O Tempo antes e depois do Tempo e outras histórias edificantes
Há pouco mais de 60 anos, o cientista, romancista e político britânico C. P. Snow publicou uma obra imensamente influente: As Duas Culturas. Nela, Snow constata, e deplora, dois abismos, duas fissuras marcantes, na cultura ocidental do pós-guerra: a primeira sucedia entre os praticantes das Ciências ditas “Exatas” e os das chamadas “Humanidades”; a segunda se dava nos planos econômico e político, entre nações (regiões, de fato) “ricas” e “pobres”, ou seja, entre países economicamente afluentes (ou “desenvolvidos”) e economicamente carentes (ou “subdesenvolvidos”). Na maior parte do texto, Snow brande vigorosamente argumentos em favor de se reconhecer a educação pública e universalmente difundida como o meio régio de superar a segunda fissura (e assim, em atitude destemida, em tempos de Guerra Fria, elogia o sistema educacional da então União Soviética).
Contudo, foi sua crítica à cizânia entre cientistas e homens de letras vigente a essa altura nos círculos acadêmicos britânico e norte-americano que se tornou célebre; talvez a essência desta crítica possa ser resumida pela famosa anedota que se segue: em uma reunião de eruditos de ambas as áreas, que ocorria em uma prestigiosa e tradicionalíssima instituição universitária inglesa, Snow percebeu que a divisão de disciplinas se reproduzia na separação das conversas – literatos dialogavam com literatos, cientistas proseavam com cientistas (e ambas as coortes ignoravam os matemáticos!). Na dupla qualidade de físico e escritor, Snow procurou romper a barreira e indagou, a um grupo de seletos autores, se algum deles estava a par do significado do Segundo Princípio da Termodinâmica. A resposta foi uma negativa unânime, fria e levemente hostil. “Mas”, desferiu Snow, “trata-se do equivalente, para a Ciência, da obra de Shakespeare!” Se todos os presentes, literatos e cientistas, sem exceção, tinham conhecimento das criações do Bardo, por que a ignorância absoluta acerca de um conceito científico tão fundamental? A causa dessa distorção, concluiu ele, deveria ser buscada no sistema de ensino britânico, que fomentaria nos jovens a segregação entre as duas culturas, científica e humanista. (Num comentário posterior, Snow reconhece que a comparação era um tanto exagerada; os químicos ou os físicos, por exemplo, podem desconhecer noções de suma importância para os biólogos ou os médicos; seria mais justo, assim, equiparar o Segundo Princípio à obra de um autor menos notório que Shakespeare).
A repercussão dos argumentos de Snow entre os cientistas foi enorme, e marcou fortemente os debates sobre o ensino e a prática de Ciências nas décadas seguintes. A reação de alguns importantes literatos, porém, foi muito outra. R. J. Leavis, um dos mais conhecidos críticos literários da época, publicou um devastador ataque ad hominem às ideias de Snow: “nem sequer pode ser considerado um escritor!”, afirma ele; como então levar a sério suas teses sobre o estado da cultura?! Para Leavis, além do mais, a Ciência está preocupada apenas com “produtividade, padrões de existência material, progresso higiênico e técnico”; desse modo, vê os cientistas como “(…) rasamente otimistas, despercebidos da condição humana” (recordemos que eram tempos em que a tragédia suprema das Grandes Guerras havia abolido a confiança iluminista no progresso humano e avanços técnicos de indiscutível importância – como o início da Era Espacial e a ameaça do Armagedom termonuclear – inauguravam uma era de incertezas crescentes, rica tanto de oportunidades inéditas quanto de perigos terríveis). A esse ceticismo desesperançado, Snow ofereceu uma resposta à altura: “Há muito da condição humana que não é destino ou fatalidade e contra o que seríamos menos que humanos se não lhe oferecermos resistência e combate!”
Se examinarmos as inclinações presentes na cultura contemporânea acerca da Ciência (e da Técnica), decerto encontraremos um quadro distinto daquele de seis décadas atrás; contudo, certos traços muito significativos da atitude dos não cientistas para com a prática tecnocientífica, que já haviam sido assinalados por Snow, parecem ter permanecido – ou até recrudescido. Uma enquete recente acerca da perspectiva dos europeus sobre o funcionamento da Ciência e suas instituições revela uma incompreensão básica de como opera o empreendimento científico: uma larga maioria espera que seja possível aos médicos, por exemplo, garantir “100% de eficácia e segurança” a um medicamento. A especialização cada vez mais restritiva, em particular na formação de doutores, não parece ter arrefecido em parte alguma e muito menos, como desejava Snow, ter se revertido. E a cesura entre os praticantes das Ciências e das Humanidades tampouco esmoreceu, como sugere a ácida sentença de Martin Amis: “Ciência é Conhecimento, Conhecimento é Poder, Poder corrompe – os mais inteligentes na classe política sempre compreenderam isso!”.
Por outro lado, a distância entre os praticantes das Ciências e das Humanidades assinalada por Snow parece plenamente instalada também no lado científico da fronteira – haja visto a declaração famosa de ninguém menos que Stephen Hawking, paradigma do cientista contemporâneo, que não hesita em sentenciar que “a Filosofia está morta. Os filósofos já não têm nada de interessante a dizer aos pesquisadores da Natureza”. É difícil discernir um meio de aproximar cientistas mentecaptos de filósofos mortos-vivos…
Que avaliação podemos fazer hoje, em meados da segunda década do novo Milênio, sobre essa dissociação entre campos de saber? Parece persistir um consenso entre muitos dos praticantes das chamadas Ciências Humanas acerca da proeminência, na cultura contemporânea, da peculiar combinação de conceitos e receitas de aplicação que nos acostumamos a denominar, desde os anos de 1950, de TecnoCiência. De fato, parece bastante difundida, se não mesmo hegemônica, entre esses praticantes a convicção de que a experiência do pensamento, tal como a define a tradição clássica (“A mãe de todas as coisas”, como recorda Adauto Novaes), encontra-se hoje subjugada pelo predomínio da TecnoCiência. Mas nesse caso a experiência do pensamento recairá em um vazio – o da “perda da experiência histórica, a derrota da experiência”, segundo Walter Benjamin. Privados da experiência histórica, na presente Era das Mutações os homens se veem empobrecidos pelo vazio de uma vida sem sentido e sem espírito.
Essa pobreza tecnocientificamente engendrada da experiência de pensamento foi enunciada por Paul Valéry, por exemplo, já nos dias tumultuosos após a Grande Guerra, numa sentença de concisão e precisão terríveis: “Tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, passou hoje a se opor a tudo o que somos”; e repercutida meio século depois por Hanna Arendt, que perante feitos técnicos do porte do lançamento do Sputnik e da detonação da Bomba de Hidrogênio concluiu que estávamos sob risco crescente de testemunhar “a abolição das maiores invenções humanas, o Passado e o Futuro”. Com efeito, ocorreria na atualidade uma tal proliferação de fraturas insondáveis na textura dos acontecimentos, uma tal fragmentação do presente em um infinito de possibilidades insopesáveis, que o pensamento se desnorteia, emperra e afunda no vazio desse excesso.
Mas a fissura entre a Ciência (e, decerto, suas derivações técnicas) e a atividade positiva do pensar já havia sido antevista por Nietzsche, que mesmo num período em que vigorava amplamente a ideologia do ‘Progresso’ – talvez o mais autêntico substrato mítico da Cosmovisão clássica – assinalou com agudeza que “(…) o problema da Ciência não pode ser abordado no domínio da Ciência”. E seguindo esta linha encontraremos, no próprio coração da postura crítica das Humanidades frente ao vulto assumido pelos saberes e práticas da Ciência Natural, a bem conhecida observação de Heidegger: “A Ciência não se move na dimensão da Filosofia, mas, sem o saber, se liga a essa dimensão (…) A Ciência, enquanto Ciência, não pode decidir o que são Movimento, Espaço, Tempo. Portanto, a Ciência não pensa, não pode pensar com seus métodos (a Física não é o método da Física!) (…) É próprio de sua essência que dependa do que pensa a Filosofia, mas se esqueça e negligencie o que aí se exige ser pensado”.
Para considerar de modo apropriado esses juízos, convém talvez começar pela pergunta: o que é a Ciência? Tomemos por base a conceituação bastante concisa de Ernesto Sábato acerca da especificidade dos afazeres científicos. Para ele, a Ciência seria, antes de mais nada, uma forma de dialogar com a Natureza, ou seja, de estabelecer uma linguagem comum entre o espírito humano e o mundo natural. Surpreendente ideia, a de que podemos dialogar com as estrelas, com os relâmpagos, com os minerais… Toda prática de saber legitimamente científica, porém, deverá consistir de dois elementos, um sempre invariante, e outro sempre variável. O elemento permanente, que não muda nunca, é a regra fundadora dessa possibilidade de diálogo: o Método (do grego meta + odós, “caminho a seguir”). O método nos dá assim a diretriz a ser perseguida ao longo do empreendimento científico e para este fim consta, ele mesmo, de dois componentes, que Sábato denomina de Observação Cuidadosa e Raciocínio Impecável.
Observação cuidadosa é a arte (no sentido original do termo, de saber-fazer) do experimentador, que encontra-se com o fato ou fenômeno bruto e, por meio de seus instrumentos de medida, consegue traduzir esse fenômeno em um conjunto de grandezas, um painel de quantidades. Esses esquemas quantitativos descreveriam os estados-de-coisas manifestos ao se realizarem os fatos. Raciocínio impecável, por sua vez, é a arte do teorizador, que elabora, a partir dos dados da observação, propostas para a regra que governaria as relações entre as grandezas representativas do acontecimento, isto é, diagramas ou esboços da forma que presidiria as características do comportamento exibido pelo sistema sob exame. A partir dessa modelização do fenômeno seria possível, em princípio, não apenas descrever os diferentes estados já observados do comportamento do sistema como também, e ainda mais importante, predizer a ocorrência de configurações futuras. Em resumo: o experimentador oferece ao teórico a tradução do fenômeno em dados; com esses dados o teórico elabora um modelo; esse modelo permite fazer previsões, ou seja, antecipar estados que esse sistema deverá realizar se cumpridas certas condições, e então – e este é o aspecto crucial da aplicação do método – a investigação é devolvida ao experimentador, que irá aferir a eficiência das previsões desse modelo por meio de novas observações. Somente esse crivo empírico, esse retorno da teorização para a medição é que irá validar – ou não – o modelo sugerido. Ele será considerado adequado se as previsões forem próximas o suficiente das observações, e inverossímil se este não for o caso.
O método empírico é portanto o elemento que, na produção do saber científico, não muda nunca. Já o elemento que muda sempre, que não pode nunca permanecer o mesmo, diz Sábato, são os diferentes enunciados elaborados, em cada domínio de conhecimento, a partir da aplicação do método. Ou seja, o método permite gerar modelos que são chancelados, em dadas circunstâncias, pela verossimilhança das previsões que engendram, mas essa corroboração jamais é final; o jogo do conhecimento não termina, não pode terminar, pois a própria reiteração do método irá sempre dar lugar a novos enunciados, mais eficazes, mais aproximados. Os saberes científicos têm assim uma característica inescapável: os enunciados que produzem são necessariamente provisórios, estão sempre sujeitos à superação e à renovação. Karl Popper, de fato, afirma que o mais indispensável atributo de um enunciado científico é ser refutável pela observação; essa refutabilidade inerente aos resultados do método empírico, por sua vez, irá assegurar o caráter cumulativo, progressivo, dos empreendimentos científicos, que reconhecemos ao estudar a História da Ciência.
Mas se os saberes científicos tão somente operam com ‘verdades’, no sentido restrito de adequação de modelos a fatos observacionais, então não se prestam a alcançar ‘Verdades’, enunciados cabais, universais, absolutos; no máximo, podem nos descrever, aproximadamente, progressivamente, um estar, mas não um ser. Outros exercícios do espírito humano, como a cogitação filosófica, a inspiração poética ou a exaltação mística poderão talvez aspirar a pronunciar ‘Verdades’ últimas; as ciências só podem pretender formular ‘verdades’ transitórias, sempre inacabadas. Sábato observa, não sem ironia, que todas as vezes que se pretendeu elevar um enunciado científico à condição de Dogma, de ‘Verdade’ final e inquestionável, um pouco mais à frente a própria continuidade da aplicação do método científico invariavelmente acabou por demonstrar que tal Dogma não passava senão… de um Equívoco. Não há melhor exemplo que a fundamentação da doutrina nazista sobre a noção, biologicamente infundada, de raça. Essa precariedade, porém, não é um defeito ou carência da prática científica, mas sim a própria raiz de seu poder e eficácia.
Em contrapartida, os objetos da Ciência – seus princípios teóricos, suas leis empíricas, suas relações funcionais – não possuem conteúdos formais imediatamente expressivos (como os da Arte), nem se vinculam diretamente a fundamentos ontológicos ou a sistemas de valores (como os da Filosofia). Em particular – e aqui nos aproximamos do cerne do problema – o método empírico não pode justificar-se por si mesmo, isto é, o método não pode ser aferido pelo método, nem por seus sucessos, isto é, a eficácia de seus resultados não basta como princípio para sua adoção. Dito de outro modo: a Ciência não pode se autofundar, referir-se a si mesma como meio de legitimar-se como exercício do pensamento. O exame de suas condições de possibilidade (ou, no caso, pensabilidade) requer portanto um ponto de vista exterior, autônomo com respeito ao método empírico, que envolveria os preceitos de uma Meta-Ciência – que haverá de se identificar, por certo, com a própria Filosofia. Com efeito, se toda prática de saber requer um Meta-Sabera partir do qual seus objetos e objetivos, seus recursos e estratégias, suas fronteiras e pressupostos possam ser organizados e integrados, para que não se recaia numa regressão infinita de contextualizações (qual é o Meta-Saber do Meta-Saber, e assim por diante) é necessário um termo derradeiro, isto é, um Saber que se debruce sobre suas próprias condições de possibilidade e seja assim o Meta-Saber de si mesmo; ora, este domínio último das fundamentações não é senão a Filosofia. A Ciência e a Arte requerem uma Meta-Ciência e uma Meta-Arte, mas a Filosofia se define exatamente pela identificação, ou congruência, com a MetaFilosofia.
Reencontramos assim a motivação das objeções de Nietzsche e Heidegger que alinhamos acima. De uma perspectiva mais pragmática, o questionamento sobre os fundamentos da Ciência assume a forma mais prosaica, e ingente, de um silêncio embaraçado: se nos perguntamos qual seria a “postura filosófica” mais comumente adotada pelos cientistas naturais na atualidade, teríamos como resposta a opção, muitas vezes tacitamente assumida, senão mesmo inconsciente, por um “materialismo realista”, ou seja, a afirmação da existência de uma Realidade material plenamente autônoma frente à mente humana, sendo o método empírico exatamente o meio apropriado para cartografar, de passo em passo, esse continente desconhecido. Contudo, por mais razoável, ou conveniente, ou mesmo bem-sucedida que essa posição ontológica possa se revelar, ela evidentemente não é suscetível de demonstração empírica. E então…? Outro viés de crítica, exercido com desenvoltura por filósofos neo-heideggerianos, enfoca a crescente submissão das Ciências às Técnicas, isto é, a subordinação cada vez mais frequente, na sociedade contemporânea, da “busca do conhecimento” a finalidades econômicas ou utilitárias – como exemplificado, de modo cristalino, pelos departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento das indústrias farmacêuticas. Qual o “pensamento” que poderia vigorar aí?
Por sua vez, é fácil constatar que as concepções inovadoras advindas das Ciências contemporâneas são capazes de engendrar problemas filosóficos de fôlego, muitas vezes desconhecidos ou desconsiderados por diversas escolas filosóficas importantes – e pelos próprios cientistas que os estabeleceram. Para assinalar alguns aspectos desse campo de problemas, tomemos como ponto de partida um episódio muito significativo da história das ciências e das técnicas: a descoberta do “Tempo Profundo”. Sucede que os mineiros de carvão, na Inglaterra do século XVIII, tinham de lidar com inundações frequentes e para facilitar a tarefa de esgotar a água das minas foram desenvolvidas as primeiras bombas a vapor. Tratavam-se, inicialmente, de geringonças muito ineficientes, mas sucessivos aperfeiçoamentos – como os devidos a James Watt – acabaram por aumentar sua eficácia e os mineiros puderam então explorar veios cada vez mais profundos. Foi feita então uma descoberta perturbadora: podia-se observar camadas de sedimentos em sequência rigorosamente idêntica, em locais separados por centenas de quilômetros! Como era possível que ocorresse uma tal uniformidade em localidades tão distantes entre si? Que agente de abrangência continental seria responsável por depósitos tão similares?
Ora, os processos sedimentares, a partir da erosão das rochas nas montanhas e do transporte dos fragmentos para as terras baixas por aluviões, podiam ser estudados em campo. Pouco a pouco se consolidou a opinião de que a sequência de estratos observados nas minas podia ser o resultado desses mesmos processos – mas a profundidade que esses estratos alcançavam implicava em longos, muitos longos períodos de sedimentação. A cada aluvião, os depósitos vão se sobrepondo, assim os estratos mais profundos são também os mais antigos, e quando a idade desses estratos foi estimada, os geólogos chegaram a valores não de centenas ou milhares de anos, mas de milhões e de dezenas de milhões. Esta, diz Stephen Jay Gould, foi a entrada em cena do Tempo Profundo – a primeira vez em que durações muitíssimo mais vastas que as registradas pela história humana se tornavam aparentes na Natureza. A carne da Terra é antiga, muito mais antiga do que supõe nossa vã recordação.
A descoberta do Tempo Profundo teve importância capital para o entendimento da Evolução biológica. Dado um prazo suficiente, correspondente a um número apropriado de gerações, as variantes nos desenhos dos organismos podiam ser selecionadas em função de sua adaptação às mudanças ambientais, e isso explicaria a imensa variedade de formas encontradas no registro fóssil. Darwin não teria se convencido da eficácia da Seleção Natural por Adaptação para explicar os fatos da Evolução se Charles Lyell não tivesse lhe apresentado as evidências sobre a longa duração dos processos geológicos. Mas o conceito de Tempo Profundo também representa um desafio grave a nosso intelecto, porque nos lança defronte a uma antiguidade concreta, não conjetural, mas efetivamente inumana. Com efeito, o Tempo Profundo envolve grandezas da ordem dos milhões, dezenas de milhões, centenas de milhões, bilhões de anos. E somos assim obrigados a comparar – diria Platão, a fazer a razão – entre as durações da cultura, os períodos da civilização e essas extensões vastíssimas das bases materiais de nosso ser enquanto Matéria e Vida. Somos levados a confrontar a brevidade dos exíguos dez mil anos desde a invenção decisiva da Cidade com os cento e tantos milênios desde o surgimento de nossa própria espécie, com os três bilhões e meio de anos desde a aparição da Vida na Terra e os cerca de treze bilhões de anos desde a emergência do próprio Cosmos. Torna-se inevitável nos reconhecermos como muito recentes, como breves, efêmeros. Este reconhecimento é difícil, pois equivale a uma revolução copernicana, um deslocamento radical do pensamento, não do centro do espaço, mas do centro do tempo. A inumanidade dos períodos indicados pelo Tempo Profundo acarreta dificuldades que vão desde aspectos existenciais e éticos – como conviver com essas amplidões, como agir perante tais infinitudes? – até questões filosóficas de peso.
Consideremos a noção, apresentada por Francis Wolff, de objetos-mundo. Seriam objetos sem os quais a experiência de “mundo” não pode se realizar como, por exemplo, a linguagem e a consciência. Conhecer alguma coisa é estar consciente dessa coisa; se não apreendemos as vicissitudes dessa coisa em seus encontros no mundo, nada sabemos dela. A existência de algo só pode ser assegurada se estamos conscientes de sua presença no mundo. Mas só podemos compartilhar a consciência da presença desse ser pela linguagem; só pode haver uma comunidade de coisas, isto é, um mundo compartilhado, se houver uma comunidade de falantes. Esse tipo especial de objetos, portanto, funda a possibilidade de se experimentar e conhecer o mundo. Nesse sentido, diz Wolff, constituem uma espécie de jaula transparente, porque inevitavelmente temos de estar dentro deles, envolvidos por eles, para podermos nos dirigir ao mundo que está lá fora. Mas, ao mesmo tempo, se não houver o mundo, se não houver algo de que estar consciente, se não houver algo de que falar, a consciência e a linguagem são inúteis, não têm qualquer conteúdo, são nada. Os objetos-mundo têm então a característica de estarem sempre dentro e ao mesmo tempo fora de nós.
Vamos então, a partir dessa imagem, procurar definir mais precisamente o significado de “experimentar o mundo”. Experimentar o mundo seria, antes de tudo, presenciar. Algo existe, algo sucede, quando se dá perante uma consciência que o apreende. Tomemos como exemplo o procedimento de representação descrito por Descartes: encontro um corpo, isto é, meus sentidos percebem algo que ocorre na extensão, e essa percepção suscita a aparição de uma imagem ou ideia do corpo em minha mente. Essa imagem representada será a base do conhecimento, ou seja, é quando o corpo se faz presente uma segunda vez, não como ente extenso, mas como ideia no pensamento, que o conhecimento pode se realizar. Desse modo, a existência da coisa externa é assimilada à sua representação pelo sujeito; se não houver a relação sujeito-objeto, não pode haver experiência de mundo, logo não pode haver mundo. Vamos então fazer agora a seguinte interrogação: para a Ciência, há evidências incontroversas de que a Vida surgiu na Terra há aproximadamente 3 bilhões e meio de anos. Se o organismo é o suporte material indispensável para que a consciência possa surgir e operar, qual o estatuto do sujeito – e, portanto, do mundo – quando ainda não havia Vida? Dito de outra maneira, se o sujeito não pode prescindir de um corpo vivo, como avaliar o mundo e seus conteúdos tal como eram antes do surgimento do sujeito, isto é, desvinculados de toda e qualquer possibilidade de representação? Eis, como o denomina Quentin Meillassoux, o problema dos objetos ancestrais.
Desde a filosofia crítica de Kant, a correlação entre o sujeito que presencia e o fenômeno presenciado tornou-se o território no qual legitimamente se poderia especular sobre os entes e suas naturezas. Toda afirmação sobre a existência de algo ou a ocorrência de certo evento só teria sentido no âmbito dessa correlação, ou seja, se enunciada do interior da jaula transparente de que fala Wolff. A coisa em si, o objeto em si mesmo, por assim dizer no exterior da jaula, não pode ser conhecido. Eis, essencialmente, a crítica que Kant realiza às filosofias dogmáticas do passado, nas quais a razão poderia ter acesso a objetos absolutos. Todavia, o problema da ancestralidade parece oferecer um desafio, engendrado a partir da eficácia descritiva da Ciência, exatamente ao núcleo da filosofia crítica: a correlação. Pois se para os cientistas temos evidências sólidas, fornecidas por aperfeiçoados métodos de datação, acerca de eventos ocorridos há vários bilhões de anos – a formação da Terra, por exemplo – qual seria o estatuto de realidade, a modalidade de existência, desses eventos anteriores a qualquer correlação com qualquer sujeito?
Um correlacionista convicto poderia levantar uma objeção assinalando que é hoje, ao observar seus instrumentos de medida, que o cientista deduz a ocorrência de eventos remotos. Mas nesse caso, seria de crer que o objetivo do cientista seria fazer suas medidas simplesmente para presenciá-las e não para consolidar uma evidência, para ele inteiramente objetiva, de um processo ancestral! Outra objeção seria comparar a datação de um evento ancestral com a ausência de um observador que presencie um certo fato; uma folha caiu de uma árvore no coração da Amazônia, digamos, e ninguém estava lá para testemunhar o fato. Esse acontecimento existiu ou não existiu? Ou seja, haveria em relação às separações espaciais o mesmo tipo de problema surgido com as separações temporais. Ora, diz o correlacionista, trata-se de um falso problema, pois se lá houvesse alguém testemunhando o cair da folha, a existência do fato seria evidente, e até mesmo banal. O mesmo se daria, segue o argumento, para eventos remotos como a formação da Terra ou a emergência da Vida; bastaria que lá estivesse alguém para presenciá-los, e sua ocorrência não traria qualquer dificuldade. Mas a comparação entre eventos distantes no espaço e eventos remotos no tempo é na verdade falaciosa – pois o que está em foco quando se aborda os objetos ancestrais são exatamente circunstâncias anteriores a toda possibilidade de existir um sujeito; nem mesmo por hipótese haveria uma consciência com a qual o acontecimento pudesse se correlacionar. As práticas da Ciência, portanto, parecem lidar, com toda tranquilidade, com eventos que para toda uma corrente filosófica deveriam estar no domínio do impensável. Abre-se assim todo um campo de investigação em torno da própria capacidade e alcance do pensamento. Pode o pensamento explorar uma ocasião em que nunca esteve, em que nunca poderia ter estado? Pode o pensamento pensar sua anterioridade, sua exterioridade, seu vazio? Qual modalidade de razão poderia penetrar semelhante feixe de paradoxos?
Talvez não seja de todo um exagero concluir-se, mesmo que tentativamente, que o mainstream filosófico e humanista ainda se vincula a uma imagem clássica, demasiado clássica, da Ciência e da Técnica, ainda se prende ao dialeto newtoniano da Ciência do século XIX; e que, reciprocamente, o desconhecimento dos cientistas sobre as dimensões propriamente filosóficas de seu afazer – e de suas notáveis descobertas – impede um diálogo mais profícuo entre essas potências do pensamento. A Arte, então, haverá de nos socorrer frente a esse impasse. Olhando para amanhã, podemos nos alinhar a Henry Miller:
“Para mim, veja, os Artistas, os Poetas, os Filósofos, trabalham duramente polindo lentes. Tratam-se de vastos preparativos com vistas a um acontecimento que não cessa de se produzir. Um dia a lente será perfeita, e nesse dia todos veremos com clareza a assombrosa, a extraordinária beleza desse mundo”