Desconstrução e recriação em A Igreja do Diabo, Fausto e São Bernardo
ARTIGO //
Marluce Faria de Melo e Souza* //
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1. Deus e o Diabo em Machado e Goethe
A formação essencial da narrativa de A Igreja do Diabo se caracteriza por não ter uma formação primeira, mas por ser constantemente recriada e renovada. A primeira frase do conto introduz esse conceito e prenuncia a recriação de um mito:
Conta um velho escrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja.
As figuras de Deus e Diabo recebem uma nova caracterização, e a partir do momento em que o Diabo decide criar uma igreja, símbolo maior da fé cristã, promove-se a reversão de papéis entre representações tradicionalmente classificadas como contrários absolutos:
– Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. (cap. I).
Através da apropriação dos princípios católicos, o Diabo retraça o caminho de Jesus na acolhida de fiéis, e tem, no conto, sua imagem refletida em um espelho invertido. As ações de Deus e Diabo se confundem e destroem a barreira dos contrários. Essa desconstrução faz parte do processo da recriação de mitos, que está associado a uma estrutura de tempo não retilinear, mas cíclica. Oposições que nascem em antítese se fundem em síntese, que por sua vez origina sua antítese, e assim sucessivamente. Da mesma forma que o dia vira noite e os dias e estações se sucedem, os contrários se fundem e os mitos se renovam, construindo, desconstruindo e reconstruindo um mundo motivado pelo tempo dialético. O Diabo se metamorfoseia na figura de Deus, veste Sua máscara. Na reversão de papéis há, contraditoriamente, a fusão dos contrários aliada à negação primordial de sua essência, e a cada passo que segue o Diabo, há uma reconstrução.
A ideia de renovação se encontra também, com muita força, nos paralelismos estabelecidos no conto. Paralelamente ao processo de acolhimento de fiéis pelo Diabo, se evoca o chamado inconsciente de Fausto por Mefistófeles, mais claramente introduzido nas palavras do próprio Diabo:
– Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos. (cap. II).
A fundamental correspondência, maior que a existente entre Fausto e os ambiciosos seres humanos, é entre o Diabo machadiano e o Mefistófeles goethiano:
Diabo: “Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega”(cap. II).
Fausto: “Que nome tens?”
Mefistófeles: “O Gênio que sempre nega!”(Quadro IV, Cena II, v.19).
No momento em que o personagem Fausto, do drama de Johann Wolfgang von Goethe, é citado, o contexto e os elementos da obra são automaticamente inseridos no coração do conto de Machado. O Diabo e Mefistófeles são espíritos que negam a força cósmica da vida, e que se criam a partir da desconstrução. O Diabo segue os passos de Deus no processo de acolhida de fiéis, mas, a partir da apropriação de sua representação simbólica, O absorve tanto quanto O nega, já que desconstrói Seus ideais para recriar seus próprios:
A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença de que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. (cap. III).
A desconstrução como princípio regente dos espíritos da negação é o poder em essência das figuras do Diabo e de Mefistófeles.
Em A Igreja do Diabo, o Diabo se reconstrói como o próprio Criador e transforma sua verdade em religião. Argumenta que as ações dos homens são um pedido por liberdade e que eles clamam por sua intervenção. O necessário, segundo ele, é apenas “puxar as franjas de algodão dos vestidos de veludo”. Na peça de Goethe, um dos espíritos vem atender ao grito de Fausto, atormentado pelo conflito entre o desejo incondicional de alcançar os céus e a melancolia que abate seu coração:
Gênio: “Chamaste-me com força austera (…) tu me aspiraste tão fortemente! Querias ver-me e ouvir-me. Atendo ao desejo de teu coração” (Quadro II, Cena II, v. 7).
Assim, a influência do diabo não é um sortilégio que ronda e tenta o homem, mas uma força que reside em seu coração e é tentada pelos seus desejos e pela consequente abertura que eles oferecem:
Fausto: “O pentagrama te causa aflição? (…) Se isto te impede, como entraste então?”
Mefistófeles:“Observa-o! É que está mal traçado; vê! O ângulo que para fora aponta, aberto tem um vão ligeiro” (Quadro IV, Cena II, v. 73).
A relação entre Fausto e Mefistófeles é de dependência e coexistência. A complementaridade intrínseca à sua oposição é tão absoluta e intensa que a distinção entre os dois é apenas simbólica, pois, em verdade, eles são um e o mesmo:
Fausto: “Tu, que o infinito mundo rondas, Gênio da Ação, sinto-me um só contigo!” (Quadro II, Cena II, v. 5).
No filme Mephisto – de István Szabó, 1982 –, Klaus Maria Brandauer interpreta Hendrik Hoefgen, um ator alemão que vende sua alma ao Diabo, no caso, o Nazismo. Seu papel mais famoso é o de Mefistófeles, e, quando veste sua máscara de ator, se transforma naquele de quem foge fora dos palcos. Na narrativa metaficcional de uma peça dentro de um filme, Hoefgen, como ator teatral, representa o diabo, e, como personagem do filme, representa Fausto. Hendrik Hoefgen é o símbolo da interdependência e coexistência de ator e personagem, realidade e ficção, sendo seu próprio Fausto e seu próprio Mefistófeles. Apesar de no Faustode Goethe as imagens do homem e do diabo serem representadas distintamente, sua união é tão poderosa que não pode ser rompida. Sendo parte de Fausto, e sendo tentado pelos desejos do homem ao invés de ser a força que tenta, Mefistófeles não pode, simbolicamente, apenas retirar-se:
Mefistófeles: “O diabo não te sai para fora”.
Fausto: “Por que não vais pela janela?”
Mefistófeles: “É a lei dos gênios, não se foge dela: só por onde entram podem ir-se embora. Somos livres no um, no dois, porém, escravos”(Quadro IV, Cena II, v. 88).
Da mesma forma que o atraiu por seus impulsos, apenas o homem pode afastá-lo:
Mefistófeles: “Quer Vossa Majestade uma apostinha? Verá se também este se não perde, uma vez que me deixe encaminhá-lo”.
O Senhor: “Permito-te que o tentes. Se lograres caçá-lo, desbatiza-o, e inferna-o muito embora. Mas saibas tu, aquele de boa fonte originária, dado que errar às vezes possa, nunca nos sai da estrada, a certa, a nossa”(Quadro I – Prólogo no Céu).
A fundamental consequência da conexão estabelecida entre A Igreja do Diabo e Fausto é o novo valor que o conto machadiano recebe, um caráter expansivo que o faz transcender limites, restrições e a própria narrativa, em uma relação de correspondência e recriação imagística. O paralelismo provoca a renovação e revigoramento do mito de Deus e Diabo e de diabo e homem, além de introduzir novos elementos. Enquanto a unificação dos contrários em Fausto se dá sob as formas de Fausto e Mefistófeles – o homem e seus impulsos contraditórios – , em A Igreja do Diabo ela é representada pelas formas de Deus e Diabo – recriação mítica das entidades e sua reversão de papéis como influência sobre o homem. A peculiaridade na narrativa de Machado, porém, está, não na reversão de papéis, mas na “re-reversão” de papéis. Até o início do capítulo IV do conto, o Diabo segue com sucesso na conversão de fiéis, segundo ele até com mais sucesso que Deus:
Diabo: “(…) enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única (…) há muitos modos de afirmar, há só um de negar tudo”(cap. I).
A imagem é de controle e força e aquele de “gesto magnífico e varonil” era o Diabo. Quando, porém, seus fiéis retomam práticas ensinadas pela religião católica, a soberania dá lugar à virada de poder entre Deus e Diabo. Essa inversão é representada pela subida do espírito que nega ao Céu, que recorre a Deus por respostas a enigmas indecifráveis para ele. Deus, com simplicidade, responde:
– Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tinham franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana. (cap. IV).
Com essa explicação que nada e tudo explica, Deus retoma o papel daquele que providencia respostas ao invés de solicitá-las. O retorno a atividades regidas pela fé cristã pode não ter sido impulsionada por discursos ou manifestos, mas foi, como a conquista do Diabo, um processo de acolhimento de fiéis, que seguiram os ensinamentos de vida e os sentimentos que dão valor à sua fé para adotar, não a religião católica, mas uma nova religião. Uma religião que se baseia em certos preceitos cristãos, seguidos por muito tempo, mas que tem como principal característica não o que segue, mas o que recusa; é “católica-pós-religião-do-Diabo”. Se, como disse Heráclito, “um homem não entra duas vezes em um mesmo rio”, tampouco entra duas vezes em uma igreja. O processo de renovação é infinito.
As influências da religião do Diabo não se restringem, contudo, apenas aos fiéis. Surpreendentemente, o leitor se encontra na posição de um dos fiéis, e assume papel ativo na narrativa. No capítulo III, o Diabo defende sua opinião sobre as virtudes, conferindo a elas um novo significado, que é também sua oposição em termos. Entretanto, sua argumentação, ao ser direcionada aos fiéis, é automaticamente refratada nos leitores, já que eles constituem o grupo de fiéis. Essa posição é claramente exposta durante o discurso que define a venalidade:
– Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório.(cap. III).
Por mais que não se concorde com o que foi dito, o leitor se surpreende ao encontrar-se sem saída. “Realmente”, deve dizer o leitor, “realmente não dá para negar”. Assim, o leitor participa ativamente da narrativa, assumindo o papel de personagem, um dos personagens-fiéis, que não veem como contrariar a lógica irrefutável do Diabo. É esse fator da ativa participação do leitor em uma narrativa e sua interação com a obra, aliado à fusão dos contrários em uma unidade dual, que introduz uma nova modalidade de narrar, em que esses elementos provam-se essenciais e constituem o coração da obra.
2. A duplicidade do eu em São Bernardo
No romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, a participação do leitor ocorre não através de sua inclusão quase física no corpo da narrativa como em A Igreja do Diabo – leitor-personagem –, mas através da quebra de linearidade.
A primeira característica da técnica narrativa que se destaca é a presença de dois eus: o eu-narrante (dá nome ao tempo presente, posterior ao enredo) e o eu-narrado (personagem do tempo passado, protagonista do enredo narrado). Apesar de a sequência de acontecimentos do enredo trazer a figura do eu-narrado como figura de poder, há, constantemente, a interrupção provocada por uma voz tanto própria do protagonista quanto externa a ele. Essas interrupções promovem uma quebra na narrativa, mas não acabam com a conexão do leitor com o texto; pelo contrário, causam uma maior aproximação por meio da interlocução. As interrupções do eu-narrante acontecem predominantemente para dar lugar a reflexões sobre sua vida ou sobre o ato de narrar. É essa reflexão permanente, que se desvia do correr das ações e propõe o questionar da própria obra, que caracteriza o narrador. A quebra de linearidade é uma reflexão crítica não apenas do fazer artístico, mas também da união de realidade e ficção. O narrador previne que o leitor se perca no meio do enredo e o traz à realidade já no primeiro capítulo, avisando que escrever um livro é um processo difícil e exaustivo:
Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria meu nome na capa.(cap. I).
O narrador traz o leitor à realidade e avisa que aquilo que lê é ficção. A reflexão crítica que se propõe a fazer não é apenas quanto àquilo que escreve, mas também quanto à sua vida. É a reflexão sobre a união intrínseca de ficção e realidade, que alerta à ficção da obra e ao mesmo tempo leva realidade a ela. Suas ponderações sobre sua vida permeiam a narrativa e dão um caráter real ao narrador-personagem, um corpo. O principal é a consciência de que há uma pessoa por trás da narração dos fatos, e isso por um lado reafirma seu caráter ficcional e por outro, contraditoriamente, fortalece a realidade do narrador-personagem.
Ao final do segundo capítulo, o eu-narrante diz ter “dois capítulos perdidos”. No entanto, há uma contribuição fundamental dos dois primeiros capítulos, pois são responsáveis pela introdução do elemento metaficcional. Paulo Honório, ator emocionalmente envolvido e espectador criticamente distanciado, expõe sua ideia de escrever um livro, e o faz. É apresentado ao leitor um livro dentro de outro. Texto e metatexto caminham, ironicamente, juntos, e às vezes se fundem. Em alguns momentos, a distinção entre eu-narrante e eu-narrado é clara, o distanciamento crítico do eu-narrante é evidente. Mas em outros momentos, essa distinção mostra-se menos nítida. O narrador transporta-se ao tempo narrado, e uma separação não é mais possível:
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge do lado de lá da mesa. Digo baixinho:
– Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca. (…) A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre a que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos. (cap.19, p. 93).
O tique-taque do relógio e a toalha branca agem como símbolos do presente, e a voz de Madalena conduz o eu-narrante ao passado, onde ela mora. A fusão dos objetos prenuncia a união dos dois tempos, e, assim, o eu-narrante passa à posição de eu-narrado. Em oposição, não estão narrador e protagonista, mas presente e passado. Elementos que são colocados em oposição antagônica, no romance se fundem e se tornam um só:
Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranquila. Mas estou assim (cap. 19, p. 93).
A oposição estabelecida não é quanto às emoções; é quanto ao tempo, pois zangado estava o eu-narrado em um tempo passado, e tranquilo está o eu-narrante no presente, mas é uma tranquilidade proveniente da irritação. O sentimento de um tempo anterior e o de um tempo de agora atuam como complementares e como produto da fusão dos contrários, da união dual de passado e presente:
Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com chapéu de couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota. Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me, bato na mesa e tenho vontade de chorar (cap. 19, p. 94).
A união dos opostos é fundamentada por justaposição de imagens e impulsionada pelos sentimentos contraditórios que abatem o eu-narrante. Já na fusão temporal que ocorre no capítulo 26, o fator dominante é a reversão de poder entre o eu-narrante e o eu-narrado. O narrador aparece, durante o romance, como figura de controle sobre a narrativa, mas, em determinados momentos, há uma inversão de posições e o sentimento que arrebata o eu-narrado é tão intenso que toma conta do eu-narrante, invade seu espaço:
– Mostra a carta, perua.
Madalena rasgou o papel em pedacinhos e atirou-os pela janela (…) Longe, no salão ou na cozinha, Madalena continuava a gritar:
– Assassino!
(…) Recordei-me do caso do Jaqueira, mas a recordação desapareceu, e comecei a dizer mentalmente:
– Assassino! Assassino!
Encolerizei-me por estar perdendo tempo com tolices.
– Madalena, D. Glória, Padilha, puta que pariu a todos.
Ali malucando, e a gente do eito à vontade, cobrindo mato. Espreguicei-me. (…) O Jaqueira… Ah! Sim! Tinha sido anos atrás. De repente achei que Madalena estava sendo ingrata com o pobre do Casimiro Lopes. Afinal…Assassino! Que sabia ela da minha vida?” (cap. 26, p. 128 e 130).
O sentimento de indignação e cólera do eu-de-outrora são tão fortes que, na narrativa, tomam precedência e fazem o eu-de-agora calar-se para se pronunciar. A separação entre os tempos não pode ser feita e os sentimentos se confundem.
Uma certa indiferença e senso de inevitabilidade marcam o eu-de-agora, enquanto o eu-de-outrora vive sob o jugo de emoções constantes. Por outro lado, não é fácil a percepção da diferença entre as duas vozes, especialmente porque, apesar de a passagem de tempo e a ocorrência de fatos importantes nesse período não serem ignoradas, a própria ideia do tempo recebe novo valor, é turva. Os impactos do passado constroem o presente, e em certos momentos não se sabe se o que está sendo narrado é ocorrência atual ou antiga. Essas influências não se restringem, porém, a sentimentos ou ideias soltos, pois causam impacto sobre a própria narrativa:
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir (cap.19, p. 92).
Ao admitir a impossibilidade de exprimir um sentimento, o eu-narrante exprime uma sensação muito mais forte. Ao invés de tentar fazer o leitor sentir suas emoções por meio de palavras que jamais seriam capazes de alcançar a intensidade correspondente, ele promove a transferência de seus sentimentos ao leitor ao não apenas sentir ou exprimir, mas ao saber-se sentir e ver-se a tentar exprimir. O bivocalismo de sua consciência, transparente em sua narrativa, causa a união de ator e espectador, e insere o leitor no tumulto de suas emoções.
Como dito, não é de fácil alcance a separação entre narrador e narrado. No entanto, o novo valor que recebe o tempo que os separa não é o único motivo para isso. Um certo distanciamento por parte do eu-narrante é esperado, já que ele está fora do momento das ações, mais afastado que o protagonista. Em São Bernardo essa expectativa não é confirmada. Paulo Honório, após anos, ainda se sente intensamente ligado às ocorrências passadas:
Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração (cap. 19, p. 92).
Ainda assim, não acredita em arrependimento, em desejo de voltar atrás. Segundo ele próprio, de nada adiantaria uma nova chance, pois faria exatamente o mesmo que fez. A culpa, diz, é de sua “alma agreste”, de sua profissão: “(…) foi este modo de vida que me inutilizou” (cap. 36, p. 17).
É nesse momento que é conferida ao leitor uma participação mais ativa na obra, quando é claro para ele o que para Paulo Honório é motivo de toda a sua angústia e inquietação. O ator-protagonista, já no primeiro capítulo do romance, mostra sua objetividade, rudeza, brutalidade e necessidade de dominar o universo à sua volta:
(…) esquecia constantemente a natureza de Gondim e chegava a considerá-lo uma espécie de folha de papel destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça.
“Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota” (cap. I, p. 8 e 9).
Quando conhece Madalena, moça de atitudes e opiniões que vão além de seu alcance, Paulo Honório sente-se incapaz de entendê-la e, consequentemente, de dominá-la. Este sentimento de incompreensão e falta de controle se traduz em ciúme. Por esse motivo, quando se encontra em meio à turbulência de emoções, ciúme e ódio por Madalena, sobe à torre da igreja e, de cima, vê toda a sua propriedade, suas conquistas, suas posses, tudo aquilo que está sob seu controle e que, portanto, pode compreender:
Apesar de ser indivíduo medianamente impressionável, convenci-me de que este mundo não é mau. Quinze metros acima do solo, experimentando a sensação de ter crescido quinze metros. E quando, assim agigantados, vemos rebanhos numerosos a nossos pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas onde vive gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós, uma grande serenidade nos envolve (cap. 31, p. 142).
Madalena não o teme, o desafia. Não respeita suas decisões, age por si mesma. Portanto, não é ‘posse’ de Paulo Honório. Para oferecer equilíbrio e tranquilidade à sua consciência e ao seu coração, ele precisa retomar o controle sobre sua vida. Afinal, não é só a figura de Madalena que o perturba, mas sua própria figura quando próximo a ela:
Na estação D. Glória apresentou-me a sobrinha, que tinha ido recebê-la. Atrapalhei-me e, para desocupar a mão, deixei cair um dos pacotes que ia entregar ao ganhador (cap. 14, p. 72).
O eu-narrante, porém, não vê suas ações como o leitor, e, por sua necessidade de explicar o que aconteceu em sua vida, culpa sua alma agreste e sua profissão.
O desfecho do romance, com a morte de Madalena e a explosão da Revolução, reafirma a condição de Paulo Honório: total falta de controle. A obra, sempre regida pela dualidade dos contrários em fusão e separação constante, segue o ciclo infinito da construção pelo viés da contradição. Esse sentimento de falta de controle faz com que eu-narrante e eu-narrado se confundam, e ao mesmo tempo marca sua separação. O narrador não se abstém de suas emoções, e, ao invés de apresentar uma visão externa dos fatos, é incluído pela direção do enredo. O vão temporal não o faz se desapegar dos acontecimentos e emoções, mas os transforma, e inevitavelmente acarreta uma metamorfose existencial. Paulo Honório, como narrador, sente-se deformado – deformado pelo tempo, por suas ações, pelas coisas que fogem à sua compreensão:
Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes. (…) Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas (cap. 36, p. 171).
A separação entre narrador e personagem não pode ser observada apenas no enredo, mas também na própria técnica narrativa, transcendendo limites, restrições ou barreiras temporais. O caráter metaficcional do romance, introduzido já no primeiro capítulo, estrutura a narrativa e oferece ao narrador a possibilidade de se ‘intrometer’ no texto, seja comentando sobre os fatos ou refletindo sobre o ato de narrar. Em passagens como…
Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras (cap. 13, p. 71).
… não há dúvida de que a narrativa é guiada pelo eu-de-agora, fato que se reflete também em suas digressões.
A digressão representa a diferença simbólica entre uma linha reta que corre o percurso do tempo entre o início e o fim da vida e uma linha que dá voltas e curvas entre o mesmo início e o mesmo fim. A capacidade digressiva, em valores potenciais ou práticos, tem importância fundamental na construção de um caminho rico e cheio de histórias, e, em SãoBernardo, essa capacidade constrói não só a vida, mas também o ato de narrar. Como se se perguntasse por que viver, e qual o significado de sua vida, o narrador se pergunta, em diálogo consigo mesmo:
– Então para que escreve?
– Sei lá! (cap. 2, p. 11).
3. A tensão de contrários como imagem da vida
O produto desse processo é uma narrativa muito mais poderosa que o simples narrar de uma sucessão de acontecimentos. São Bernardo é uma narrativa formada pela não sucessão, pois não segue ordem, precisão ou sequer o mesmo tempo. É uma narrativa em que imagens representam personagens e o narrar é viver. Paulo Honório é criado e recriado a partir da imagem de um dínamo que emperrava, símbolo de sua paralisia frente à falta de controle e consequente sentimento de incompreensão sobre Madalena. Esse símbolo é responsável pela separação entre Paulo Honório antes de conhecer Madalena e Paulo Honório depois de conhecê-la. Madalena, da mesma forma, renasce através do pio de uma coruja, que passa a ser sua imagem durante a narrativa: “Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena”(cap. 1, p. 9). Essa imagem separa Madalena em corpo e espírito, já que as referências ao pio da coruja são feitas após a sua morte, ou seja, pelo eu-narrante. Os perso-imagens são, portanto, agentes da fragmentação do ser em vários eus.
Em Fausto, Mefistófeles representa um dos eus de Fausto e se constrói a partir de sua fragmentação:
Fausto: “Pois bem, quem és então?”
Mefistófeles: “Sou a parte da Energia (…)”
Fausto: “Mostras-te a mim inteiro e dizes que és parcela?”
Mefistófeles: “Quando o homem, microcosmo de loucuras, setem habitualmente por um todo; parte da parte eu sou, que no início tudo era, parte da escuridão, que à luz nascença de ra (…)” (Quadro IV, Cena II, v. 15-25).
A fragmentação do ser origina partes ao mesmo tempo contrárias e complementares. Em São Bernardo, Paulo Honório se desdobra em um eu do passado e um eu do presente, enquanto Madalena se desdobra em eu da vida e da morte. Em Fausto, Mefistófeles é um dos eus de Fausto, mas em momentos se prova maior do que ele. É símbolo de um espírito limitado e frio, que se opõe aos desejos impossíveis e aspirações ao infinito de Fausto, mas que tem como elemento fundamental “(…) o que chamais Destruição, Pecado, o Mal, em suma”(Quadro IV, Cena II, v. 24) .
Assim, ainda que represente a limitação de um espírito que não compreende sonhos maiores do que ele, Mefistófeles é também aquele que dá origem a esse sentimento. Simboliza a parte de Fausto que se deixa tomar por pensamentos que atingem o céu, mas que são, potencialmente, destrutivos. A inclinação de Fausto a esses impulsos provoca a abertura oferecida a Mefistófeles. O espírito não tenta Fausto, mas é tentado por sua ambição, pela inquietação derivada do conflito de emoções que o domina. A coexistência do homem e de um espírito que o nega é natural em sua formação, como Mefistófeles é natural na formação de Fausto. A abertura que oferece ao Gênio que nega não é para sua entrada, pois ela já se deu em sua formação primeira. A abertura é para a supremacia em poder, pelo domínio de seu coração. Mefistófeles desdobra o homem em parte de um fim, e todo de um início, ou seja, parte e todo formam uma unidade, em que, contraditoriamente, um deriva do outro, da mesma forma que a luz nasce da escuridão.
A reversibilidade de todos os pares de contrários – passado e presente, vida e morte, parte e todo, escuridão e luz – fundamenta a unidade dual que constrói o ser humano e recria a vida, especialmente através do processo cíclico que desencadeia. As oposições que nascem em síntese originam uma antítese, e assim por diante. Os contrários se complementam, e se fundem. Dia vira noite e vida chega à morte, mas da noite nasce o dia e da morte recria-se a vida:
Mefistófeles: “Este pesado, tosco, mundo, por mais que eu contra ele arrojasse, não pude ver-lhe o desenlaço (…) Quanto ao maldito povo, o humano e o animalesco, contra esse nada já consigo. Quantos lancei já no jazigo! E sempre corre um sangue novo e fresco. Vai indo assim, é de danar-se a gente!” (Quadro IV, Cena II, v.45).
Ainda que a fragmentação do ser pareça apenas dividi-lo, é também esse processo que o forma. Do mesmo modo que o ser humano tem vários eus, que podem estar em oposição, Fausto é seu próprio Mefistófeles. O conflito não nasce do sofrimento do homem, mas o constrói primordialmente. O sentimento de confusão e a contradição estão, essencialmente, em sua alma, e é isso que Deus defende em AIgrejadoDiabo: “Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tinham franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.”(cap. IV, l. 27).
Isso é representado simbolicamente pela unidade dos pares de contrários nas imagens de Deus e Diabo, Fausto e Mefistófeles, presente e passado em Paulo Honório e vida e morte em Madalena. O processo infinito do ciclo de vida e morte está na recriação de mitos e na desconstrução do discurso moralista nas palavras do Diabo em A Igreja do Diabo. Em Fausto, a fragmentação do ser cria e recria o homem pelo viés da contradição, que o desdobra em Mefistófeles. Em São Bernardo, o que importa não são os fatos, mas a atitude e o tom com que o narrador os conta. Paulo Honório é um atuar e narrar simultâneo, e sua postura agressiva e objetiva transparece em sua narrativa. Personagem e narrador, eu-narrado e eu-narrante se confundem em uma narrativa que é vida. A deformação, por exemplo, é característica do primeiro, mas invade a consciência do segundo. A recorrência de imagens como as “mãos enormes” de Paulo Honório marcam essa fusão:
Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. (cap. 26, p. 127).
Espreguicei-me. Uma noite sem dormir! Depois estremeci e olhei as mãos. As minhas mãos eram enormes, com efeito (cap. 26, p. 130).
A interferência do eu-narrante na atuação do eu-narrado é exposta na última citação. A reflexão sobre o exagerado tamanho das mãos é feita pelo narrador, enquanto “uma noite sem dormir!” é uma exclamação do personagem.
Uma reação em cadeia se estabelece: da falta de controle de Paulo Honório nasce a ideia de deformação, da deformação o abatimento do eu-narrante, e, dali, a sensação de paralisia de quem vive no passado:
Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem, seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me. (cap. 19, p. 95).
De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
– Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente. (cap. 36, p. 170).
Presentes estão o sofrimento quieto, a tranquilidade melancólica, a desolação cansada, a inquietação exausta. A solidão de quem busca encontrar-se em si mesmo, de quem busca uma razão para escrever e, assim, para viver: “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos” (cap. 36, p. 171).
Um sentimento de tranquilidade em meio à turbulência, de segurança na incerteza. Paulo Honório sobe à torre da igreja e, ao ver tudo aquilo que possui, sua propriedade, sente uma serenidade quando está perdido em seu ciúme por Madalena. Enquanto se esconde sob seu desespero e angústia, diz ser “loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranquila”. Deus, com naturalidade, diz que a atitude dos fiéis é a eterna contradição humana. Como se Ele soubesse que a consciência da impossibilidade de se entender algo aproxima as pessoas de seu entendimento. Na verdade, é uma contradição em termos, mas o sentimento decorrente dessa explicação no inexplicável é como a serenidade de Paulo Honório, uma paz no caos, entendimento na dúvida, clareza na escuridão. A contradição que constrói o ser humano é agente da fragmentação do ser em múltiplos eus, protagonista e criadora da infinitude cíclica da vida: a tensão harmônica dos contrários.
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* Marluce Faria de Melo e Souza é formada em Letras Português-Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e, atualmente, trabalha como Assistente Editorial na Editora Objetiva.
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Referências
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Versão de Gérard de Nerval. Trad. David Jardim Jr. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto.Trad. Jenny Klabin Segall. Itatiaia: EDUSP, 1981.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. A Igreja do Diabo.In: Obra Completa de Machado de Assis, vol. II.Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Record; Martins, 1975.