicotrópicos?
Os discursos críticos em relação ao fenômeno social denominado medicalizaçãoiv geralmente evocam uma nostálgica era pré-psicotrópicos, em que se poderia ter acesso a uma experiência mais genuína, mais legítima e verdadeira de ‘si mesmo’. Os psicotrópicos promoveriam uma espécie de contaminação do que seria uma experiência subjetiva pura, porque não modulada pelo uso destas substâncias. Presume-se que o uso do remédio impeça o indivíduo de ter acesso aos seus próprios processos interiores, inclusive a angústia/ansiedade/tristeza, já que seu efeito mascararia seus verdadeiros sentimentos. Teria também o efeito de desconectar o estado físico-emocional do indivíduo de seu ambiente circundante, inclusive em seus aspectos simbólicos. Uma espécie de evasão das questões subjetivas se produziria ao ingerir estas substâncias, com o duplo efeito de aliviar o sofrimento e restituir a produtividade/funcionalidade. Lembremos que a evasão, a ‘fuga da realidade’, também é um epíteto comum nos discursos que criticam o uso de drogas ilícitas e estupefacientes. A resposta mais radicalmente liberal a uma visão nostálgica seria a de que não existiria um ‘estado natural’ desde o primeiro uso humano da técnica, e que é isso que denominamos cultura, civilização. Isso significa que não se possa constatar gradientes nesta relação com a técnica? Já que toda cultura é um artifício, não é possível mapear pontos de convergência mais radicais entre técnica e subjetividade? O crescente consumo de psicotrópicos e drogas ilegais é um destes pontos de convergência?
Como a história do crescente comércio de ‘drogas ilegais’ se conjuga com a explosão do consumo de psicotrópicos prescritos por médicos? São processos independentes ou fazem parte de um mesmo cenário histórico-cultural? A dissociação tão comum entre os dois fenômenos é um fato (são de fato fenômenos que não tem relação alguma) ou a cisão é ela mesma parte fundamental deste processo histórico? Por que é socialmente importante manter estes dois aspectos profundamente separados? Supondo que são o mesmo fenômeno, para quê serviria cindi-los?
Latour (1994) considera ingênuo presumir uma intencionalidade humana pura e racional que faz escolhas de uma perspectiva fora do tempo e do espaço (um agente transcendental?) – o que implica em considerar que a intencionalidade humana está em relação direta às suas possibilidades de agenciamento. Não é a ideia de que os objetos/técnicas são neutros em si mesmos e estão completamente separados de um potencial de ação que seria atualizado por uma consciência autodirigida humana. Os objetos/técnicas já são, em si, parte do agenciamento humano. Um homem com uma arma na mão já é um outro homem, porque suas potencialidades agenciativas já são outras, e isso retroage sobre sua própria intencionalidade. Um homem em uma sociedade que disponibiliza um antidepressivo de forma acessível, com critérios inclusivos, sem estigmatização, já é um outro homem, porque seu agenciamento já se articula em outro cenário. Não há este homem consciencioso, anterior a toda relação social e racionalmente orientado a fazer escolhas. A própria intencionalidade do agente está implicada em um espaço/tempo e técnica/objeto específico, um ator-rede.
Por isso, a ingestão de um antidepressivo (e de maconha, cocaína etc.) é um gesto intrinsecamente político, e dos mais significativos. Uma política disfarçada de indivíduo puro e isolado, disfarçada de diagnóstico puro, de pura técnica, uma epifania de pathos. Mas para o pathos aparecer é preciso toda uma articulação precisa de agenciamentos coletivos.
No filme Réquiem para um sonho, de Daren Aranofsky, vemos uma senhora de 60 anos, que consome anfetaminas prescritas pelo seu clínico, ficar escandalizada quando descobre que seu neto de 17 anos fuma maconha. Pesquisas mostram um grande número de mulheres de meia idade usuárias crônicas de benzodiazepínicos e casadas com alcoolistas. Esta é a surpresa política das técnicas corporais. Ainda que as substâncias sejam o discurso consciente para a produção de efeitos individuais e internos, estes efeitos e estas substâncias nunca escapam de uma inscrição relacional, ainda que esta dimensão permaneça oculta, desvalorizada ou apareça como um susto. Como as drogas e os psicotrópicos aparecem nas relações? Entre médico e paciente, entre pais e filhos, entre amigos, parceiros sexuais, jovens e a polícia, no casamento, na relação de consumo, entre o sujeito e a sua própria fantasia?
Vargas (2008) aponta que a análise do uso de substâncias psicoativas deve problematizar a divisão (histórica e contingente) entre drogas legais e ilegais. Um mínimo de conhecimento histórico é suficiente para compreender que a legalidade/ilegalidade das drogas não é uma condição derivada exclusivamente de suas propriedades/efeitos químicos. Entre a química da molécula, as experiências dos indivíduos e o lugar da droga em sociedade há uma complexidade histórica determinante. Quando suspendemos a divisão entre drogas legais e ilegais e analisamos o problema como dois aspectos de um mesmo fenômeno, compreendemos a armadilha de polarizar a questão em termos de bem (psicotrópicos que aliviam o sofrimento dos transtornos mentais) e mal (drogas que induzem os sujeitos à evasão, à violência, à compulsão). A partir desta cisão se instaura a promessa de um bem infindável que se traduz na ideia de que quanto mais acesso às medicações, menos mal-estar haverá e de um mal eliminável, que se traduz em atitudes proibicionistas, de demonização e guerra às drogas. O que há de prejudicial no uso de psicotrópicos e o que há de benéfico no uso de drogas? A troca de sinais mantém a polarização como se fossem dois fenômenos distintos. Curioso como uma mesma pessoa pode ser favorável ao uso e a descriminalização de drogas como a maconha ou a cocaína, mas terminantemente contra o uso de antidepressivos, benzodiazepínicos ou psicotrópicos em geral (e este talvez seja o indivíduo mais reificador da divisão legal/ilegal).
Materializar os atributos do eu pelos seus efeitos
Ao ultrapassarmos este grande divisor torna-se possível vislumbrar que o uso de substâncias é uma prática basilar das sociedades contemporâneas e sua análise deve poder nos revelar algo, não sobre as drogas ou os medicamentos, mas sobre uma certa configuração social da passagem do século XX para o século XXI. Quais são as premissas que levam a esta prática?
O homem racionalmente orientado pós-desencantamento do mundo toma como realidade uma compreensão empírica e material do mundo (Weber, 2002). Todo o combate do Iluminismo/racionalismo contra a religião e a espiritualidade criou a atmosfera laica do mundo público contemporâneo. Separação entre Estado e religião e a divisão entre a esfera pública e a esfera privada (Sennet, 1998). Será que a equiparação entre verdade e matéria teria como consequência uma cultura em que os estados do ser deveriam ser explicados e produzidos materialmente? A neurociência e a genética são tentativas contemporâneas de explicação dos fenômenos humanos por um viés materialista. Os psicotrópicos e as drogas são a indução de estados subjetivos informados por este mesmo viés materialista através das substâncias químicas em interação com o organismo. A partir destas premissas, concluímos que não haveria nada de mais natural para um homem racional e pertencente a um contexto materialista do que mediar sua experiência do mundo através de substâncias que induzam estados e performances específicas. Quer dizer, o uso de drogas e de psicotrópicos é apenas a consequência mais óbvia de uma certa visão de mundo. Se a verdadeira natureza do mundo, sua verdade última é material, é através de artefatos materiais que devemos mediar nossa relação com o mundo. Radicalizando o viés materialista poderíamos afirmar que as explicações ou visões de mundo praticadas em outros lugares ou em outras épocas são apenas ‘cultura’ (as variações culturais sincrônicas e diacrônicas seriam traduções malfeitas de uma língua que a ciência sabe falar), formas imperfeitas de uma verdade material, biológica, química, física – Natureza, enfim. Por que não ter acesso direto à Natureza e a partir deste acesso modular o ser? O problema com as drogas e os psicotrópicos é o problema de ter encontrado a verdade. Verdade absoluta deste contexto. É curioso como a questão das drogas mobiliza iniciativas religiosas de recuperação, seriam assemelhados na ideia de uma experiência da verdade?
Já que supostamente é possível conhecer a verdade material do sujeito através da materialidade de seu corpo, resta agora pesquisar e catalogar os artefatos químicos que irão, de forma precisa, controlada e segura, induzir as experiências no corpo. É isso que David Le Breton (2003) denominou “produção farmacológica de si”, fenômeno que não é restrito aos entornos da medicina, nem é específico da psiquiatria, mas tem consequências determinantes para estes campos.
A expansão dos critérios diagnósticos e o consequente aumento da quantidade de pessoas aptas ao uso dos psicotrópicos podem indicar um processo mais radical de dissolução das justificativas e da autoridade médica no processo de mediação entre consumidor e o fabricante de psicotrópicos. Os critérios operacionais, a elasticidade dos critérios, a criação de novos transtornos, a aplicação de escalas (inclusive de autoavaliação), a publicização dos critérios, parecem apontar para uma certa obsolência do mediador. Será que no futuro será necessário ter um transtorno/diagnóstico para consumir psicotrópicos? Estas substâncias são usadas apenas para remediar uma doença ou também para induzir uma performance (como ter relações sexuais, dormir, acordar, estudar, emagrecer etc.)? Será que continuará sendo necessário um profissional médico para prescrever a substância? Se a patologia se transforma em um signo de pertencimento a uma bioidentidade, sendo tomada então como um estilo de vida e não como uma anomalia, naturalmente se poderia argumentar que os psicotrópicos e as drogas são parte deste estilo. Se o que era doença é estilo de vida, por que o que era remédio (disso quando era doença) não pode ser um artefato performático, prótese ou órtese dos que portam/advogam esta bioidentidade? É possível que as próprias substâncias se tornem adjetivações do ser e sejam definidoras de formas de vida, comportamento, percepção.v Apoiados no modelo atual, poderíamos supor que o uso de substâncias se tornaria uma questão de foro íntimo, não mais uma prática tão fortemente mediada pela esfera e pelo poder público, mas uma opção, um estilo, uma forma de viver fruto das afinidades eletivas – o mundo privado.
No entanto, a relação atual entre sociedade e drogas tem muitas semelhanças com a relação entre sociedade e sexo no século dezenove. Naquele momento a questão da regulação da atividade sexual tornou-se explícita, somente algumas formas de atividade sendo consideradas legítimas e diversos aspectos da sexualidade sendo controlados ou reprimidos. Até o século vinte o uso de drogas era geralmente não controlado e não regulamentado. Mas paulatinamente, desde 1900, houve esforços para estabelecer um controle social sobre atividades envolvendo drogas. No processo algumas drogas e a percepção do que algumas drogas significavam e poderiam fazer foram reprimidas. No começo de século vinte e um, no entanto, a extensão em que os controles sobre a sexualidade foram relaxados surpreenderia Freud. Poucos tabus permanecem. O uso de drogas no século vinte e um desenvolverá uma trajetória similar a da sexualidade no século dezenove?vi (Healy, 2002, p. 338, tradução nossa).
Será que em algumas décadas será risível saber das leis que regulam as drogas atualmente (como podem ser risíveis leis que proíbam o sexo anal)? Será ridículo ter havido um tempo em que o acesso da população aos psicotrópicos tivesse que ser mediada por médicos? Haverá então uma leitura reformista localizando nas legislações e no médico os monopolizadores de uma relação que deveria ser direta (substância – consumidor) em democracias dignas deste nome? O modo de acesso à técnica, seus mediadores, a forma como ela se insere politicamente, são questões urgentes na democracia contemporânea. Atualmente a crítica mais contundente recai sobre o economista como especialista, o tecnocrata, com decisões e argumentos baseados em premissas mais ou menos obscuras para os não iniciados, mas que afetam diretamente a vida de populações. No fundo, a gestão química do corpo e seus afetos é a radicalização de uma condição intrínseca à democracia, que é o autogoverno, o sujeito racionalmente orientado, cuja moeda política é a ideia de autonomia ou autodeterminação. A vertente contemporânea do autogoverno/autonomia é a gestão dos estados subjetivos.
O estilo se encarna através de uma técnica que visa colocar a emoção à disposição do sujeito, promessa cada vez mais aventada pelos psicotrópicos em suas sucessivas gerações. Assumindo que isso seja possível e para alguns, desejável, compreendemos que o sujeito, transformado pelo artefato, é então convocado a se inserir socialmente através da técnica de gestão de si. Seria coincidência o sociólogo francês Alan Ehrenberg (2010) ter apontado o “terapeuta” e o “gerente” como as duas grandes posições imaginárias que circulam socialmente em todos os metiers contemporaneamente? Potencialmente, tudo ganha adjetivação de “terapêutico” e tudo é passível de ser gerenciável, ou “melhor gerenciado” (a máxima de “usar todo o seu potencial”). A radicalização da produção farmacológica de si é forjar uma expertise de gerência de si mesmo. Um cálculo sobre si que não poderá, contemporaneamente, ficar submetido às variações do humor, por exemplo. O melhor rendimento deverá calcular o humor adequado e o humor adequado poderá ser fornecido por reguladores encapsulados. Artefatos de gerenciamento de si, ainda que o eu não possa ser materializável, ele pode ser regulado em seus efeitos e em sua intrínseca relação com o corpo. É um recurso social fundamental para viver no que Ehrenberg denominou sociedade da performance, cujo sintoma mais marcante são os altos índices de depressão.
O aumento do uso de psicotrópicos e de drogas recreativas nos últimos trinta anos é um signo de um modo de organização social em que a matéria, e, portanto, o corpo como a matéria humana essencial, passa a ocupar o centro da cena e a partir daí se proliferam e se aprofundam as técnicas corporais (técnicas corporais intensivas?). A ingestão contínua e variada de psicotrópicos e drogas para fins variados é uma técnica corporal contemporânea. Este fenômeno não é exclusivo da psiquiatria e nem da medicina, é um fenômeno social muito mais amplo – um fenômeno de tecnicização, em que a medicalização é uma vanguarda. O uso de psicotrópicos e de drogas é apenas o embrião contemporâneo de uma técnica de si que só tende a se sofisticar. Seguindo a intuição de Healy (2002), possivelmente estas substâncias serão signos identitários, como a orientação sexual é hoje em dia.
Estas questões estão presentes nos debates sobre bioética, transexualismo, a assistência médica à procriação, a eutanásia, a cirurgia plástica, os exames de doenças genéticas potenciais e suas consequências sociais/econômicas, questões raciais, clonagem, inteligência artificial, artefatos militares, controle de populações, interação homem-máquina e ainda o body building e a body art. O fato do público em geral ter muito mais acesso à informações médicas e psiquiátricas nos últimos trinta anos é muito mais o sintoma de que ainda é através da medicina que mais profundamente se pensa e se age sobre o corpo, do que uma expansão desenfreada da medicalização. A tendência é que o fenômeno se expanda, tanto que já não será possível chamar isso de medicina ou de medicalização, pois serão então as condições intrínsecas, naturalizadas, da própria vida social.vii
Outro aspecto a ser levado em conta é como a modalidade de circulação social dos objetos (tomando o corpo, a droga e os psicotrópicos como objetos), o que chamamos de economia, e especificamente de economia capitalista, poderá também ter um efeito no modo de gerir, de se autogerir, neste caso. Para alguns, a própria necessidade de que isso seja gerenciável neste nível, é já um sintoma deste modo de troca, uma espécie de capitalismo introjetado, em que uma consciência calculadora já não pudesse deixar nada de fora do cálculo. O interior do corpo como uma espécie de última fronteira ainda a ser explorada. O que se sente não é o destino ou uma contingência da situação (e portanto adequada em termos adaptativos), é um fato calculável, manipulável e gerenciável quimicamente. Uma linha de produção que já não se contenta em controlar os movimentos físicos do corpo, mas que deve também, em nome da máxima produtividade, induzir positivamente estados subjetivos.
O esporte como cenário cotidiano das técnicas corporais
Algumas questões anedóticas ocorrem na esfera contemporânea privilegiada de performance dos corpos, que é o esporte, a partir deste cenário: o doping nos esportes vai continuar a ser reprimido, ou, pelo contrário, só poderá haver esporte com doping, em diferentes classes de próteses e órteses, físicas, químicas e biológicas? O nome disso será doping então? Os esportes Paralímpicos talvez sejam uma vanguarda quando criam categorias completamente artificiais para dividir os atletas de forma mais ou menos justa nas competições. É o caso perfeito para análise, porque uma grande ficção está eliminada: a idéia de que existem corpos em ‘condições normais’, que seria a ideia de um corpo genérico. Ninguém compete em condições normais, porque nos esportes Paralímpicos a anormalidade está explícita, a desigualdade, o ‘doping’ e a órtese são a regra e criam-se categorias baseadas nas dificuldades e nas adaptações. Esta igualdade está suposta nos esportes convencionais, nas Olimpíadas, mas por que será que os países mais poderosos política e economicamente no cenário mundial são também os que colecionam mais medalhas no cômputo geral? Que espécie de coincidência é esta?
Eu, como baixinho quase patológico, sempre ouvi que para se jogar vôlei teria de ser alto, mas porque não há a categoria vôlei para até 1,70 metro? Isso que os esportes Paralímpicos fazem para incluir os diferentes corpos parece não ser contemplado nos esportes em geral, porque presume-se um corpo genérico. Presume-se uma naturalidade do corpo como destino, ser alto/baixo, gordo/magro, forte/fraco, homem/mulher e, por isso (sua natureza intrínseca), você deve se conformar e fazer o que pode. No caso dos paratletas, presume-se sempre uma artificialidade, uma contingência por força de um acidente, doença etc., e que, portanto, é fundamental a inclusão (a deficiência é um caso da contingência). Mas todos os corpos são contingentes! Nos esportes em geral presume-se um corpo genérico e por isso o critério para competir será por exclusão. Nos esportes adaptados presume-se um corpo contingente e por isso o critério para competir será por inclusão – criam-se categorias a partir das classes de dificuldades comuns encontradas diante de um certo déficit.
Será que o gênero continuará a ser um divisor quase universal nos esportes de competição? A suposição de que as mulheres são fisicamente mais fracas que os homens sobreviverá a esta era de próteses? Poderia se criar categorias mistas e niveladas para competição?
Até antes da hiperprofissionalização de alguns esportes havia um continuum entre o praticante comum e o ‘atleta’. Com a profissionalização e a dedicação integral, a descontinuidade ficou cada vez mais acentuada e agora isso é chamado de esporte de alto rendimento. Não é doping, mas é uma técnica corporal que produz um efeito comparável ao do doping, porque produz novos corpos, novos agenciamentos que não seriam possíveis de outro modo.
Conclusão
A pressuposição tácita e comum ao consumo de drogas e de psicotrópicos é que a natureza fundamental da realidade é material, química, física e biológica. O epicentro desta concepção materialista é o corpo humano, e especificamente o sistema nervoso, que através destas substâncias poderia ser modulado para atingir alguns estados subjetivos ou realizar algumas performances. Esta cena naturaliza o fato de que objetos (moléculas, pílulas, líquidos) são indutores de relações específicas e eclipsa o aspecto relacional da vida em geral, inclusive da vida destes objetos. Um eclipse da política implicada da experiência do corpo na cidade ou no mundo como uma experiência de sentido. Administrar as intensidades nervosas deste corpo político seria uma técnica corporal? Os últimos trinta anos parecem apontar que estamos na antessala de um novo modo de socialidade, em que o consumo de drogas e psicotrópicos são aspectos intrínsecos e constitutivos por serem uma nova camada do governo de si e da autonomia, tão caros à democracia. Daí se decalca uma teoria da agência humana, que mesmo que tenha sempre sido tributária das composições com a técnica, agora se encarna em uma ‘técnica de si’, inculcando uma linguagem gerencial aos estados da pessoa. O fenômeno é fruto e propositor (porque a retroalimenta) de uma versão da pessoa humana, com implicações inumeráveis. O esporte como cenário global da demonstração cotidiana do que podem os corpos, ou do que a técnica é capaz de fazer com o corpo, pode ser um importante analisador do estatuto das técnicas corporais intensivas. O modo como o que é considerado não humano (próteses, órteses, substâncias químicas, alimentos especiais, material esportivo) ou como classificações naturalizadas, como a de gênero, poderão se modificar e compor o cenário é um interessante futuro a se observar.
Esta leitura relativizante não subestima o potencial de sofrimento humano que a questão das drogas e dos psicotrópicos suscita em diferentes contextos sociais, incluindo questões ligadas à saúde, saúde mental e violência. Uma parte considerável deste sofrimento parece derivar do descompasso entre um movimento social muito desorganizado e mal articulado, mas com muitos adeptos (os usuários de drogas ilícitas) e a esfera pública. A própria tensão interna ao campo inviabiliza a politização do debate, como se estivéssemos ainda no momento em que o IRA e o ETA agiam como ‘grupos terroristas’, e não como atores políticos. O ônus é de todos, mas atualmente é especialmente das crianças e dos adolescentes pobres das grandes cidades brasileiras. A dificuldade de compreensão do fenômeno é derivada da cisão do olhar e ainda da carência de uma interface explícita entre corpo e política – porque este será o cenário das nossas grandes questões políticas. Talvez os movimentos ecológicos e os partidos verdes tenham sido o prenúncio desta necessidade de politizar a técnica radicalmente (e em contrapartida tecnicizar a política, com todos os riscos que isso comporta).
Nosso pesadelo repetido em diversas obras de ficção científica de que um dia as máquinas se tornariam autoconscientes e usurpariam a dominação humana provavelmente aponta na direção certa, mas erra o alvo. Possivelmente o que nos fará desaparecer (no sentido de não nos reconhecermos mais como o que éramos) não é a consciência futura das máquinas, mas a gerência maquínica do humano – a esta estamos cotidianamente convocados, possivelmente seduzidos e irreversivelmente conectados.
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*Luis Granato é psicólogo, Mestre em Antropologia Social UFRJ/PPGAS-MN. Professor de psicologia e psicólogo clínico.
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Referências
AGUIAR, A. A. A psiquiatria no divã. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
CORBIN, A. (Org.) História do Corpo vol. 3. As mutações do olhar. O Século XX. Petrópolis: Vozes, 2008.
EHRENBERG, A. La société du Malaise. Paris: Odile Jacob, 2010.
HEALY, D. History of Psychopharmacology. Cambridge: Harvard Univ. Press, 2002.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.
LE BRETON, D. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 2003.
MOYNIHAN, R.; CASSELS, A. Selling Sickness. New York: Nation Books, 2005.
PIGNARRE, P. O que é o medicamento? Um objeto estranho entre ciência, mercado e sociedade. São Paulo: editora 34, 1999.
SENNET, R. O declínio do homem público. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
VARGAS, E. V. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das drogas. In: LABATE, B. C. et al. (Orgs.) Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2002.
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Notas
i Nos EUA, nos anos 1990, foi autorizada a propaganda direta ao consumidor de medicamentos que necessitam de receita médica para serem adquiridos. A estratégia de marketing passou a ser educar os pacientes a identificarem alguns sinais e perguntarem aos seus médicos. É muito comum ao final da propaganda a frase: “pergunte ao seu médico” (Moynihan, 2005).
ii Em termos de diagnóstico, podemos dizer que o que era mais comumente tratado pela psiquiatria eram as esquizofrenias e a paranoia (atualmente denominado transtorno delirante), as psicoses maníaco-depressivas (atualmente denominado transtorno afetivo bipolar), os quadros depressivos graves (chamados então de melancolia) e alguns quadros neuróticos e comportamentais graves.
iii Mais precisamente a chamada terceira geração de antidepressivos, os Inibidores Seletivos de Recaptação de Seretonina (ISRS). O termo “antidepressivo” foi cunhado em 1952 por Max Lurie mas só foi incoporado aos dicionários de língua inglesa em meados da década de 1960. A descoberta da Imipramina por Roland Khun (o primeiro a ser chamado posteriormente de antidepressivo tricíclíco) e do Iproniazid por Nathan Kline (o primeiro a ser chamado de inibidor de aminoxidase) não tornou popular o termo nem o uso. Estas duas medicações eram consideradas eficazes para as depressões graves, com ou sem delírios que geralmente chegavam aos serviços hospitalares. Até os anos 1950 a atual depressão leve era tomada como “nervosismo”, ansiedade ou um transtorno misto de ansiedade e depressão (comum na atenção primária). Healy aponta que a crescente comercialização de antidepressivos tem como alavanca importante mas não única, a percepção do problema da dependência gerada pelo uso de benzodiazepínicos que a comunidade médica começou a ficar atenta no começo dos anos 1980. (Healy 2002)
iv Importante distinguir medicalização do ato de medicar, prescrever medicações. “O conceito de medicalização, bastante usado na sociologia, foi inicialmente proposto por Irving Zola em 1972, ao se referir à expansão da jurisdição da profissão médica para novos domínios, em particular aqueles que dizem respeito a problemas considerados de ordem espiritual/moral ou legal/criminal”. (Aguiar, 2004, p. 133).
v Nesse sentido o uso de drogas seria a vanguarda do papel futuro de todos os psicotrópicos, pois é no uso não regulado ou menos regulado das drogas ilegais que mais explicitamente se atualiza a faceta performática do uso de substâncias. Assim, quem usa substâncias legais de modo a produzir performances reproduz uma ideologia subversiva advinda das drogas não reguladas.
vi“Indeed, the current relation between society and drugs bears many resemblances to the nineteenth century interplay between society and sex. Then the question of regulation of sexual activity became explicit, with only certain forms of activity being deemed legitimate and many aspects of sexuality being controlled or repressed. Until the Twentieth century drug use was largely uncontrolled and unregulated. But increasingly since 1900, their have been efforts to establish societal control over drug related activities. In the process certain drugs and the awareness of what some drugs have meant and can do have been repressed. At the start of the twenty first century, however, the extent to which controls on sexuality have been relaxed would have astonished Freud. Few taboos remain. Will twenty first century drug use follow a developmental trajectory similar to that of twentieth century sex?”. (Healy, 2002, p. 383).
vii Um exemplo banal é a eminente instalação de urnas eletrônicas com leitores biométricos para identificação dos eleitores através de suas impressões digitais, provavelmente nas próximas eleições. Ver: <www.tse.jus.br/eleicoes/biometria-e-urna-eletronica>.