O que nos oferece a Inteligência artificial?
Introdução
Ao esboçar uma reflexão sobre a Inteligência Artificial e sobre o que ela pode nos oferecer, deparamo-nos com os dois conceitos que formam essa expressão: inteligência e artificial. Portanto, antes de tudo, é preciso refletir sobre a própria noção de inteligência e considerar se esta representa ou não um ganho para o sujeito enquanto vivente e enquanto dotado da atividade de pensar. Em segundo lugar, convém pensar o que significa algo artificial, ou seja, algo que se antepõe ao natural, que nasce de uma construção humana a partir dos próprios recursos da inteligência. Logo, ao pensar sobre a Inteligência artificial pensamos sobre uma faculdade assemelhada a uma faculdade do sujeito, criada pela faculdade em sua modalidade original, que se acrescenta às suas disposições cognitivas oferecendo a ele um aparente ganho.
Esse trabalho pretende refletir sobre o que é a inteligência, quais os seus modos de operar e quais os limites de suas operações; pretende considerar em que uma inteligência, por assim dizer, de segundo grau pode agregar ao sujeito uma conquista nas suas disposições de pensar, bem como de estar no mundo e agir sobre ele. A inteligência artificial é recebida e festejada como otimização da vida e abolição do futuro como fonte de preocupação. Como diz Han, o homem da infocracia pretende superar a contingência do futuro; pretende calcular o futuro calculável e com isso fazer com que não nos cause nenhuma preocupação (2022b, p. 16-17). Diria Bergson, acautelemo-nos.
1 A inteligência
Bergson, em sua obra A evolução criadora, mostra que a história da evolução da vida produziu um desenvolvimento da inteligência como faculdade auxiliar da faculdade de agir, tornando o homem melhor adaptado às condições da existência, garantindo a ele uma perfeita inserção no meio ambiente que o cerca (1979, p. 7).
Sendo um instrumento do homem para sua segurança e sobrevivência, a inteligência triunfa quando constrói um caminho utilitário, um caminho em que o homem pode apoiar o seu agir, prevendo se os elementos dados em cada situação lhe são ou não favoráveis. A inteligência se pergunta sobre o que é preciso ser feito para que determinado resultado desejado seja atingido e assim, “vai de um arranjo das coisas para um rearranjo, de uma simultaneidade para uma simultaneidade” (BERGSON, 2006c, p. 144).
Para prever, ela extrai e retém do mundo o que pode ser repetido e calculado (BERGSON, 2006a, p. 5), o que pode ser estabelecido como um enunciado duradouro, sempre idêntico. Por conseguinte, o fluir que não se repete é por ela eliminado e o mundo inerte torna-se ao mesmo tempo, o resultado de sua abstração e o seu ideal – ela reduz o mundo para facilitar a influência do sujeito sobre as coisas. Faculdade substantiva da ciência, a inteligência se destina a preparar e a iluminar a ação humana sobre as coisas, compondo um mundo no qual o homem possa agir, o que implica a escamoteação de alguns efeitos (BERGSON, 2006a, p. 6).
Ocorre que essa ação do homem só pode se dar sobre pontos fixos, logo, é a fixidez que a inteligência procura (BERGSON, 2006a, p. 8; 9). O indivíduo supõe que quando estuda algo, este algo permanece estaticamente o que é, porque a vida estática se presta melhor às exigências da lógica e da linguagem. Transição e mobilidade não podem estabelecer o idêntico, logo o verídico, de modo que são deixadas pela inteligência. Toda representação intelectual busca paradas, retenções, justaposições, posições, descontinuidades; todo o resto é negligenciado. Conclusão: a inteligência não representa o mundo, mas sim o que lhe convém representar. A inteligência permite ao homem operar distinções, contar, abstrair (BERGSON, 1988, p. 71), desmembrar o que é contínuo em fases e sintetizar essas fases em coisas.
Para tratar da atividade própria do homem e das condições nas quais ela se exerce, ao invés de abarcar a totalidade da realidade, a inteligência desvia o olhar daquilo que não é de seu interesse, do que não serve às exigências fundamentais da vida. Desse modo, a faculdade da inteligência pode ser compreendida como “uma potência de extrair o que há de estabilidade e de regularidade no fluxo do real” (BERGSON, 2006b, p. 108). A imobilidade é uma necessidade do sujeito e quanto mais ele conseguir representar o mundo por pressupostos de imobilidade, melhor acredita que o compreende (BERGSON, 2006d, p. 165). Quanto mais o homem estabelece o estável, mais acredita triunfar na compreensão da natureza e, de invenção em invenção, ele caminha, certo de que a experiência lhe dá razão.
Ao invés de ler a realidade como uma duração, isto é, como uma continuidade indivisível de movimento, como um fluir dinâmico e ininterrupto, a inteligência capta instantâneos que se prestam às exigências de seu interesse, que podem ser calculados e expressos na linguagem corrente. “A inteligência deforma, transforma, constrói seu objeto ou só toca a sua superfície ou só apreende sua aparência” (BERGSON, 2006a, p. 37). Em outras palavras, ela manipula a matéria, mas não lhe toca o fundo.
A inteligência só sabe operar sobre objetos estáveis, ela necessita supor que um objeto permaneça o que é, sendo toda variação encontrada, considerada uma multiplicidade meramente quantitativa. Assim, o resultado das operações da inteligência sobre o mundo é um ponto de vista sobre as coisas, em que a organização real é substituída por reconstituição esquemática que responde à uma escolha, que recorta do objeto o que no homem desperta o seu interesse particular. Ao olhar um objeto, o homem, antes de tudo, se pergunta o que deve fazer com ele e o que ele pode fazer pelo homem, isto é, que gênero de ação ou atitude é possível (BERGSON, 2006e, p. 206). Em outras palavras, o conhecimento produzido pela inteligência é um conhecimento orientado em certa direção e revela uma análise do proveito que o homem pode extrair do que o cerca.
A inteligência só se sente à vontade diante da matéria inerte. Claro, o homem deseja tirar partido da matéria, mas se esta se mostrar movente, diferente a cada instante, imprevisível em suas expressões, como o homem realizará o que deseja? Para guiar a ação do seu corpo sobre os corpos circundantes o homem fabricou instrumentos e a ciência levou este trabalho o mais longe que pode (BERGSON, 2006a, p. 36-37). O que o homem objetiva é se assenhorar da matéria, preparar a sua ação sobre ela, garantir-lhe a efetividade de sua autoridade, produzir uma confiança embasada em uma representação necessariamente artificial e simbólica, que manifesta a vida apenas de modo parcial e local, restritiva da atividade total da vida (BEGSON, 1979, p. 9).
Para servir ao homem, a inteligência constrói ideias gerais, abstrações intelectuais cujo conteúdo pode ser conhecido por todos os homens e se mostram necessários para a sua vida. São interesses que, embora atendam ao indivíduo e à sociedade, são artificiosos. Assim, a expressão “Inteligência artificial” seria um pleonasmo, dado que toda inteligência já, por definição, é uma produção artificial. Ou, dito de outro modo, a Inteligência Artificial produz uma artificialidade de segundo grau, afastando ainda mais o sujeito do funcionamento da vida.
A assim chamada Inteligência Artificial, explica Nicolelis (2023) nada mais é do que a aplicação de métodos estatísticos do passado para o presente. Os resultados expressivos obtidos pela Inteligência Artificial conta com um novo momento da história do capitalismo que Zuboff (2021) chamou de capitalismo de vigilância, qual seja, uma era em que a experiência humana se torna matéria-prima gratuita que é traduzida em dados comportamentais gerando um superávit comportamental que reune informações de bilhões de usuários, em um projeto de vigilância surpreendentemente rentável e uma lógica de acumulação sem precedentes (2021, p. 95). Diante desse superávit comportamental faz-se a predição do agir humano, o que configura o surgimento de um novo mercado, que a autora chama de “mercado de comportamento futuro”. Essa predição se expande para além do comportamento humano e extrai projeções, estimativas futuras para todas as esferas da vida, fazendo o sujeito crer que o mundo futuro será uma reprodução do passado, como se faltasse ao mundo criação.
Os artifícios, sejam eles de primeiro ou segundo grau são produções intelectuais que possuem uma serventia, mas que não correspondem ao complexo desenrolar das formas do mundo. Por uma inversão interessada ao homem de ação, aquilo que é necessário se torna o real; o que é útil se torna a legítima face da vida. Venda-se os olhos para a limitação representativa da inteligência, levando o homem à crença de seu grande poder de entendimento. O que já é artificial em sua base, em seu próprio funcionamento ganhará uma segunda camada de artificialidade, prometendo ao homem rapidez em suas interações com o mundo.
O sujeito considera os esquemas da inteligência (sejam eles naturais ou artificiais) que servem aos seus anseios adaptativos, representações definitivas. Ele acredita que o resultado esquemático lhe permite, inclusive, realizar as predições futuras de comportamento da vida como uma reconstrução efetiva do real, isto é, o homem ao acreditar na inteligência, venda os olhos para suas limitações esquemáticas e parciais. Ele se afeiçoa à imagem inteligente porém, fictícia, artificial (ou duplamente artificial) do universo.
A crença espontânea do senso comum é que as potências da inteligência “natural” são suficientes para qualquer tema que se propõe estudar, e com mais razão ainda as potências da Inteligência Artificial. É em contraposição a essa crença que Nietzsche diz que o entendimento do homem é uma força de superfície, uma força superficial: seu pensar é um classificar, um nomear, isto é, “qualquer coisa que diga respeito ao arbitrário humano e não atinge a própria coisa” (1984, 54, p. 37).
A inteligência se habituou a operar assim, a serviço da vida prática, eliminando o que há de vivo e fluido, o que há de múltiplo e criador. Ao contrário, o rigor e a admiração que as construções intelectuais recebem residem na adesão imediata, sem esforço, que o homem comum lhe devota. Em realidade, toda prática intelectual é uma prática de contentamento do e para o próprio homem. Em uma palavra, uma autoadulação.
Sendo esquemática, simbólica e artificial, essa forma de saber sempre fracassará. Por mais confiante que esteja o homem diante de suas verdades, cedo ou tarde ele terá que admitir sua impotência e seu fracasso, porque a realidade é, antes de tudo, mobilidade. “Não existem coisas feitas, mas apenas coisas que se fazem, nada de estados que se mantêm, mas apenas estados que mudam. O repouso nunca é mais do que aparente, ou antes, relativo… Toda realidade é, portanto, tendência, se conviermos em chamar tendência uma mudança de direção em estado nascente” (BERGSON, 2006e, p. 218-219).
Há outras faculdades no homem que não estão a serviço da utilidade prática e que são capazes de apreender a vida em sua complexidade múltipla e movente, mas para que tal faculdade possa aflorar, é necessário se dedicar ao que não é útil à ação humana. Ou seja, enquanto a vida estiver contida pelas exigências do intelecto o pensamento não pode aflorar. Só ultrapassando os interesses da prática humana que o pensamento pode nascer. É nesse sentido que Heidegger afirma: não começamos a pensar ainda (2002, p. 111 e seguintes).
O que o homem comumente acredita ser pensar é uma reflexão para a ação. E é nesses moldes que a inteligência reina absoluta. Mas pensar é outra coisa. Entre a realidade concreta e a reconstrução artificiosa da ciência, que distância! (BERGSON, 2006a, p. 93). “A inteligência inteiramente pura é um encolhimento de uma potência mais vasta” (BERGSON, 1979, p. 50) – entre a criação contínua de imprevisível novidade que desenrola-se no universo e a representação pobre e esquemática da inteligência há uma brutal diferença.
Não se percebe essa diferença porque o homem como que se encontra hipnotizado frente aos poderes da ciência e da inteligência e mais ainda da Inteligência Artificial. Amoldado à imagem de um universo artificial, autoadulado pelo que constrói, com facilidade ignora a novidade sempre renascente, a movente originalidade das coisas. Em uma atitude de certo modo delirante, o intelecto se impõe sobre a vida, fixando seus interesses e, no processo de autoadulação que o caracteriza, acredita ter o melhor e o mais claro domínio do que ela é, quando, em realidade, apenas formula o que pede suas exigências próprias e o que o seu entendimento suporta demonstrar.
Em resumo, as práticas da inteligência e mais ainda, desta em sua modalidade artificial, não vão ao encontro com a natureza das coisas, mas ao contrário se afasta delas, deixam escapar o movimento que é próprio da vida das coisas, sua transformação a todo instante, sua imprevisibilidade imperativa, sua variação e fluidez produtora de surpresas potenciais, mudanças de rumo, criação de novas possibilidades. Tudo isso é inacessível às práticas das inteligência que, tão segura quando transita por coisas inertes, sente sua impotência frente à mobilidade real, à interpenetração mútua, à evolução criadora que caracteriza a natureza e que devem ser objeto da atividade de pensar quando esta se dirige às suas maiores capacidades.
É preciso ter conhecido com clareza a insuficiência da vida intelectiva e ter compreendido que a vida transborda a inteligência para deixar o culto dessa faculdade ou mesmo do culto que tem ainda mais adeptos que é o dessa faculdade em sua modalidade nomeadamente artificial.
A inteligência, diz Bergson, não admite o imprevisível, a criação (1979, p. 148). O que a satisfaz é o determinismo, a previsibilidade, o cálculo entre antecedente e consequente. Tais características definem a própria prática da Inteligência Artificial que não se compõe com a compreensão de que o novo brota sem cessar e que uma forma de vida pode surgir de causas imprevisíveis ou improváveis. Como diz Paul Klee, “em todo o universo, o que se dá é o movimento. O repouso que tem lugar na Terra não passa de um entrave ocasional da matéria. Considerar essa estaticidade como um estado primordial é um engano” (KLEE, 2001, p. 46). Se abandonarmos as estruturas finitas e nos encaminharmos para o infinito, perdemos o determinismo, a previsibilidade, os fins, a funcionalidade, que são os meios e os fins da Inteligência Artificial. Por essa razão, Bergson nos aconselha a acautelar-nos contra a inteligência (1979, p. 29) ou como diz Nietzsche, a se manter de pé sem esse apoio (1984, 120, p. 62) – mesmo porque o apoio não se sustenta, ele acaba por ruir por si mesmo.
2 Inteligência e infocracia
Ocorre que a cautela que Bergson prega e a desassociação do culto à inteligência se torna mais difícil nos tempos atuais dominados pelo que o filósofo Byung-Chul Han denomina infocracia. A sociedade de informação é a sociedade onde se elege a inteligência, que orienta soluções e resultados de curto prazo (HAN, 2022, p. 35-36), que opera sucessões incansáveis de estímulos.
Se Bergson fala da insuficiência da inteligência, uma vez que essa opera por pontos de vista e paradas sobre as coisas, o filósofo sul coreano afirma que a própria ideia de coisa desapareceu, estando o homem deste século afundado em uma vertiginosa quantidade de informações. Nesse sentido, “as informações se interpõem às coisas e as fazem desaparecer completamente” (2022b, p. 8).
Ainda que o mundo do domínio da informação se apresente como um mundo de ganho de conhecimento e liberdade, ele em verdade é um esvaziamento do mundo e da própria capacidade cognitiva, uma vez que a percepção das coisas dá lugar às surpresas dos estímulos. Se na prática da inteligência natural a vida já nos escapa, na sociedade infocrática tudo é ainda mais fragmentado.
A inteligência em sua prática natural e mais ainda em sua prática artificial nada mais é do que um mecanicismo, um automatismo. Logo, uma atividade empobrecida, uma visão incompleta e imperfeita da vida e de suas possibilidades.
Se o confronto perceptivo com as coisas já deixa a vida escapar, o confronto com as informações e o caminho das decisões algorítmicas obscurecem ainda mais a compreensão da vida, dado que as informações encurtam a própria perceção. A hipercomunicação aplaina as coisas, faz com que tudo se torne igual (HAN, 2022b, p. 49), fechando os olhos cada vez forte para a variação e multiplicidade da vida. Os smartphones, prossegue o filósofo sul-coreano, são como objetos autistas cujo manuseio é repetitivo e não criativo (2022b, p. 56).
O mundo digital sequer evoca o objeto, que dirá sua variação invisível. O acesso à realidade (mesmo de modo recortado e enquadrado) já não pode ocorrer. “A inteligência artificial gera uma nova realidade ampliada que não existe, uma hiper-realidade que não tem mais correspondência com a realidade” (HAN, 2022b, p. 64).
O pensamento sem hesitação, apenas calculador é tão somente pensamento hiperativo, que reage de forma imediata, que empobrece a vida fazendo da superior atividade de pensar nada mais do que uma mecânica estupidez. Chul Han diz que o homem contemporâneo se torna “uma máquina de desempenho autista”, esgotado em sua comunicação sem pausa e sem interrupção (2017a, p. 56).
3 A automatização do sujeito
De acordo com Zuboff, “não basta mais automatizar o fluxo de informações sobre nós; a meta agora é nos automatizar” (2020, p. 19, grifo da autora). Tornados idólatras da máquina (já não se consegue ficar alguns minutos sem checar o celular ou entrar em alguma rede social) porque não inseri-la definitivamente no campo da educação? Se ela é signo do progresso e das conquistas civilizatórias, como não seria benéfica à educação? Este mundo em que o fluxo de informações é automatizado ao mesmo tempo em que o são os sujeitos configura a era do capitalismo de vigilância: o mundo dos algoritmos e das máquinas. Segundo Zuboff, tecnologias de informação e comunicação hoje estão mais disseminadas no mundo do que a eletricidade, alcançando três dos sete bilhões de habitantes do planeta (2020, p. 14). Esta civilização da informação faz lembrar o conto distópico de E. M. Forster, “A máquina parou”, em que a máquina é idolatrada, dita o ritmo de vida dos homens chegando a ser objeto de culto, no renascimento tecno-religioso daquela civilização.
No mundo imaginado por Forster, inclusive, todo processo de aprendizado e conhecimento se dá por meio de palestras que hoje chamaríamos “on line” e, estar fora do mundo maquínico é estar “desabrigado” ou morto. Em determinado momento, um dos palestrantes sobre Revolução Francesa, diz: “Cuidado com as ideias de primeira mão!…Ideias de primeira mão de fato não existem. Não passam de impressões físicas geradas pela experiência e pelo medo, e sobre uma base assim tão tosca quem poderia construir um edifício filosófico? Deixe que suas ideias sejam de segunda mão, se possível de décima mão, só assim ficarão longe desse elemento perturbador que é a observação direta” (2018, p. 51). E prossegue o palestrante: “Seus descendentes estarão numa situação melhor que a sua pois vão aprender o que você acha que eu acho e assim mais um intermediário será acrescentado à cadeia. E com o tempo — sua voz se ergueu — virá uma geração que transcenderá os fatos, as impressões, uma geração absolutamente sem luz própria, uma geração seraficamente livre da nódoa da personalidade” (2018, p. 52). Na obra de Forster a máquina para de funcionar e não consegue regenerar-se; a nave aérea cai e despedaça-se, como a sinalizar a catástrofe que advém de tal forma de vida.
O mundo distópico de Forster, em que se deve tomar distância das ideias de primeira mão, é o mundo antiluminista de Kant, o mundo que consagra a menoridade e o apequenamento do espírito. Em seu texto “O que é o iluminismo?” o filósofo alemão afirma exatamente que pensar exige a saída do homem de sua menoridade, isto é, da condição de ser guiado sempre pela orientação de outrem (1995, p. 11). Kant diz que ao homem não falta entendimento, portanto, seria ele perfeitamente capaz de pensar de forma autônoma ao invés de buscar essa orientação fora de si. Nos termos de Forster, o homem seria perfeitamente capaz de produzir as ideias de primeira mão, ao invés de se contentar com as ideias em sua vulgarização mais baixa. Kant diz que se o homem pode se guiar por si mesmo, mas não o faz, é em razão de uma inclinação para o apequenamento.
O filósofo alemão afirma com todas as letras que quando um livro faz as vezes de entendimento, um diretor espiritual faz as vezes de consciência moral, um médico faz as vezes de orientação dietética, o sujeito mesmo nada faz ou pensa, deixando o outro pensar ou decidir por ele (1995, p. 12). Imagina quando um aparelho digital de forma onipotente fala por seu presente e por seu futuro. Se em Kant, que viveu no século 18 a menoridade torna-se para o homem a sua própria natureza, o que diremos do homem do século 21? O homem da menoridade não pensa, mas obedece; reproduz e acredita, logo não pode ser livre, mas ao contrário, “por toda parte ele se depara com a restrição de liberdade” (1995, p. 13). Como diz Han, “a inteligência artificial não pode pensar porque não se arrepia. Falta-lhe a dimensão afetivo-analógica, a comoção, que não pode ser captada por dados e informações” (2022b, p. 71).
Na anteposição do mundo artificialmente posta por essa inteligência assim denominada, não há espaço para a vida do espírito. O cálculo pode se dar em velocidade espantosa, mas falta o espírito e portanto, falta a vida no que tem de mais genuíno, falta ao sujeito a paixão pelo pensar. Automatizado na infocracia, o sujeito desconhece o maravilhar-se diante do pensamento, desconhece a suspensão dos juízos como atitude filosófica fundamental, tal como nos ensinaram os céticos gregos.
Significa dizer, afirma Han, que entramos em uma era mais primitiva do saber. As correlações produzidas pela mineração de dados constituem apenas uma forma elementar de saber, um cálculo de probabilidades e por isso, o futuro que ela calcula não é um futuro real (2022b, p. 78-81).
4 O mundo da estupidez
Toda atividade de pensar é atividade que produz um mundo novo. Muitos filósofos se esforçaram para caminhar no sentido da atividade de pensar mais livre e criativa, como é o caso de Bergson, por exemplo. Em sua obra, este filósofo se esforçou para mostrar a insuficiência da inteligência frente à compreensão da vida e frente e aos voos mais altos que pode o pensamento realizar. A vida contemporânea, dominada pela tecnologia digital que aclama a Inteligência Artificial, constitui um retrocesso para a vida do espírito que é fonte de ânimo com sua perspectiva permanente de novidade.
A cegueira frente à alteridade, à negação aliada ao gosto pela métrica, à prisão digital, não podem trazer clareza ou iluminação ao mundo, mas antes inviabilizam os métodos que a filosofia consagrou ao longo da história. Argumentos, fundamentos, reflexões, suspensões, debates dialéticos são práticas que pertencem apenas ao campo do pensar. Tudo isso está ausente na infocracia contemporânea que leva ao homem a um domínio mais precário do que o domínio da doxa – o domínio da estupidez. Lembremos que Aristóteles (1978, 100a 18 – 101a 18), nos Tópicos, define quatro formas de raciocínio: demonstrativo, dialético, erístico e paralogismo. O primeiro tipo parte de verdades primeiras que impõe a convicção de sua verdade por si mesma, enquanto que o segundo parte do que é endoxal, isto é, do que é possível ser defendido, do que constitui uma opinião geralmente aceita. O terceiro, diz Aristóteles, se mostrará uma falácia “até mesmo para as pessoas de pouco entendimento” e o quarto é o raciocínio flagrantemente falso ou o que hoje poderíamos chamar de o flagrante mundo da estupidez. Em verdade, dos quatro tipos apresentados por Aristóteles somente os dois primeiros podem ser chamados de raciocínios, merecendo os dois últimos o desprezo filosófico, mas o mundo da infocracia inverte esse pressuposto, provocando uma erosão até mesmo nas práticas do raciocínio.
O mundo da estupidez que a mídia digital promove desacata a lição primeira de Platão (2000, livro VII; X) que nos ensina que o mundo das imagens é o mundo das aparências enganosas, da ignorância e da imitação, sendo forçoso ao filósofo abandonar esse mundo de fantasmas e erros, elevando-se à prática dos conceitos. No mundo das imagens, produz-se uma inversão icônica e as imagens parecem mais vivas e melhores do que a realidade ao alcance da percepção (HAN, 2018, p. 53). As imagens ao invés de serem compreendidas como fantasmas, são produzidas e consumidas como visões otimizadas da realidade. No mundo da infocracia o precariedade do mundo da doxa não se interpõe à prática filosófica e a iconoclastia acaba por proteger o sujeito da realidade feia ou não instagramável.
A vida se torna uma entrega ao mundo das imagens, uma celebração de sua multiplicação em uma versão invertida do mito da caverna. Encantado com as imagens, atrofiado em sua capacidade de racionar, o sujeito contemporâneo se acha ainda mais distante da possibilidade de pensar que, além de exigir bastante de esforço, não se constitui na instantaneidade dos estímulos virais, no autismo narcísico dos memes, no compartilhamento massivo de informações, no processamento dos Big data.
Conclusão
O homem médio, amante da inteligência, seja em sua modalidade natural ou artificial, acredita no progresso e no sucesso dos procedimentos mecanicistas. Para Nietzsche, trata-se do princípio da maior tolice possível (2008, p. 319), uma vez que na realidade não há imutabilidade, causas constantes, regularidades. As fórmulas da inteligência, os cálculos que facilitam ou abreviam o mundo fecham os olhos para a quantidade invisível e indizível de forças que atuam sobre a realidade, fazendo com que toda estimativa de previsão seja falha em sua origem, pois na vida não há regularidade, previsibilidade. Essa é a nossa ambição ficcional, ficção da inteligência artificial, tarefa impossível de ser cumprida quando se compreende a vida como criação e liberdade, como imensa multiplicidade de caminhos e desdobramentos, como aquilo que não pode ser domesticado, metrificado, rebaixado a dados estatísticos.
A cautela que nos pede Bergson torna-se mais imperativa hoje, um século depois do seu apelo.
Referências
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