O que é filosofia especulativa?
Para os caminhos do pensamento, o passado continua passado, mas o vigente do passado está sempre por vir.
~Martin Heidegger
Resumo
Este ensaio tem os seguintes objetivos: 1. Investigar as principais acepções do conceito de filosofia especulativa e as respectivas vertentes, autores e obras. 2. Distinguir usos gerais e restritos do conceito de especulação e de filosofia especulativa. 3. Explorar a relação entre ontologia e especulação no século XX. 4. Descrever a centralidade do conceito de infinito e de transfinitos para a filosofia especulativa. 5. Ressaltar a importância da cosmologia e da ontologia para a renovação da filosofia especulativa. 6. Posicionar o novo estatuto que a especulação assume na teoria dos meios criada por Rodrigo Petronio, intitulada teoria dos mesons ou mesologia. 7. Descrever as Topologias Transdimensionais (TT) que emergem desse novo estatuto. 8. Definir esse novo estatuto da filosofia especulativa como Filosofia Orientanda ao Futuro (FOF). 9. Analisar as principais alterações das categorias de tempo, de espaço e de causalidade promovidas por essa nova definição de especulação e de filosofia especulativa.
Abstract
This essay has the following objectives: 1. To investigate the main meanings of the concept of speculative philosophy and their respective aspects, authors and works. 2. Distinguish the general and restricted uses of the concept of speculation and speculative philosophy. 3. Explore the relationship between ontology and speculation in the 20th century. 4. Describe the centrality of the concept of infinity and transfinites to speculative philosophy. 5. Emphasize the importance of cosmology and ontology for the renewal of speculative philosophy. 6. Position the new status that speculation assumes in the media theory created by Rodrigo Petronio, entitled mesons theory or mesology. 7. Describe the Transdimensional Topologies (TT) that emerge from this new statute. 8. Define this new speculative philosophy’s statute as Future Oriented Philosophy (FOP). 9. Analyze the main changes in the categories of time, space and causality promoted by this new definition of speculation and speculative philosophy.
Especular
A obra A Queda do Céu é um dos mais importantes tratados da metafísica do século XXI. Composta pelo xamã ianomâmi Davi Kopenawa em colaboração com o antropólogo Bruce Albert, temos aqui a cosmologia ianomâmi descrita e explicitada ponto por ponto. Um dos conceitos-operadores centrais dessa cosmologia são os xapiri. Os xapiri são nano-entidade dinâmicas que constituem todo universo, tudo o que existe. Eles se revelam ao xamã sob a forma de nano-humanos, girando sobre espelhos. A dinâmica relacional desses infinitos nano-espelhos transumanos em movimento produz a totalidade do universo. Esta cosmologia pode ser descrita rigorosamente como uma monadologia ianomâmi. Ou Leibniz é que seria um ianomâmi da filosofia? O importante é conceber essa noção de nano-universos e de nano-espelhos como matrizes instauradoras de todas as esferas do ser e do cosmos. Como usinas do real, como diria Nicolai Hartmann. E aqui começamos a adentrar nossa questão central. O termo spec do latim pode ser traduzido como especulação. Etimologicamente, é a raiz de speculum, que significa espelho e, por sua vez, deriva de specere, que significa olhar e observar. O verbo especular seria em termos literais espelhar. Outro sentido adjacente importante ocorre em relação ao termo espécie. A definição de espécies ocorre por meio da observação e, ao mesmo tempo, designa uma certa categorização do observado que produz uma taxonomia: uma distinção dos seres. Outro termo correlato é caverna (spéleos). A espeleologia é a ciência de investigação das cavernas ou de quaisquer ambiente profundos da Terra, como o oceano abissal. Entende-se assim por caverna não apenas a constituição rochosa da geologia, mas quaisquer espaços virtuais desconhecidos. A raiz de spec também se vincula a spe, que significa esperança. Outras línguas retêm a morfologia do latim, como o alemão (Spiegel), o dinamarquês (spejl), o iídiche (שפּיגל, shpigl) e o basco (ispilu). Mesmo em línguas cujo termo espelho deriva de outros radicais, como em inglês (mirror), em francês (miroir) e em árabe (مرآة, mara), parece haver uma convergência para o sentido da raiz latina mir, a mesma de miragem, maravilha e mirar (observar). Uma investigação mais detalhada precisaria levantar em que medida esta estrutura comum tem suas origens na estrutura indo-europeia das palavras com prefixo m’, de onde derivam também mito (mýthos), mudez (mutus), imitação (mimesis) e mundo (mundus), mas este é um campo arenoso e não é meu objetivo me mover por ele aqui. O que me interessa é, por meio de analogias e por meio desta espectral espeleologia do conceito, definir a filosofia especulativa como uma filosofia-espelho e a cosmologia especulativa como a investigação de um universo-espelho. E levantar em que medida a potência deste conceito-imagem pode revelar campos ônticos e epistêmicos inesperados, em um percurso abdutivo e heurístico.
Essa definição de filosofia-espelho envolve uma teoria dos meios e uma teoria da visibilidade-invisibilidade. Imagina-se não apenas os espelhos como sinônimos de uma tecnologia que permeia a Europa palaciana a partir do século XVII, mas como quaisquer superfícies lisas capazes de reflexão. Contudo, a filosofia-espelho recobre e implica também um maravilhoso campo de invisibilidade: as infinitas cavernas do cosmos e os infinitos estratos da Terra que ainda se encontram submersos e sem acesso para a nossa observação. Por sua vez, essa filosofia-espelho implica uma alteração radical das valências rotineiras da mimesis. Se o espelho é aquilo que reproduz de modo fidedigno o real e capturas os seres em uma absoluta literalidade, nunca se pode esquecer que todo espelhamento é um simulacro. Ou seja: a relação espelho-real não é equívoca (ilusão) nem unívoca (representação), mas biunívoca (coimplicação). Isso significa que não é apenas o real que se projeta no espelho e é devolvido para a ordem dos seres reais. Um espelho pode espelhar outro espelho, uma imitação pode imitar outra imitação e uma conjunção fabulosa entre espelhos e imitações pode dissolver toda a consistência e todas as substâncias reais. Por isso Deleuze ressaltou que o horror de Platão em relação à arte e à poesia nunca fora a imitação do sensível como duplicação do inteligível. O horror de Platão diz respeito a algo mais potente e mais essencial: os simulacros. Refere-se à possibilidade de uma multiplicação indefinida, desordenada e especular: simulações de simulações e simulacros de simulacros. Uma metástase de imagens-espelho. Uma miríade de universos-espelho. Por isso, todo espelho é uma linha de fuga feita de infinitas bifurcações e universos paralelos e realidade alternativos que existem na mesma medida que este meu corpo sentado à mesa existe enquanto escrevo. Nesse sentido, para a filosofia-espelho os simulacros não são apenas cavernas onde a mente se encontra aprisionada, iludida com o lusco-fusco de luzes e sombras que se projetam e ignorante do verdadeiro sol.
Para a filosofia especular, o caminho do conhecimento é rigorosamente o oposto. Não devemos sair da caverna para averiguar o real. Como a Alice de Lewis Carroll, um dos maiores pensadores especulativos de todos os tempos, nossa tarefa é adentrar deliberadamente o buraco-caverna e atravessar os espelhos que se nos ofereçam. Precisamos mergulharmos em estratos cada vez mais opacos, em zonas de indiscernibilidade cada vez mais tênues, com o intuito de descortinar as virtualidades de onde emergem não apenas este sol, o nosso sol privativo deste sistema e deste mundo, entidade pequena e relativa em relação aos trilhões de sois do cosmos, mas inspecionar as galáxias e os sistemas solares e as estruturas viscosas da matéria e da energia escuras que constituem as condições de possibilidade de todos os fenômenos que vêm à luz (fanos), incluindo todas as estrelas, sois de outros mundos. Apenas quando adentramos as cavernas, acessamos as câmeras de ecos e preendemos as ressonâncias infinitas que compõem todos os seres. Apenas mediante essa razão inversa e esse trânsito da transparência à opacidade e não da opacidade à transparência, o mundo pode ser finalmente conhecido, visto e admirado (admirare). Por outro lado, não estamos aqui seccionando regiões da natureza e extensões do ser com a navalha de Ockham. Estamos aqui sim especulando mundos e prismando o cosmos com os espelhos da mesologia. O corte desta navalha-espelho é mais fundo porque não gera simplificação, hiato entre as palavras e as coisas, mas multiplicidade e complexidade crescentes. Por meio deste nosso curioso instrumento conceitual, a taxonomia não é uma descrição e a antinomia real-nominal pouco interessa. As espécies são imagens-entidades simultaneamente referenciais e extensivas, universais e singulares, em continuidade ao conceito de haecceitas (estidade) que atravessa a filosofia de Duns Scott a Deleuze. Por fim, especular também é tramar o pensamento a partir da espera e da paciência, mas sempre em direção à esperança. Lembrando as prerrogativas de William James, a experiência é o horizonte do pensamento. A costura desse horizonte de experiência, gota a gota, é feita pela crença. E a confiança é o que nos conduz de uma crença a outra. A confiança é a promessa de que o pensamento pode extrair, das sucessivas e inacabadas flutuações e indeterminações futuras, os elementos fundamentais para criar novas crenças e expandir o horizonte, tanto da experiência quanto de si mesmo. E, por isso, como proponho neste ensaio, a filosofia especulativa é também uma Filosofia Orientada ao Futuro (FOF). À medida que se trata de um sistema pluralista, o universo-espelho da especulação corresponde ao pluriverso de James.
A partir desse posicionamento, pode-se observar que a filosofia especulativa tem um compromisso com as virtualidades. Se toda a história da filosofia pode ser concebida como uma nota de rodapé a Platão, como ironizou Alfred North Whitehead, um dos fundadores e um dos maiores expoentes da filosofia especulativa de todos os tempos, isso se deve ao fato de que a filosofia, em diversas etapas, esteve adstrita à solução ou à explicitação de antinomias: sensível e inteligível, necessidade e contingência, ato e potência, matéria e forma, aposteriorismo e apriorismo, sujeito e objeto, predicação e substância, mente e matéria, linguagem e natureza, consciência e mundo, percepção e conceito, empirismo e transcendentalismo, e mais uma grande lista. A filosofia especulativa pretende erradicar essas eternas oscilações antinômicas. E pretende fazê-lo por meio de uma concepção dinâmica e relacional entre atualidades e virtualidades, relacionalidade e existência. A existência não é uma categoria vazia e amorfa. Tampouco pode ser pensada como o conjunto dos existentes, entendidos como entidades atuais. A existência é a esfera global dos existentes que inclui todas as atualidades e virtualidades. Por seu turno, o real não se restringe ao conjunto das entidades atuais. O real consiste no conjunto dos existentes sendo que a existência inclui em si toda esfera infinita das virtualidades, passadas, presentes e futuras. A imagem-cristal da filosofia especulativa pode ser prismada nesse sentido em infinitos ângulos e feixes adumbrativos que não se esgotam, pois sempre uma nova virtualidade pode ser acessada de acordo com novas modalizações dos seres, das entidades e dos mundos. Esse compromisso com as virtualidades e com a relacionalidade situa a filosofia especulativa como uma das principais matrizes da teoria dos mesons e, por conseguinte, no âmago de um projeto de ontologia e de cosmologia pluralistas. Este ensaio procura mapear alguns vetores da filosofia que possam, de maneira direta ou indireta, ser definidos como especulativos. Partirei de uma estrutura espelhada para fazer jus à etimologia do especulativismo e a essa nova razão constelar e prismada por espelhos (speculi). Primeiro, apresentarei algumas linhas, autores, obras e conceitos que podem ser definidos como especulativos tanto em um sentido lato quanto estrito, sobretudo no que concerne à concepção de três grandes categorias: tempo, espaço e causalidade. Em seguida, inverterei os postulados. Procurarei expandir e extrapolar as categorias do tempo, do espaço e da causalidade, submetendo-as a uma nova compreensão de filosofia especulativa, baseada na mesologia (Petronio: 2015).
Ontologia e Realismo
O termo filosofia especulativa adquiriu mais visibilidade a partir da ascensão do movimento conhecido como realismo especulativo há pouco mais de uma década. O realismo especulativo é um movimento da filosofia contemporânea que surge em consonância com a virada para a ontologia (ontological turn). Sempre que se fala em retomada ou virada para a ontologia ou de retorno da metafísica, tem-se aqui uma perspectiva interessada ou equivocada. Isso ocorre porque a metafísica nunca abandonou o pensamento moderno. Trata-se mais de um problema de hegemonia intelectual do que de uma inviabilidade endógena aos sistemas metafísicos. Se a hegemonia da filosofia moderna passa por Kant, Marx e Descartes a Husserl, Heidegger e Wittgenstein representa uma hegemonia da crítica dos sistemas metafísicos, isso não quer dizer que esses sistemas deixaram operar ou que todos os problemas metafísicos foram solucionados. Pelo contrário, a estrutura de denegação que subjaz a essas relações dilemáticas com a metafísica é profunda e poder-se-ia dizer que define alguns aspectos essenciais dessa mesma modernidade. Em ouras palavras, os críticos da metafísica em geral estão apenas inconscientemente produzindo metafísica ruim. A linhagem dos autores modernos que desenvolvem sistemas metafísicos é tão grande e influente que seria possível inverter os sinais e dizer que a crítica à metafísica é um epifenômeno secundário da modernidade e não seu motor. Por outro lado, mesmo o combate às metafísicas substancialistas acabou redundando em novas ontologias não-substancialistas, ou seja, o combate antimetafísico continua refém das estruturas categoriais que definem o real, a despeito da valência dominante. Por isso, de Leibniz, Hegel, Schelling, Hartmann e Tarde a Heidegger, Deleuze, Sloterdijk e Badiou, mesmo nas diatribes antimetafísicas, a ontologia permanece praticamente intocada. Talvez em decorrência disso a chamada virada para a ontologia não seja tão ressaltada na Filosofia, mas possua desdobramentos marcantes e acabou sendo mais associada a debates internos à Antropologia (Holbraad e Pedersen: 2017).
Desse modo, a noção de ontologia, cunhada por alguns antropólogos como sinônimo de cosmologia, demonstra bem a relação indissociável entre multiplicidade de regimes de verdade, multiplicidade de mundos e multiplicidade de significados do conceito de ser. Estas propostas ficaram conhecidas no Brasil a partir dos conceitos de perspectivismo, de metafísicas canibais, de personitude e de multinaturalismo amazônico desenvolvidos por Eduardo Viveiros de Castro (2012, 1996, 2014, 2011, 2014). Esta abordagem, unindo ontologia e pluralismo, tem sido defendida por diversos autores, dentre os quais se destacam Stengers (2005, 2012, 2011, 2005, 2002, 2013), Latour (2003, 2013:301-307, 2013, 1994, 2012, 1995, 2002), Ingold (2008, 2006, 2004, 2004:25-57), Connolly (2005:98-92), Guthrie (1995), Descola (1996, 2006, 2014, 2001) Taussing (2012), Wagner (1991), Sahlins (2014), Kohn (2013, 20144), Haraway (2008, 2003), Mol (2014, 1999:74-89, 2002), entre outros. Essa vinculação entre realismo, especulação e ontologia também possui ressonância na chamada virada dos não-humanos (nohuman turn), representada sobretudo pela obra de Richard Grusin (2015), e dialoga com algumas novas áreas de estudo, tais como os animal studies, o novo materialismo, o novo idealismo, o transumanismo, e, obviamente, com as teorias da comunicação, das redes e dos media. Em sentido um tanto geral, pode-se dizer que esses movimentos, tendências e debates se incluem sob uma rubrica muito potente do pensamento contemporâneo: as novas ontologias. E se vinculam a alguns pressupostos da filosofia especulativa.
Em um sentido mais estrito, o texto fundador do realismo especulativo é a obra Depois da Finitude: Ensaio sobre a Necessidade da Contingência (2006) do filósofo francês Quentin Meillassoux, discípulo de Alain Badiou. A data de nascimento dessa vertente costuma ser situada em abril de 2007, nos workshops do Goldsmiths College, na Universidade de Londres. O eixo dessa nova proposta de realismo é justamente uma renovação da metafísica e da ontologia, levada a cabo por nomes como Ray Brassier (2007), Iain Hamilton Grant (2003, 2006), Graham Harman (2009, 2011, 2014), Steven Shaviro (1990, 1993, 1997, 2003, 2009, 2010 e, especialmente, 2014), Levi Bryant (2011, 2008, 2011a, 2011b, 2014), Peter Gatton (2014), Ian Bogost (2012), Timothy Morton (2007, 2010, 2013a, 2013b., 2016, 2017, 2018), Eugene Thacker (2004, 2005, 2007, 2010, 2011, 2013, sobretudo 2015a, 2015b, 2013), Markus Gabriel (2015, 2015), entre outros. Claro que nem todos esses autores se mostram alinhados às demandas mais ou menos ortodoxas do que venha a ser definido como realismo especulativo. Podemos apenas posicioná-los como pertencentes a uma busca comum de novas chaves de interpretação do pensamento contemporâneo, em consonância com uma renovação da ontologia. Eles também parecem ter em comum uma demanda por realismo presente em diversas ciências e saberes, não apenas na filosofia, e cujo intuito é refundar algumas matrizes da metafísica que haviam sido abandonadas pelo pensamento moderno.
Contra o transcendentalismo, as filosofias da consciência, as filosofias da linguagem, o idealismo, a fenomenologia e, sobretudo, contra o correlacionismo consciência-mundo, dominante na filosofia desde Kant e Descartes a Husserl e ao existencialismo, o realismo especulativo propõe a existência de um âmago duro de realidades (seres) em todos os processos. Estes processos não podem ser compreendidos pela cisão sujeito-objeto e pelos esquemas do empirismo-transcendentalismo que, segundo Foucault, determinam a filosofia ocidental desde o século XVII. Uma das bases desse correlativismo e desse dualismo é a premissa de que não existe um mundo anterior ao humano. Nesse sentido, para o correlativismo, quando falamos em mundo, necessariamente pensamos em um mundo de humanos como humano. Um dos desdobramentos do realismo especulativo ocorre justamente a partir do diálogo com a antropologia da ciência, em especial com a obra de Bruno Latour. A crítica ao chamado correlativismo desdobra-se em uma crítica à fenomenologia. E encontra na ontologia de Heidegger, sobretudo em sua obra A Coisa (Das Ding), um ponto de inflexão. Esse desdobramento gerou uma ramificação de interesses e propostas: a Ontologia Orientada aos Objetos (OOO). A OOO e o realismo especulativo se guiam por esse combate a essa visão correlacionista. E, ao fazê-lo, ajudaram a construir modelos conceituais para a compreensão de um mundo de superobjetos (Timothy Morton), de seres não-intencionais e de agenciamentos meta, extra e transumanos. Entretanto, como se deve supor, a filosofia especulativa e os projetos de ontologias modernas e contemporâneas não se restringem ao realismo especulativo nem à OOO. Quais seriam as outras linhas evolutivas da ontologia e da especulação? Procurarei explicitá-las a seguir.
Figuras da Temporalidade
William Walsh (1968) baseia-se em uma perspectiva segundo a qual a filosofia especulativa seria um tratamento especial dada à temporalidade e à historicidade. Não seria uma maneira de compreender a história da filosofia, mas uma doadora de modelos estruturais para a filosofia da história. Walsh situa Giambattista Vico, filósofo da história e criador de um novo modelo de compreensão dos ciclos históricos a partir do corso e do ricorso, do fluxo e do refluxo, como um dos primeiros porta-vozes dessa visão sobre o passado. Não por acaso a Ciência Nova é uma revolução nas ciências humanas e um divisor de águas na compreensão da temporalidade, dos mitos e da racionalidade. Pioneiro nas reflexões sobre o tempo humano, Vico foi lido e incorporado por nomes tão diversos quanto Marx, Isaiah Berlin e Lévi-Strauss. Nesses termos, a filosofia especulativa não seria um instrumento descritivo, compressivo ou hermenêutico dos eventos, em busca de um sentido. Especular seria operar a partir de categorias capazes de pensar as condições de possibilidades da totalidade dos eventos no tempo. E, mais do que isso, especular seria uma capacidade de reconhecer um certo fundo de determinação e liberdade por meio dos quais os processos históricos deixam de ser apenas irreversíveis e adquirem uma lógica interna em suas manifestações. Essa lógica pode ser extrapolada com o intuito de gerar padrões e regimes temporais recorrentes e, em certa medida, compossíveis e previsíveis. Ora, nessa chave, a conexão poderosa entre especulação e historicidade, pensamento e tempo profundo pode ser entendida como uma das matrizes de alguns autores basilares do pensamento moderno, como Hegel e o Idealismo alemão, Nietzsche e Freud. Inclusive pensadores tão diversos quanto Marx e Oswald Spengler podem ser identificados como pensadores especulativos. No século XX, Robin Collingwood (1978), Karl Löwith (1991), Reinhart Koselleck, Alexander Kojève, Fernand Braudel seriam expoentes da especulação. E, hoje em dia, a arqueologia dos media estaria em completa consonância com esse modelo especulativo-temporal.
E a ontologia? Não por acaso, o Idealismo alemão, sobretudo Hegel e Schelling, estão entre as pedras fundamentais da categorização dos novos realistas e de algumas novas ontologias, como se vê nas obras de Iain Hamilton Grant e de Markus Gabriel. Embora Hegel tenha desenvolvido a fenomenologia e uma filosofia do Espírito que pressupõem a noção de consciência, a ciência da lógica hegeliana pode ser entendida como sinônimo de ontologia. Essa relação inextricável entre dialética, lógica e ontologia atravessa todo seu sistema. E, por conseguinte, é frequente ver-se referência à doutrina de Hegel como uma doutrina especulativa. Se a associação entre lógica, ontologia e dialética é o coração desse sistema, a fenomenologia é o método de investigação das condições de emergência das figuras e contrafiguras que determinam a historicidade dos eventos bem como promovem a elaboração do conceito na ordem da razão e da autoconsciência do Espírito no interior do sujeito. O mesmo se pode depreender da teoria das idades da Terra, da filosofia da revelação e da filosofia da mitologia desenvolvidas por Schelling, concebidas como cosmogonia e como ontogênese dos modelos de pensamento que instituem o campo do pensável. Como na matemática pura, o Idealismo, em especial Hegel e Schelling, representam um dos cumes, em toda história da filosofia, de uma investigação sem objeto. Uma odisseia do pensamento que se dobra sobre si mesmo e tem como finalidade refletir a estrutura mesmo do pensar. Diferente de Kant, a operação dos conceitos é entendida não como resultante da dedução transcendental, mas como processos reais e efetivos (Wirklihkeit). Em outras palavras: como filosofia especulativa. Tampouco foi por acaso que boa parte do marxismo ocidental, como alternativa ao marxismo russo estrito de Plekhanov e ao materialismo histórico soviético, propôs uma leitura de Marx na chave da ontologia e da ontoteologia, com nuances mais ou menos vinculadas a uma hermenêutica messiânica (esperança). De fato, é um tipo de investigação situada entre a teologia e a ontologia que unifica nomes como Luckács, Benjamin, Karl Korsch, Ernst Bloch, Sartre, Althusser, Adorno e desemboca ativa e cristalina nas ontologias de Negri, de Castoriadis e de Kostas Axelos, este último um dos maiores especulativistas do marxismo.
Entretanto, identificamos dois problemas nessa vertente difusa de especulativismo que se delineia do século XVIII ao século XX: ela se restringe a categorias estritamente temporais e abrange recortes de tempo que, a despeito de se situarem em alguns milhares de anos, ainda são muito pequenos. Essa limitação e delimitação nos conduz à pergunta: como ficam as outras duas categorias essenciais do pensamento, o espaço e a causalidade? Essa pergunta nos leva a uma bifurcação da filosofa especulativa que inclui muitos autores marginalizados dessa grande estrada do especulativismo temporalizado, realista e idealista. Dentre esses autores estão Giordano Bruno, Leibniz, Hume, Peirce, Darwin, Cantor, James, Whitehead e Sloterdijk. Egresso da matemática pura, Whitehead vai desenvolver as bases da chamada filosofia do organismo e do processo. No entanto, a despeito de ser um nome eclipsado e omitido de modo infame, ao longo do século XX e ainda no começo do século XXI, exceção feita a alguns pensadores contemporâneos como Steven Shaviro e Isabelle Stengers, Whitehead é um dos mais importantes filósofos a definir seu próprio sistema metafísico como filosofia especulativa. Mais do que isso: institui as diretrizes dessa filosofia e da doutrina especulativa como um todo, no corpo das teorias processuais e do organismo. Ademais atribui uma semântica e um estatuto específicos para esse novo sistema, entendido literalmente como filosofia especulativa e como cosmologia. O mesmo ocorre com Peirce. Não bastasse as contribuições imensas em quase todas as áreas do conhecimento, da lógica, da matemática e da metafísica à epistemologia, à cosmologia e à filosofia da linguagem, construiu a arquitetura de seu sistema integral dos signos e dos processos de significação em torno de um novo saber especulativo: a semiótica. A filosofia do organismo de Whitehead e a semiose infinita Peirce são as balizas especulativas mais poderosas de toda filosofia moderna e contemporânea e, em certo sentido, transformam alguns conceitos e operadores tais como objeto, sujeito, realismo e idealismo em dicotomias insuficientes e mesmo ineficazes para a compreensão e a construção de um novo regime de seres, eventos e mundos.
Em outra linha, Bruno, Leibniz e James podem ser entendidos como criadores de ontologias e de cosmologias pluralistas das mais potentes. A pluralidade de mundos e a dimensão desempenhada pelo infinito na obra de Bruno foi de tal maneira subdimensionada, que a modernidade pôde construir seus sistemas racionais e dedutivos como se nada houvesse acontecido. Leibniz demarca uma distinção clara entre criação e geração, entre novidade e natureza. Para a coerência de seu sistema racional, Deus seria o doador de toda novidade e de toda criatividade e por isso o pluralismo infinito das mônadas se condensa em um universo unificado pela intervenção divina. Embora não se possa falar em pluriversos em Leibniz, a monadologia é um sistema metafísico coeso que pressupõe um dos mais decisivos descolamentos entre as noções de substância e de substrato, entre o devir infinito das formas substanciais e as alterações essenciais que lhes ocorre a cada metamorfose. Por isso, incluindo não apenas a Protogeia, mas também a monadologia, o sistema da natureza de Leibniz em seu conjunto é um preâmbulo revelador dos mecanismos da seleção natural e da teoria da evolução de Darwin. Ontologia celular e processo corpuscular, a natureza é o conjunto policêntrico desses nanotijolos metafísicos chamados mônadas que, sendo simples, compõem todos os níveis da complexidade, em uma previsão da teoria da informação, dos algoritmos e da inteligência artificial. Em consonância com esse pluralismo policêntrico e com essa nova ontologia de pluriversos, a indiscernibilidade e a impossibilidade de reconstituição das condições iniciais dos sistemas é o golpe final perpetrado por Hume no castelo de cartas das filosofias da unidade, dos monismos, dos universalismos e dos transcendentalismos. Contudo, todos esses sistemas pluralistas dependem de uma dimensão paraconsistente que lhes confira efetividade e, ao mesmo tempo, inviabiliza quaisquer nostalgias de unidade, passada ou futura. Essa dimensão paraconsistente é a costura entre ontologia e infinito. E ela se revela na categoria de causalidade e de universo. Os estertores dessa reflexão pluralista radical, em seus desdobramentos na cosmologia e na ontologia, encontram-se na obra de um matemático do século XIX: Georg Cantor.
Transfinitos
Em paralelo à constituição desse campo entre a especulação e a ontologia que acabei de descrever, transcorre a evolução conceitual marginal de um conceito: o infinito. E a consolidação de um dos campos transdisciplinares mais instigantes e mais potentes dos séculos XX e XXI: a cosmologia. Como se verifica na obra de Meillassoux, o conceito de infinito é um conceito matriz e norteador de todo pensamento especulativo. E, por isso, Cantor é um autor-matriz para a evolução dessas relações entre infinito, cosmologia e especulação. Em linhas gerais, podemos dizer que, da Antiguidade ao século XIX, a filosofia sempre trabalhou com a noção de infinito potencial. E esse infinito potencial foi assimilado a Deus e a uma divindade, estabilizando a disfuncionalidade e a irracionalidade inerentes a este conceito. Como alternativa a este infinito potencial, Cantor propõe a seguinte possibilidade: se cruzarmos duas linhas de elementos de dois conjuntos igualmente infinitos, será gerada uma identificação completa entre os elementos de cada um destes conjuntos. Esse cruzamento gera algo inesperado: uma fração residual que não se encontra no cruzamento de ambos os conjuntos, mesmo sendo ambos os conjuntos infinitos. Isso nos revela dois problemas: não existe apenas um infinito e, mais do que isso, nesse cruzamento de linhas infinitas, existem infinitos maiores e menores uns em relação a outros. Cantor instaura assim quantificadores internos às séries infinitas e promove uma virtualização do infinito. E surgem aqui os transfinitos.
O conceito de cosmologia, por sua vez, pertence sobretudo às esferas da filosofia, da antropologia e da física teórica. Inscreve-se como uma metateoria capaz de imaginar, conceber e descrever modelos do cosmos. Na esfera da física teórica, entende-se cosmos como tudo o que existe, na acepção do cosmólogo brasileiro Mario Novello. Entretanto, um dos problemas nucleares da cosmologia ao longo do século XX diz respeito às contradições inerentes ao modelo hegemônico do big bang quando confrontado com a teoria da relatividade métrica. Enquanto explicado a partir das teorias da relatividade especial e geral, a imagem de um ponto inicial do universo atual adquire consistência. Entretanto, a teoria da relatividade métrica pressupõe uma multiplicidade de geometrias e de tempos, variando para cada corpo. Essa condição de variabilidade de geometrias nos obriga a adotar geometrias não-euclidianas e alternativas ao paradigma dominante da geometria de Minkowski. Essa variabilidade coloca em questão a universalidade das leis, que passam a ser pensadas como extrapolações das condições terrestres para o resto do cosmos. Também coloca em cheque o apriorismo de um tempo e de um espaço absolutos, vigente de Newton a Einstein. E essa variabilidade também recoloca o problema que foi denegado ao longo de todo século XX pela física e pela cosmologia: o problema do infinito. Como alternativa ao big bang, surge o modelo de um universo eterno e dinâmico cuja flutuação original, identificada como origem espaciotemporal das condições atuais, não seria uma singularidade, mas um ricochete (bouncing). E, por fim, se o universo é eterno e as leis dependem da variabilidade de geometrias, estas mesmas leis dependem das variabilidades e modificações do universo como um todo. Nesses termos, as leis da físicas estariam em relação de dependência de leis cósmicas, que não seriam passíveis de unificação e de verificabilidade completas. Diante de tudo que foi exposto até aqui, desenhando um percurso espiralado e em ziguezague, proponho levantar os principais conceitos, operadores, funções, regimes e mundos decorrentes da aplicação da filosofia especulativa às três grandes categorias do pensamento: tempo, espaço e causalidade.
Demarcação
A filosofia especulativa, como eu a concebo, é uma linha da mesologia, a teoria dos mesons-meios que tenho desenvolvido há alguns anos. Para a teoria dos mesons, tudo que existe, existe em emaranhados de pluriversos. A categoria fundamental da mesologia é o meio, entendido em sua perspectiva relacional radical. Os mesons são nesse sentido meios-mundos e meios-media, no sentido de que todo meio é um ambiente situado e ao mesmo tempo um feixe de relações-mediações entre uma multiplicidade infinita de seres entre si, bem como um feixe de relações desses mesmos seres e mundos com outros meios-mundos, atuais e virtuais. Um aspecto importante da mesologia é sua natureza radicalmente virtual. Em outras palavras, essas modalidades de meios não se restringem ao campo das atualizações. O vasto e infinito oceano das virtualidades também compõe uma multiplicidade infinita de meios. O que é uma virtualidade? A virtualidade é algo que existe em alguma esfera espaciotemporal, em alguma topologia transdimensional e nas intersecções de meios, mas que não se atualizou. O filho que não tive nunca se tornou uma entidade atual, mas mesmo assim existe. Os diversos meios e mundos transfinitos nos quais esses filho vive compõem a existência virtual deste filho. O simples fato de eu o mencionar neste ensaio é uma maneira de atualizá-lo. Entretanto, não consigo conter, nomear ou definir todas as infinitas linhas causais e os infinitos mundos possíveis contidos na linha de vida deste filho errante. A vastidão desse espaço-tempo, habitado por este meu protofilho, constitui mundos, combinações, deslizamentos, ambientes, realizações, promessas, desejos, objetos e tantas outras entidades virtuais e atuais que, por sua multiplicidade infinita, não podem ser determinados em toda sua extensão. Todas essas vidas existem em termos efetivos, mesmo se nunca forem atualizadas e conhecidas-percebidas por algum conhecedor-percipiente.
A mesologia trabalha então com algumas definições e demarcações conceituais de base. Uma delas diz respeito aos existentes e à existência. Os existentes são as atualizações do vasto oceano de entidades virtuais da existência. A existência é infinita, ilimitada, mas determinada. Os graus de indeterminação das entidades virtuais dizem respeito mais à perspectiva que as entidades atuais têm das entidades virtuais do que a uma ausência de determinações das unidades virtuais. Esse é um aspecto importante, pois nos protege da ideia de que o continente de entidades virtuais seja não-real e, portanto, não-racional. O processo de realização de todas as entidades engloba entidades atuais e virtuais. Contudo, um erro do pensamento durante milênios foi determinar as condições de possibilidade do real como sendo idênticas à aparente unidade das atualizações. Como veremos mais adiante, as atualizações não podem ser totalizadas. E, por conseguinte, muito menos as virtualizações. Por outro lado, se tudo é relacional e os mesons sempre são meios e mundos, os mundos e meios dessa esfera mais vasta da existência tampouco são abstrações. E muito menos são produtos da facticidade e das paixões tristes de seres finitos, absortos na temporalidade e penhorados pela morte, como querem algumas filosofias da existência. Esses meios-mundos, mesmo mergulhados em uma esfera de absoluta incomensurabilidade, são efetivos. Compõem essa imensa esfera concêntrica do real que é idêntico à existência. Existir é diferir. E existir é realizar. O infinito é o modo de realização da existência, em suas dimensões atuais e virtuais. E aqui temos outra definição radical da mesologia: a realidade é o modo de ser da existência, em suas atualizações e virtualizações. Esse modo de ser da existência se chama cosmos.
O cosmos é o conjunto atual e virtualmente infinito das relações e das realizações, dos mesons e das realidades. Por fim, mais uma definição radical da mesologia: não há distinção possível entre ser e forma, entre ser e relação, entre mundo e meio. Nesse sentido, as entidades atuais-virtuais, como meu protofilho para mim, e todas as escalas e esferas, dos microcosmos aos macrocosmos, do quântico e não-discreto às estruturas das galáxias e aos trilhões e trilhões de sois, sistemas, mundos, agentes e entidades: tudo isso é real e efetivo. Não há nenhuma exterioridade representacional absoluta que não seja a relatividade absoluta e a absoluta excentricidade dos pluriversos e dos transmundos transfinitos dentro de cada um e entre si. Isso nos conduz a mais um agregado para finalizar essa argumentação. Mesmo concebendo a existência como o oceano infinito das atualizações-virtualizações, não se pode privar de dignidade a irredutibilidade radical de cada existente em cada esfera intramundana. Isso quer dizer que o cosmos é sinônimo de existência, entendida como um todo aberto atual-virtual. Mas o cosmos também é o feixe infinito das existências singulares, flutuando no horizonte infinito da facticidade, da pluralidade preênsil e da experiência. Em outras palavras: o oceano atual-virtual da existência pode ser reduzido ao suspiro breve e contingente, ao gesto fugaz e à volatilidade do mais tenro e simples existente. Se a existência atual-virtual é uma efetividade, a efetividade é a realidade e a realidade é o conjunto infinito de todos os existentes atuais-virtuais. Nesse sentido, cada singularidade, por mais sutil, insignificante e delicada, possui o seu mundo. E no regime dos pluriversos, nenhum mundo pode ser reduzido a outro mundo, nenhum existente pode ser subsumido a outro existente, nenhuma vida pode ser permutada por outra vida.
Topologias Transdimensionais (TT)
Entretanto, o que seria a especulação? Qual o papel da filosofia especulativa no organismo da mesologia? Em termos sucintos, a filosofia especulativa é uma filosofia que tem um compromisso radical com a variabilidade do universo-espelho e com as virtualidades da existência. Para tanto, um dos eixos de orientação do pensamento especulativo é o que tenho denominado como Topologias Transdimensionais (TT). A transdimensionalidade se distingue da multi, da inter e da pluridimensionalidade. A multidimensionalidade pressupõe a justaposição de muitas dimensões, mas não necessariamente uma variação estrutural e fatorial das leis de cada dimensão, de acordo com as interações que mantenham entre si. A interdimensionalidade pressupõe alguns planos de intersecção, de cruzamentos e de interconexões entre universos-dimensões. Porém, como o prefixo inter insinua, esta dimensionalidade realça o que ocorre entre e não necessariamente o que decorre das metamorfoses estruturais, substanciais e essenciais dessas intersecções no que diz respeito a cada universo e a cada dimensão. Por seu turno, a pluridimensionalidade pressupõe uma implicação e um imbricação de diversas universos-dimensões. Constitui uma das primeiras emergências dos pluriversos em termos dos mesons. Mas podemos dizer que esse emaranhado pluridimensional de pluriversos inscritos em dimensões distintas, sendo uma primeira emergência, ainda não descreve a totalidade das simetrias entre transversais de todos os pluriversos e dimensões do cosmos e dos mesocosmos. E, por isso, que se torna imperativo recorrermos à quarta categoria: as topologias transdimensionais.
Estas topologias transdimensionais não se restringem ao estudo do espaço em suas diversas dimensionalidades, sejam elas euclidianas ou não-euclidianas. São projeções espaciotemporais dos vetores transfinitos. Concebem desse modo uma simetria das funções de espaço e tempo. Ou seja: não é apenas o tempo que é uma função do espaço, como em algumas doutrinas gnósticas, e tampouco é o espaço que é uma função do tempo, como na teoria einsteiniana. Ambos estabelecem uma relação de coimplicação de biunivocidade. As relações entre o espaço e o tempo se simetrizam e são equipolentes. Isso quer dizer que todas as modulações de estrutura do espaço alteram a essência do tempo e todas as variáveis do tempo reconfiguram e recodificam toda extensão do espaço. Como do ponto de vista da mesologia e da especulação o cosmos e os mesocosmos não são unidades holísticas e discretas, as topologias transdimensionais constituem uma heterogênese infinita de meios, de mundos, de universos, de pluriversos e de transversos cujas leis são absolutas para cada topologia, mas relativas do ponto de vista do horizonte de eventos de onde emergem todos os cosmos. Os pluriversos emergem justamente dessas interseções e dessas esferas de relacionalidade espaciotemporais As virtualidades descrevem topologias espaciotemporais não-euclidianas e não-lineares que englobam espacialidades e temporalidades transdimensionais. Também exige uma perspectiva diferencial em relação aos três grandes vetores do tempo: o passado, o presente e o futuro. Contudo, o método especulativo dedica uma atenção especial ao futuro.
Como ocorre a extrapolação na filosofia especulativa? Como pode ser definida dentro do espectro da mesologia? Podemos defini-la como uma Filosofia Orientada ao Futuro (Future-Oriented Philosophy). Ela se baseia em um conjunto de extrapolações das proposições, das propriedades, das substâncias, das experiências e dos conceitos passados e presentes. Não que o futuro nos reserve algo de muito distinto do que poderia nos proporcionar outras esferas da vida e da existência. Essa valorização vetorial do futuro diz respeito apenas a uma maneira de inspecionar e investigar as camadas mais abrangentes e mais opacas das virtualidades. Endereçar o pensamento ao futuro é escavar profundas placas tectônicas de virtualidades do presente e do passado. É promover uma atualização de entidades e existentes de éons e de mesocosmos imemoriais, ainda opacos à aferição presente e às nomeações passadas. Nesse sentido, a filosofia orientada ao futuro difere em termos radicais de uma Ontologia Orientada aos Objetos (OOO), pois esta permanece presa à pardacenta fatalidade da objetitude e aos cansativos dilemas conceituais oriundos desse compromisso, não menores do que os problemas apresentados pelas filosofias transcendentalistas e correlacionistas, centradas na intencionalidade e na personitude. Tampouco lhe interessa a fidelidade ao conceito de realismo e toda herança antinômica inerente ao conceito de real desde tempos imemoriais até hoje, causa de alguns dos mais nefastos erros categoriais ao longo da odisseia do sapiens. Uma filosofia orientada ao futuro não se orienta pela busca ingênua de um real preexiste ou perdido. Muito menos pela promessa futura de uma redenção de quaisquer idealizações ocultas nos interstícios dos pluriversos. Também não se demora em uma eterna hesitação diante dos dilemas entre sujeito e objeto. Por fim, uma filosofia orientada ao futuro tampouco se guia pelo que não existe. Trata-se de uma filosofia ocupada em investigar eventos futuros que podem se distender em eras e em éons de distância das ficções de nosso presente e das miragens de nosso passado, das quais nos alimentamos dia a dia. Advoga que o futuro não apenas existe como virtualidade e não preexiste como atualidade. O futuro nos é cristalino na esfera imanente que engloba todos os existentes. Uma filosofia orientada ao futuro é uma filosofia que, ao fim e ao cabo, é um pensamento transdimensional transfinito. Compromete-se em escavar e atualizar gigantescos estratos de virtualidades do presente e do passado, em um movimento que podemos definir como uma arqueologia dos futuros. Mencionei agora o termo futuro no plural. Justamente porque do ponto de vista da ontologia e da cosmologia pluralistas dos mesons e da filosofia especulativa, assim como o passado e o presente não foram, não são e nunca serão homogêneos, o futuro também não o é e não o será. E esse aspecto nos ilumina outro componente importante da mesologia e da filosofia especulativa: a identidade entre passado, presente e futuro do ponto de vista das esferas virtuais.
Especulação e Tempo
Mesmo sabendo da coimplicação de tempo e espaço nas topologias transdimensionais, vale a pena escandirmos cada uma dessas grandes matrizes para compreender como a filosofia especulativa, orientando-se em direção ao futuro, reformula cada uma delas. Comecemos pelo tempo. A ideia de que o presente e o passado se submetam a sistemas lineares de causalidade é uma redução de processos multilineares e pluricausais que não pertencem apenas ao futuro, mas também ao passado e ao presente. Essa abordagem reducionista pressupõe que dominemos o passado e o presente em sua totalidade, simplesmente porque temos acesso a fatos, a objetos e a eventos passados e presentes que se atualizaram. E, por conseguinte, inferimos que o futuro nos seja totalmente insondável, porque ainda não se atualizou. O futuro seria um quarto com as portas e a janelas fechadas, vedado ao entendimento, à percepção e à razão. Um arsenal de novidades inauditas, disruptivas, imprevistas e sempre misteriosas. Entretanto, por meio da filosofia especulativa, podemos conceber que as atualizações e virtualizações que constituem essas totalidades à primeira vista homogêneas que chamamos de passado e de presente dependem da contingência de algumas condições observacionais e de algumas variáveis apenas à primeira vista comensuráveis entre si. Em primeiro lugar, as camadas de passado se alteram na mesma medida em que o tempo passa. Isso não significa que tenhamos uma visão cada vez mais clara do passado: as catástrofes naturais, as deteriorações sociomateriais e mudanças de eixos de interesses, dentre tantos outros fenômenos, podem gerar verdadeiros pontos-cegos e verdadeiras zonas de indiscernibilidade de esferas do passado em relação ao nosso presente, pontos-cegos e zonas estas que, em outras épocas, podem ter sido absolutamente cristalinos. Isso significa que o passado é uma função do presente. O presente é um functor da condições e dos acessos à não-totalidade do passado. Outra variável decisiva é a definição de quais os enunciadores e reconstrutores do passado. Se essa eventual totalidade do passado depende de um continuum de atualizações, e se todas as atualizações pressupõem determinadas virtualizações, nunca o passado se atualiza em sua plenitude, nem se for restrito à reconstituição linear de apenas um agente de enunciação. Em outros palavras, a soma de infinitos agentes reconstrutores que atualizam o passado não pode fornecer a imagem de uma totalidade. Essa totalidade será sempre e para sempre parcial, pois em todos os processos a potência de virtualização é maior do que a potência de atualização. Por isso, outra variável que devemos levar em conta é a seguinte: se não há uma totalidade preexistente das virtualidades desse passado que poderia ter sido e se tampouco temos acesso à totalidade das atualizações, passadas e presentes, nem às infinitas linhas causais que performaram as unidades passadas, chegamos à conclusão de que no limite o passado é inacessível como um todo.
O mesmo mecanismo pode ser produzido quando indagamos o presente. Para começar, basta levarmos em consideração a pluralidade de ontologias, axiologias e cosmologias que povoam e se multiplicam no presente, de modo nômade e selvagem, em uma escritura errante que pode derivar ao infinito suas zonas de indeterminação e subdividir ao infinito suas unidades corpusculares. Essa mesma polifonia equipolente de unidades presentes não-discretas, ainda que homogeneizada em um corte sincrônico do tempo presente, continuaria a se capilarizar em sentidos espaciais, derivando e devindo em novas topologias e em regiões de cognoscibilidade-preensibilidade cada vez menores, cada vez mais sutis e cada vez mais indiscerníveis. Ademais, se projetarmos essa multiplicidade presente em um vetor em direção ao passado, procurando controlar as alterações, funções, variantes e sentidos de cada unidade não-discreta desse conjunto homogêneo de atualizações presentes, esse controle estaria fadado ao fracasso. E se, por fim, recuarmos ainda mais, procurando as constituições globais das linhas e a origem remota das unidade presentes, chegaremos fatalmente a esferas intersticiais do espaço-tempo de onde emergiram os primeiros esquemas relacionais e as primeiras combinações das entidades atuais presentes. Ora, essa cena original não possui nada de original. A origem nunca é um começo. Toda origem é no fundo nada mais nada menos do que um atestado de nosso fracasso. Essas origens são singularidades emergentes, estruturas relacionais em coevolução com outras singularidades, entidades e universos cujas demarcações iniciais e finais se encontram em constante flutuação e em uma radical instabilidade nos emaranhados de pluriversos coeternos. Uma origem assim concebida seria certamente apenas um limite na capacidade de recuo imaginativo e epistêmico. Não seria as condições iniciais do mundo presente. Seria apenas os limites cognitivos-percipientes deste mesmo mundo e, mais do que isso, os limites de apenas uma ou algumas linhas causais, linhas estas de apenas um sistema de coordenadas e de apenas uma ontologia, não a reconstituição global de todos as metaontologias existentes, virtuais e atuais, presentes e passadas. Finalmente, todas essas condições contingentes ilimitadas, extrapoladas em um recuo infinito em direção ao passado, também variam ao longo do tempo. Ou seja: todas as linhas causais que unificam essas duas enormes grandezas, a origem do cosmos e as origens das entidades presentes, se desvanecem e se temporalizam, pois mesmo as leis do cosmos possuem uma historicidade e uma topologia diferenciais a cada alteração de éon.
A despeito de todas essas evidências, nossa intuição nos conduz a acreditarmos em uma relativa homogeneidade do presente. Quando predicamos entidades que nos cercam, quando nomeamos objetos que nos cercam na esfera da empiria, quando tateamos nosso corpo e olhamos para o céu e a Terra: toda percepção requer unidade e nos conclama a fazer uma apologia da unidade. Sentimos as unidades celulares e temos a cada fração de segundo o testemunho granular de cada uma das gotas de experiência que constituem o fluxo vital de nosso corpo, de nosso sangue, de nossas fibras vivas e do mundo animado, vivo e imanente que nos cerca e nos habita. Toda experiência nos exige diferenciação. Mas tudo que envolve a vida e os organismos é uma ode à unidade. Contudo, para definirmos todas as entidades, agentes, seres e mundos que constituem esse presente homogêneo, precisamos demarcar quais as condições de possibilidade de conhecimento dessas mesmas entidades, agentes, seres e mundos que se unificam em nossa enunciação quando dizemos mundo e presente. Ora, fica claro que o presente como um todo é apenas uma fração do universo conhecido-percebido, entendendo-se aqui universo como uma redução da totalidade do que existe à experiência parcial da totalidade cognoscente-percipiente. Todo horizonte do desconhecido pode entrar nominalmente como hipótese em nossas formulações e funções. Mas as descrições nominais também estão submetidas aos limites contingentes do conhecido. Ou seja: as esferas concêntricas de registros e realidades cognoscentes-percipientes, mesmo quando estes são definidos como desconhecidos, ainda assim são esferas de um determinado conhecimento presente e mundano. Ademais, todo universo conhecido no presente pode ser definido apenas como o conjunto de atualidades preendidas por determinadas condições. A soma irrestrita desses conjuntos de atualizações e condições de possibilidade de atualização não perfaz nenhuma totalidade. Isso ocorre porque, como mencionei, para haver uma totalidade do presente seria preciso haver uma maneira de identificar e discriminar todas as atualidades e as virtualidade do presente em todas as condições globais dos existentes.
Esse problema relativo à inviabilidade da totalização do passado e do presente abre um problema nuclear. E configura um dos eixos da filosofia especulativa: os limites do conhecimento-percepção do passado são idênticos ao conhecimento-percepção do futuro. O que chamamos de presente não é nada mais do que o eixo de tensão entre esses dois vetores equipolentes passado-futuro. As ilusões do pensamento têm se concentrado sobretudo em presumir uma contingência radical do futuro em detrimento de uma contingência parcial do passado e do presente. Acredita-se que a capacidade de determinação e previsão do futuro dependem necessariamente dos desdobramentos de leis e linhas causais que ignoramos, porque elas ainda não se atualizaram. Entretanto, os graus de atualizações de entidades virtuais podem ser relativamente constantes no passado, no presente e no futuro. Ou seja: a impossibilidade de determinar os n-fatores que possam promover a emergência de algumas entidades em detrimento de outras, o surgimento de um mundo em detrimento de outro, não constituem uma impossibilidade restrita apenas ao futuro. Pertencem também a um passado imemorial onde as leis de atualizações-virtualizações dessas entidades-mundos emergiram, se constituíram e se constelaram em leis e em constantes que hoje são tomadas como universais, ou seja, extensivas à totalidade do cosmos.
Especulação e Espaço
Esta concepção nos conduz ao cerne da outra matriz conceitual da filosofia especulativa: o espaço. Quando concebemos o cosmos, o problema que emerge diz respeito a uma fissura interna ao conceito de cosmos. O cosmos não é a totalidade das atualizações tangíveis, empíricas e metaempíricas. O cosmos é a promessa de reconstituição de virtualizações passadas que desapareceram. E a expectativa de atualizações futuras que existem, mas não se atualizaram. O cosmos não é a totalidade dos entes, pois os entes são apenas as infinitas constelações, combinações e configurações de atualidades. O cosmos é a totalidade da existência. Ou seja: o horizonte global e o oceano infinito de atualidades e virtualidades. Ora, como existir é diferir, então o cosmos é uma totalidade sem totalização possível, em nenhuma das transdimensões dos pluriversos. Porque toda gênese dos meios e dos mundos que compõem esse horizonte atual-virtual que chamamos de cosmos promove a cada instante novas aberturas, novas fendas, novas potencialidades, novos enquadramentos mundanos e transmundanos. O que significa que podemos descrever o cosmos como uma totalidade aberta e mesmo assim apenas em termos nominais, pois a totalização de suas virtualidades-atualidades nunca foi, não é e nunca será passível de ser compreendida em todas as dimensões dos pluriversos. Em outras palavras: a existência nunca pode se reduzir ao conjunto dos existentes.
As condições de possibilidade iniciais dessas leis que passaram e continuam passando da existência aos existentes nos escapam hoje em um grau muito distinto de como nos escapavam há dois milhões de anos, quando os hominídeos se especiaram a partir dos primatas superiores. Entretanto essa variável de gradação não pode ser absolutizada ou convertida em uma variável de natureza. Isso ocorre porque cada entidade-mundo e cada meio-mundo podem ser o fio de recomposição e de reconfiguração de uma multiplicidade de mundos futuros. À medida que não detemos a ciência da totalidade dos processos e de todos os fluxos nele implicados, não podemos definir ao certo em que medida uma entidade e um mundo facticamente situado pode concorrer para a manutenção futura e para a coevolução de uma multiplicidade de mundos que, por sua vez, possam vir a ser efetivos e necessários para a sustentação de determinadas estruturas dos pluriversos. Por outro lado, esse processo de atualização-virtualização é recursivo e não obedece a uma escala de progressão linear. Ele pode ampliar nossa esfera cognoscente-percipiente do universo em uma escala cósmica, como o tem feito. Mas nada nos garante que camadas e estratos essenciais da existência possam ser obnubilados, esquecidos ou simplesmente apagados por meio dessas atualizações cada vez mais omnicompreensivas que virtualizam em si mundos, meios e continentes inteiros, mantendo-os submersos por éons e éons.
Por fim, o progresso do conhecimento está essencialmente vinculado ao conceito de infinito e ao processo de infinitização. Isso quer dizer que quanto mais o conhecimento extensivo se expande, mais se infinitiza e se virtualiza a intensividade desse mesmo universo, conhecido e concebido por essa mesma expansão ilimitada do conhecimento. O erro, segundo o qual o processo progressivo aumentaria o campo do conhecido e diminuiria o campo do desconhecido, deriva de uma falha de compreensão das categorias fundamentais: a realidade e a existência. A história da metafísica é a história de uma redução da existência ao real e do real às atualizações. O que significa isso? Significa que o pensamento se acostumou, foi domesticado de modo intuitivo a definir a totalidade do real como a totalidade das atualizações. Coube-lhe assim a tarefa de reduzir os pluriversos a universos atomizados ou à ideia de um universo uno, seja ele vetorial ou eterno. Entretanto, os pluriversos e a pluralidade dos mundos, mesmo em uma escala de trilhões e trilhões de galáxias, de sois e de sistemas, como a que conhecemos hoje, ainda são apenas um conjunto de atualizações de infinitas esferas de metacosmos mais vastos: o oceano de todas as virtualizações que não se realizaram, que ainda podem se realizar, que nunca se realizarão, que nunca se virtualizarão ou que se virtualizaram justamente por meio da atualização desses mesmos pluriversos tangentes que se atualizaram e que definimos como sendo a unidade racional do real.
Especulação e Causalidade
Esse emaranhado de pluriversos se distribui em regimes de biunivocidade entre o espaço e o tempo. Ademais, também demanda um regime inaudito de plurivocidade de todos os universos entre si. Mediante este regime, as leis integrais de cada universo são parciais em relação a pluriversos paralelos. Variam de acordo com as mudanças da transdimensionalidade e de acordo com a relatividade global de todos os universos coimplicados e emergentes do horizonte de eventos infinito. Isso significa: os vetores e as funções das leis de cada universo apenas adquirem consistência se cotejados, relacionados e relativizados a partir das leis paraconsistentes dos pluriversos. Ora, esse regime altera de modo substancial as relações de causalidade, incidindo inclusive sobre os sistemas pluricausais. Porque não se trata apenas de dizer que é impossível abstrair leis gerais da inferência indutiva. Afinal, essa passagem das condições contingentes às leis gerais ainda pode gerar uma insuficiência dos sistemas de predicação que aspiram à universalidade. Mas esse problema pode ser dirimido quando imaginamos que esses sistemas, mesmo quando não são universais, são extrapolações pragmaticamente eficientes e descrevem regimes causais que são, ao mesmo tempo, contingentes e globais. Ou seja: por mais que o conceito de linha geométrica possa ter sido inferido de processos abstrativos de linhas empíricas e por mais que a lei da gravitação universal possa ser uma extrapolação de conjuntos de induções e de qualidades primárias presentes na atmosfera da Terra, ainda assim a linha e a gravitação têm uma validade pragmática que exorbita o lugar de sua constituição e gera modelos metaempíricos efetivos para a compreensão da estruturado de um mundo e de um universo. Isso entretanto não significa que a gravitação não tenha também uma historicidade e não se transforme ao longo das eras, submetida ao devir e aos vetores internos a um mesmo universo. Essa seria uma boa explicação: um continuum complementar e não-dualista entre a entropia e a neguentropia pode ser concebido nesses termos por meio dos sistemas fora de equilíbrio cujas valências positiva-negativa se embaralharam.
Mesmo a unificação entre a reductio ad absurdum e a reductio ab origine, descrito pela inviabilidade de rastrearmos as condições iniciais de nenhum sistema, pode ser considerada um problema menor dentro da constelação de vetores e eixos de orientação do pensamento especulativo e da mesologia. Isso ocorre porque mesmo diante da inviabilidade de se reconstruir as condições iniciais, o imperativo relacional e a concepção segunda a qual as virtualidades são infinitamente maiores do que as atualizações, a reconstrução das condições iniciais passadas se torna tão irreal quanto a reconstrução das condições presentes e das condições finais de quaisquer sistemas. Em outras palavras, o problema da incomensurabilidade não está alocado em um ponto não-discreto de processos passados não-totalizáveis. O problema se situa em uma assimetria entre as potências de atualização e as potências de virtualização. Se essa assimetria é uma invariável que coordenada uma multidão de variáveis, a possibilidade de reduzirmos as virtualidades às atualidades e de termos consciência-percepção de todas as virtualidades implicadas em um processo, em um ser ou em uma entidade, os mais simples que sejam, é quase zero. Nesse sentido, o grande problema que se coloca não é tanto da inacessibilidade das condições iniciais e em que medida elas produzem a incomensurabilidade de um mesmo universo, destruindo a segurança de suas leis. O problema é que, mesmo se trabalharmos com a ideia de que essas leis possuem uma universalidade contingente, baseada na efetividade de sua extensão e não em algum eventual substrato das diversas substâncias que descrevem, ainda assim não solucionaremos o problema do panlegalismo. Ou seja: o problema da multiplicidade de leis que atravessam todas as topologias transdimensionais, se equilibram e se harmonizam, se combatem e se digladiam, se consomem e se subdividem, se justapõem e se destroem e, por fim, se complementam e se anulam, em direção à excentricidade infinita do horizonte de eventos.
O problema causal começa a se fazer mais intrincado nesse momento. As causas não podem ser depreendidas de leis, pois toda lei emerge de um espaço de incomensurabilidade entre as inferências, as substâncias e as predicações. As causas tampouco podem dar origem a leis à medida que o hiato entre duas entidades, entre dois seres e entre dois eventos repousa sobre a indiscernibilidade relacional, flutuante e irredutível de que é composta a experiência, tecido do universo. Por outro lado, as leis mesmas não podem ser deduzidas nem induzidas de condições observacionais imanentes à esfera intramundana. Toda lei pode ser o sucedâneo de metaleis transversais aos mundos, aos universos e mesmo ao cosmos. À medida que toda determinação e toda legalidade repousam sobre implicações e explicitações de alguns estratos dos pluriversos e à medida que todo conhecimento-percipiente decorre de observações contingentes, estando subordinado à facticidade de um feixe de pluriversos, não se tem acesso à totalidade das topologias transdimensionais. E, ainda que o tivéssemos, não seria possível aceder a uma indução ou a uma dedução do conjunto de virtualizações que constituem os pluriversos ainda não acessados, em direção à excentricidade radical do horizonte de eventos. Pode-se supor que toda legalidade possui ao menos um ponto cego. Esse ponto cego nunca pode ser aferido dos sistemas causais internos a um mundo e a um universo. E tampouco pode-se imaginar que haja uma completude no sistema relacional dos pluriversos e das metaleis. Supor isso seria supor a possibilidade de um ou mais mundos, universos, entidades ou leis unificarem os demais mundos, universos, entidades ou leis. Por fim, se todo esse regime intramundano da ontogênese das leis depende de regimes extramundanos que dotem de consistência essas mesmas leis, o mesmo decorre se extrapolarmos essas variações, não mais em direção aos pluriversos e a suas estruturas fundamentais, mas em direção ao passado, ao presente e ao futuro, de acordo com as transdimensionalidade que mencionei acima. Desse ponto de vista, a doutrina da causalidade adquiriria não apenas um contorno inaudito. Ela se revelaria em uma completa e luminosa novidade. Pois as determinações causais passariam a ser geradas nos intervalos suspensos entre passado, presente e futuro. Mais do que isso: tampouco seria possível determinar em qual emaranhado de pluriversos ocorreu a causação de um evento, de uma entidade ou de um ser. Se as topologias transdimensionais operam em um emaranhado de planos e de estratos temporais e espaciais que se cruzam, se multiplicam e se alteram mutuamente, o mesmo ocorreria em relação às leis causais. Nesses mundos intersticiais, o filho que não tive não apenas existe. Eu que não existo senão em um universo paraconsistente que esse meu filho virtual não pode acessar. A necessidade de unificar esses diversos planos, estratos, topologias e dimensões em um todo deve vir a ser considerada em breve como o momento de maior ingenuidade de que um ser vivo foi capaz ao longo da narrativa do cosmos. Essa demanda de unidade é uma das maiores ilusões que o sapiens foi capaz de acalentar. Esse sonho o transformou em um construtor e colonizador de mundos e, em breve, de galáxias, e, paradoxalmente, reduziu-o à condição de uma bactéria inconsciente da própria insignificância.
Em linhas gerais, quando definimos o cosmos como tudo o que existe, estamos nos referindo mais ao estudo de camadas virtuais desse cosmos do que a suas atualizações. Durante muito tempo, o conceito de existência se identificou ao de atualização. Acreditamos durante muito tempo que as atualizações, sejam elas reais ou imaginativas, pouco importa, são o conjunto global do que definimos como realidade. O corolário desse erro foi conceber Deus como repositório infinito de virtualidades, sendo que na verdade Deus não passa de uma entidade atual em meio a entidades atuais, contingente e parcial, real e contingente como qualquer ser real. A tarefa da filosofia especulativa tem uma dupla articulação. Em primeiro lugar, o objeto da filosofia especulativa é o cosmos entendido como sinônimo de existência e como horizonte emergente de tudo o que existe. Entretanto, o sistema especulativo acredita que as atualizações são uma pequena membrana e uma breve espuma flutuando no oceano de virtualizações. Os seres existentes e reais são o conjunto infinito de todas as atualidades e de todas as virtualidades que compõem a existência. A existência não é uma totalidade porque a existência não é uma entidade nem um ser. A existência é o conjunto das atualizações-virtualizações de todos os existentes. Esse conjunto é infinito porque não foi, não é e nunca será possível aceder a um conhecimento-percepção de todo processo das atualizações-virtualizações que constituem o cosmos, ou seja, tudo que existe. O trabalho dos sistemas metafísicos até hoje seguiu três imperativos. Primeiro: submeter o virtual ao atual. Segundo: definir o conjunto das atualidades como sendo idêntico ao real. Terceiro: compreender o real como sinônimo de tudo que existe. Especular é inverter todos esses vetores. Especular é submeter as atualidades às virtualidades. Especular é conceber que a esfera global da realidade é apenas um conjunto de atualizações. Especular é investigar a existência como a dinâmica complexa de atualizações-virtualizações que emergem do oceano sem fundo e sem fim das existências. Especular é investigar os espelhamentos infinitos e os planos transfinitos de pluriversos inscritos em topologias transdimensionais. Estas topologias compõem os diversos tecidos espaciotemporais e a multiplicidade de leis causais do cosmos e de todos os existentes, sejam eles passados, presentes e futuros.
Rodrigo Petronio .
O QUE É FILOSOFIA ESPECULATIVA?
Rodrigo Petronio
Para os caminhos do pensamento, o passado continua passado,
mas o vigente do passado está sempre por vir.
Martin Heidegger
Resumo
Este ensaio tem os seguintes objetivos: 1. Investigar as principais acepções do conceito de filosofia especulativa e as respectivas vertentes, autores e obras. 2. Distinguir usos gerais e restritos do conceito de especulação e de filosofia especulativa. 3. Explorar a relação entre ontologia e especulação no século XX. 4. Descrever a centralidade do conceito de infinito e de transfinitos para a filosofia especulativa. 5. Ressaltar a importância da cosmologia e da ontologia para a renovação da filosofia especulativa. 6. Posicionar o novo estatuto que a especulação assume na teoria dos meios criada por Rodrigo Petronio, intitulada teoria dos mesons ou mesologia. 7. Descrever as Topologias Transdimensionais (TT) que emergem desse novo estatuto. 8. Definir esse novo estatuto da filosofia especulativa como Filosofia Orientanda ao Futuro (FOF). 9. Analisar as principais alterações das categorias de tempo, de espaço e de causalidade promovidas por essa nova definição de especulação e de filosofia especulativa.
Abstract
This essay has the following objectives: 1. To investigate the main meanings of the concept of speculative philosophy and their respective aspects, authors and works. 2. Distinguish the general and restricted uses of the concept of speculation and speculative philosophy. 3. Explore the relationship between ontology and speculation in the 20th century. 4. Describe the centrality of the concept of infinity and transfinites to speculative philosophy. 5. Emphasize the importance of cosmology and ontology for the renewal of speculative philosophy. 6. Position the new status that speculation assumes in the media theory created by Rodrigo Petronio, entitled mesons theory or mesology. 7. Describe the Transdimensional Topologies (TT) that emerge from this new statute. 8. Define this new speculative philosophy’s statute as Future Oriented Philosophy (FOP). 9. Analyze the main changes in the categories of time, space and causality promoted by this new definition of speculation and speculative philosophy.
Especular
A obra A Queda do Céu é um dos mais importantes tratados da metafísica do século XXI. Composta pelo xamã ianomâmi Davi Kopenawa em colaboração com o antropólogo Bruce Albert, temos aqui a cosmologia ianomâmi descrita e explicitada ponto por ponto. Um dos conceitos-operadores centrais dessa cosmologia são os xapiri. Os xapiri são nano-entidade dinâmicas que constituem todo universo, tudo o que existe. Eles se revelam ao xamã sob a forma de nano-humanos, girando sobre espelhos. A dinâmica relacional desses infinitos nano-espelhos transumanos em movimento produz a totalidade do universo. Esta cosmologia pode ser descrita rigorosamente como uma monadologia ianomâmi. Ou Leibniz é que seria um ianomâmi da filosofia? O importante é conceber essa noção de nano-universos e de nano-espelhos como matrizes instauradoras de todas as esferas do ser e do cosmos. Como usinas do real, como diria Nicolai Hartmann. E aqui começamos a adentrar nossa questão central. O termo spec do latim pode ser traduzido como especulação. Etimologicamente, é a raiz de speculum, que significa espelho e, por sua vez, deriva de specere, que significa olhar e observar. O verbo especular seria em termos literais espelhar. Outro sentido adjacente importante ocorre em relação ao termo espécie. A definição de espécies ocorre por meio da observação e, ao mesmo tempo, designa uma certa categorização do observado que produz uma taxonomia: uma distinção dos seres. Outro termo correlato é caverna (spéleos). A espeleologia é a ciência de investigação das cavernas ou de quaisquer ambiente profundos da Terra, como o oceano abissal. Entende-se assim por caverna não apenas a constituição rochosa da geologia, mas quaisquer espaços virtuais desconhecidos. A raiz de spec também se vincula a spe, que significa esperança. Outras línguas retêm a morfologia do latim, como o alemão (Spiegel), o dinamarquês (spejl), o iídiche (שפּיגל, shpigl) e o basco (ispilu). Mesmo em línguas cujo termo espelho deriva de outros radicais, como em inglês (mirror), em francês (miroir) e em árabe (مرآة, mara), parece haver uma convergência para o sentido da raiz latina mir, a mesma de miragem, maravilha e mirar (observar). Uma investigação mais detalhada precisaria levantar em que medida esta estrutura comum tem suas origens na estrutura indo-europeia das palavras com prefixo m’, de onde derivam também mito (mýthos), mudez (mutus), imitação (mimesis) e mundo (mundus), mas este é um campo arenoso e não é meu objetivo me mover por ele aqui. O que me interessa é, por meio de analogias e por meio desta espectral espeleologia do conceito, definir a filosofia especulativa como uma filosofia-espelho e a cosmologia especulativa como a investigação de um universo-espelho. E levantar em que medida a potência deste conceito-imagem pode revelar campos ônticos e epistêmicos inesperados, em um percurso abdutivo e heurístico.
Essa definição de filosofia-espelho envolve uma teoria dos meios e uma teoria da visibilidade-invisibilidade. Imagina-se não apenas os espelhos como sinônimos de uma tecnologia que permeia a Europa palaciana a partir do século XVII, mas como quaisquer superfícies lisas capazes de reflexão. Contudo, a filosofia-espelho recobre e implica também um maravilhoso campo de invisibilidade: as infinitas cavernas do cosmos e os infinitos estratos da Terra que ainda se encontram submersos e sem acesso para a nossa observação. Por sua vez, essa filosofia-espelho implica uma alteração radical das valências rotineiras da mimesis. Se o espelho é aquilo que reproduz de modo fidedigno o real e capturas os seres em uma absoluta literalidade, nunca se pode esquecer que todo espelhamento é um simulacro. Ou seja: a relação espelho-real não é equívoca (ilusão) nem unívoca (representação), mas biunívoca (coimplicação). Isso significa que não é apenas o real que se projeta no espelho e é devolvido para a ordem dos seres reais. Um espelho pode espelhar outro espelho, uma imitação pode imitar outra imitação e uma conjunção fabulosa entre espelhos e imitações pode dissolver toda a consistência e todas as substâncias reais. Por isso Deleuze ressaltou que o horror de Platão em relação à arte e à poesia nunca fora a imitação do sensível como duplicação do inteligível. O horror de Platão diz respeito a algo mais potente e mais essencial: os simulacros. Refere-se à possibilidade de uma multiplicação indefinida, desordenada e especular: simulações de simulações e simulacros de simulacros. Uma metástase de imagens-espelho. Uma miríade de universos-espelho. Por isso, todo espelho é uma linha de fuga feita de infinitas bifurcações e universos paralelos e realidade alternativos que existem na mesma medida que este meu corpo sentado à mesa existe enquanto escrevo. Nesse sentido, para a filosofia-espelho os simulacros não são apenas cavernas onde a mente se encontra aprisionada, iludida com o lusco-fusco de luzes e sombras que se projetam e ignorante do verdadeiro sol.
Para a filosofia especular, o caminho do conhecimento é rigorosamente o oposto. Não devemos sair da caverna para averiguar o real. Como a Alice de Lewis Carroll, um dos maiores pensadores especulativos de todos os tempos, nossa tarefa é adentrar deliberadamente o buraco-caverna e atravessar os espelhos que se nos ofereçam. Precisamos mergulharmos em estratos cada vez mais opacos, em zonas de indiscernibilidade cada vez mais tênues, com o intuito de descortinar as virtualidades de onde emergem não apenas este sol, o nosso sol privativo deste sistema e deste mundo, entidade pequena e relativa em relação aos trilhões de sois do cosmos, mas inspecionar as galáxias e os sistemas solares e as estruturas viscosas da matéria e da energia escuras que constituem as condições de possibilidade de todos os fenômenos que vêm à luz (fanos), incluindo todas as estrelas, sois de outros mundos. Apenas quando adentramos as cavernas, acessamos as câmeras de ecos e preendemos as ressonâncias infinitas que compõem todos os seres. Apenas mediante essa razão inversa e esse trânsito da transparência à opacidade e não da opacidade à transparência, o mundo pode ser finalmente conhecido, visto e admirado (admirare). Por outro lado, não estamos aqui seccionando regiões da natureza e extensões do ser com a navalha de Ockham. Estamos aqui sim especulando mundos e prismando o cosmos com os espelhos da mesologia. O corte desta navalha-espelho é mais fundo porque não gera simplificação, hiato entre as palavras e as coisas, mas multiplicidade e complexidade crescentes. Por meio deste nosso curioso instrumento conceitual, a taxonomia não é uma descrição e a antinomia real-nominal pouco interessa. As espécies são imagens-entidades simultaneamente referenciais e extensivas, universais e singulares, em continuidade ao conceito de haecceitas (estidade) que atravessa a filosofia de Duns Scott a Deleuze. Por fim, especular também é tramar o pensamento a partir da espera e da paciência, mas sempre em direção à esperança. Lembrando as prerrogativas de William James, a experiência é o horizonte do pensamento. A costura desse horizonte de experiência, gota a gota, é feita pela crença. E a confiança é o que nos conduz de uma crença a outra. A confiança é a promessa de que o pensamento pode extrair, das sucessivas e inacabadas flutuações e indeterminações futuras, os elementos fundamentais para criar novas crenças e expandir o horizonte, tanto da experiência quanto de si mesmo. E, por isso, como proponho neste ensaio, a filosofia especulativa é também uma Filosofia Orientada ao Futuro (FOF). À medida que se trata de um sistema pluralista, o universo-espelho da especulação corresponde ao pluriverso de James.
A partir desse posicionamento, pode-se observar que a filosofia especulativa tem um compromisso com as virtualidades. Se toda a história da filosofia pode ser concebida como uma nota de rodapé a Platão, como ironizou Alfred North Whitehead, um dos fundadores e um dos maiores expoentes da filosofia especulativa de todos os tempos, isso se deve ao fato de que a filosofia, em diversas etapas, esteve adstrita à solução ou à explicitação de antinomias: sensível e inteligível, necessidade e contingência, ato e potência, matéria e forma, aposteriorismo e apriorismo, sujeito e objeto, predicação e substância, mente e matéria, linguagem e natureza, consciência e mundo, percepção e conceito, empirismo e transcendentalismo, e mais uma grande lista. A filosofia especulativa pretende erradicar essas eternas oscilações antinômicas. E pretende fazê-lo por meio de uma concepção dinâmica e relacional entre atualidades e virtualidades, relacionalidade e existência. A existência não é uma categoria vazia e amorfa. Tampouco pode ser pensada como o conjunto dos existentes, entendidos como entidades atuais. A existência é a esfera global dos existentes que inclui todas as atualidades e virtualidades. Por seu turno, o real não se restringe ao conjunto das entidades atuais. O real consiste no conjunto dos existentes sendo que a existência inclui em si toda esfera infinita das virtualidades, passadas, presentes e futuras. A imagem-cristal da filosofia especulativa pode ser prismada nesse sentido em infinitos ângulos e feixes adumbrativos que não se esgotam, pois sempre uma nova virtualidade pode ser acessada de acordo com novas modalizações dos seres, das entidades e dos mundos. Esse compromisso com as virtualidades e com a relacionalidade situa a filosofia especulativa como uma das principais matrizes da teoria dos mesons e, por conseguinte, no âmago de um projeto de ontologia e de cosmologia pluralistas. Este ensaio procura mapear alguns vetores da filosofia que possam, de maneira direta ou indireta, ser definidos como especulativos. Partirei de uma estrutura espelhada para fazer jus à etimologia do especulativismo e a essa nova razão constelar e prismada por espelhos (speculi). Primeiro, apresentarei algumas linhas, autores, obras e conceitos que podem ser definidos como especulativos tanto em um sentido lato quanto estrito, sobretudo no que concerne à concepção de três grandes categorias: tempo, espaço e causalidade. Em seguida, inverterei os postulados. Procurarei expandir e extrapolar as categorias do tempo, do espaço e da causalidade, submetendo-as a uma nova compreensão de filosofia especulativa, baseada na mesologia (Petronio: 2015).
Ontologia e Realismo
O termo filosofia especulativa adquiriu mais visibilidade a partir da ascensão do movimento conhecido como realismo especulativo há pouco mais de uma década. O realismo especulativo é um movimento da filosofia contemporânea que surge em consonância com a virada para a ontologia (ontological turn). Sempre que se fala em retomada ou virada para a ontologia ou de retorno da metafísica, tem-se aqui uma perspectiva interessada ou equivocada. Isso ocorre porque a metafísica nunca abandonou o pensamento moderno. Trata-se mais de um problema de hegemonia intelectual do que de uma inviabilidade endógena aos sistemas metafísicos. Se a hegemonia da filosofia moderna passa por Kant, Marx e Descartes a Husserl, Heidegger e Wittgenstein representa uma hegemonia da crítica dos sistemas metafísicos, isso não quer dizer que esses sistemas deixaram operar ou que todos os problemas metafísicos foram solucionados. Pelo contrário, a estrutura de denegação que subjaz a essas relações dilemáticas com a metafísica é profunda e poder-se-ia dizer que define alguns aspectos essenciais dessa mesma modernidade. Em ouras palavras, os críticos da metafísica em geral estão apenas inconscientemente produzindo metafísica ruim. A linhagem dos autores modernos que desenvolvem sistemas metafísicos é tão grande e influente que seria possível inverter os sinais e dizer que a crítica à metafísica é um epifenômeno secundário da modernidade e não seu motor. Por outro lado, mesmo o combate às metafísicas substancialistas acabou redundando em novas ontologias não-substancialistas, ou seja, o combate antimetafísico continua refém das estruturas categoriais que definem o real, a despeito da valência dominante. Por isso, de Leibniz, Hegel, Schelling, Hartmann e Tarde a Heidegger, Deleuze, Sloterdijk e Badiou, mesmo nas diatribes antimetafísicas, a ontologia permanece praticamente intocada. Talvez em decorrência disso a chamada virada para a ontologia não seja tão ressaltada na Filosofia, mas possua desdobramentos marcantes e acabou sendo mais associada a debates internos à Antropologia (Holbraad e Pedersen: 2017).
Desse modo, a noção de ontologia, cunhada por alguns antropólogos como sinônimo de cosmologia, demonstra bem a relação indissociável entre multiplicidade de regimes de verdade, multiplicidade de mundos e multiplicidade de significados do conceito de ser. Estas propostas ficaram conhecidas no Brasil a partir dos conceitos de perspectivismo, de metafísicas canibais, de personitude e de multinaturalismo amazônico desenvolvidos por Eduardo Viveiros de Castro (2012, 1996, 2014, 2011, 2014). Esta abordagem, unindo ontologia e pluralismo, tem sido defendida por diversos autores, dentre os quais se destacam Stengers (2005, 2012, 2011, 2005, 2002, 2013), Latour (2003, 2013:301-307, 2013, 1994, 2012, 1995, 2002), Ingold (2008, 2006, 2004, 2004:25-57), Connolly (2005:98-92), Guthrie (1995), Descola (1996, 2006, 2014, 2001) Taussing (2012), Wagner (1991), Sahlins (2014), Kohn (2013, 20144), Haraway (2008, 2003), Mol (2014, 1999:74-89, 2002), entre outros. Essa vinculação entre realismo, especulação e ontologia também possui ressonância na chamada virada dos não-humanos (nohuman turn), representada sobretudo pela obra de Richard Grusin (2015), e dialoga com algumas novas áreas de estudo, tais como os animal studies, o novo materialismo, o novo idealismo, o transumanismo, e, obviamente, com as teorias da comunicação, das redes e dos media. Em sentido um tanto geral, pode-se dizer que esses movimentos, tendências e debates se incluem sob uma rubrica muito potente do pensamento contemporâneo: as novas ontologias. E se vinculam a alguns pressupostos da filosofia especulativa.
Em um sentido mais estrito, o texto fundador do realismo especulativo é a obra Depois da Finitude: Ensaio sobre a Necessidade da Contingência (2006) do filósofo francês Quentin Meillassoux, discípulo de Alain Badiou. A data de nascimento dessa vertente costuma ser situada em abril de 2007, nos workshops do Goldsmiths College, na Universidade de Londres. O eixo dessa nova proposta de realismo é justamente uma renovação da metafísica e da ontologia, levada a cabo por nomes como Ray Brassier (2007), Iain Hamilton Grant (2003, 2006), Graham Harman (2009, 2011, 2014), Steven Shaviro (1990, 1993, 1997, 2003, 2009, 2010 e, especialmente, 2014), Levi Bryant (2011, 2008, 2011a, 2011b, 2014), Peter Gatton (2014), Ian Bogost (2012), Timothy Morton (2007, 2010, 2013a, 2013b., 2016, 2017, 2018), Eugene Thacker (2004, 2005, 2007, 2010, 2011, 2013, sobretudo 2015a, 2015b, 2013), Markus Gabriel (2015, 2015), entre outros. Claro que nem todos esses autores se mostram alinhados às demandas mais ou menos ortodoxas do que venha a ser definido como realismo especulativo. Podemos apenas posicioná-los como pertencentes a uma busca comum de novas chaves de interpretação do pensamento contemporâneo, em consonância com uma renovação da ontologia. Eles também parecem ter em comum uma demanda por realismo presente em diversas ciências e saberes, não apenas na filosofia, e cujo intuito é refundar algumas matrizes da metafísica que haviam sido abandonadas pelo pensamento moderno.
Contra o transcendentalismo, as filosofias da consciência, as filosofias da linguagem, o idealismo, a fenomenologia e, sobretudo, contra o correlacionismo consciência-mundo, dominante na filosofia desde Kant e Descartes a Husserl e ao existencialismo, o realismo especulativo propõe a existência de um âmago duro de realidades (seres) em todos os processos. Estes processos não podem ser compreendidos pela cisão sujeito-objeto e pelos esquemas do empirismo-transcendentalismo que, segundo Foucault, determinam a filosofia ocidental desde o século XVII. Uma das bases desse correlativismo e desse dualismo é a premissa de que não existe um mundo anterior ao humano. Nesse sentido, para o correlativismo, quando falamos em mundo, necessariamente pensamos em um mundo de humanos como humano. Um dos desdobramentos do realismo especulativo ocorre justamente a partir do diálogo com a antropologia da ciência, em especial com a obra de Bruno Latour. A crítica ao chamado correlativismo desdobra-se em uma crítica à fenomenologia. E encontra na ontologia de Heidegger, sobretudo em sua obra A Coisa (Das Ding), um ponto de inflexão. Esse desdobramento gerou uma ramificação de interesses e propostas: a Ontologia Orientada aos Objetos (OOO). A OOO e o realismo especulativo se guiam por esse combate a essa visão correlacionista. E, ao fazê-lo, ajudaram a construir modelos conceituais para a compreensão de um mundo de superobjetos (Timothy Morton), de seres não-intencionais e de agenciamentos meta, extra e transumanos. Entretanto, como se deve supor, a filosofia especulativa e os projetos de ontologias modernas e contemporâneas não se restringem ao realismo especulativo nem à OOO. Quais seriam as outras linhas evolutivas da ontologia e da especulação? Procurarei explicitá-las a seguir.
Figuras da Temporalidade
William Walsh (1968) baseia-se em uma perspectiva segundo a qual a filosofia especulativa seria um tratamento especial dada à temporalidade e à historicidade. Não seria uma maneira de compreender a história da filosofia, mas uma doadora de modelos estruturais para a filosofia da história. Walsh situa Giambattista Vico, filósofo da história e criador de um novo modelo de compreensão dos ciclos históricos a partir do corso e do ricorso, do fluxo e do refluxo, como um dos primeiros porta-vozes dessa visão sobre o passado. Não por acaso a Ciência Nova é uma revolução nas ciências humanas e um divisor de águas na compreensão da temporalidade, dos mitos e da racionalidade. Pioneiro nas reflexões sobre o tempo humano, Vico foi lido e incorporado por nomes tão diversos quanto Marx, Isaiah Berlin e Lévi-Strauss. Nesses termos, a filosofia especulativa não seria um instrumento descritivo, compressivo ou hermenêutico dos eventos, em busca de um sentido. Especular seria operar a partir de categorias capazes de pensar as condições de possibilidades da totalidade dos eventos no tempo. E, mais do que isso, especular seria uma capacidade de reconhecer um certo fundo de determinação e liberdade por meio dos quais os processos históricos deixam de ser apenas irreversíveis e adquirem uma lógica interna em suas manifestações. Essa lógica pode ser extrapolada com o intuito de gerar padrões e regimes temporais recorrentes e, em certa medida, compossíveis e previsíveis. Ora, nessa chave, a conexão poderosa entre especulação e historicidade, pensamento e tempo profundo pode ser entendida como uma das matrizes de alguns autores basilares do pensamento moderno, como Hegel e o Idealismo alemão, Nietzsche e Freud. Inclusive pensadores tão diversos quanto Marx e Oswald Spengler podem ser identificados como pensadores especulativos. No século XX, Robin Collingwood (1978), Karl Löwith (1991), Reinhart Koselleck, Alexander Kojève, Fernand Braudel seriam expoentes da especulação. E, hoje em dia, a arqueologia dos media estaria em completa consonância com esse modelo especulativo-temporal.
E a ontologia? Não por acaso, o Idealismo alemão, sobretudo Hegel e Schelling, estão entre as pedras fundamentais da categorização dos novos realistas e de algumas novas ontologias, como se vê nas obras de Iain Hamilton Grant e de Markus Gabriel. Embora Hegel tenha desenvolvido a fenomenologia e uma filosofia do Espírito que pressupõem a noção de consciência, a ciência da lógica hegeliana pode ser entendida como sinônimo de ontologia. Essa relação inextricável entre dialética, lógica e ontologia atravessa todo seu sistema. E, por conseguinte, é frequente ver-se referência à doutrina de Hegel como uma doutrina especulativa. Se a associação entre lógica, ontologia e dialética é o coração desse sistema, a fenomenologia é o método de investigação das condições de emergência das figuras e contrafiguras que determinam a historicidade dos eventos bem como promovem a elaboração do conceito na ordem da razão e da autoconsciência do Espírito no interior do sujeito. O mesmo se pode depreender da teoria das idades da Terra, da filosofia da revelação e da filosofia da mitologia desenvolvidas por Schelling, concebidas como cosmogonia e como ontogênese dos modelos de pensamento que instituem o campo do pensável. Como na matemática pura, o Idealismo, em especial Hegel e Schelling, representam um dos cumes, em toda história da filosofia, de uma investigação sem objeto. Uma odisseia do pensamento que se dobra sobre si mesmo e tem como finalidade refletir a estrutura mesmo do pensar. Diferente de Kant, a operação dos conceitos é entendida não como resultante da dedução transcendental, mas como processos reais e efetivos (Wirklihkeit). Em outras palavras: como filosofia especulativa. Tampouco foi por acaso que boa parte do marxismo ocidental, como alternativa ao marxismo russo estrito de Plekhanov e ao materialismo histórico soviético, propôs uma leitura de Marx na chave da ontologia e da ontoteologia, com nuances mais ou menos vinculadas a uma hermenêutica messiânica (esperança). De fato, é um tipo de investigação situada entre a teologia e a ontologia que unifica nomes como Luckács, Benjamin, Karl Korsch, Ernst Bloch, Sartre, Althusser, Adorno e desemboca ativa e cristalina nas ontologias de Negri, de Castoriadis e de Kostas Axelos, este último um dos maiores especulativistas do marxismo.
Entretanto, identificamos dois problemas nessa vertente difusa de especulativismo que se delineia do século XVIII ao século XX: ela se restringe a categorias estritamente temporais e abrange recortes de tempo que, a despeito de se situarem em alguns milhares de anos, ainda são muito pequenos. Essa limitação e delimitação nos conduz à pergunta: como ficam as outras duas categorias essenciais do pensamento, o espaço e a causalidade? Essa pergunta nos leva a uma bifurcação da filosofa especulativa que inclui muitos autores marginalizados dessa grande estrada do especulativismo temporalizado, realista e idealista. Dentre esses autores estão Giordano Bruno, Leibniz, Hume, Peirce, Darwin, Cantor, James, Whitehead e Sloterdijk. Egresso da matemática pura, Whitehead vai desenvolver as bases da chamada filosofia do organismo e do processo. No entanto, a despeito de ser um nome eclipsado e omitido de modo infame, ao longo do século XX e ainda no começo do século XXI, exceção feita a alguns pensadores contemporâneos como Steven Shaviro e Isabelle Stengers, Whitehead é um dos mais importantes filósofos a definir seu próprio sistema metafísico como filosofia especulativa. Mais do que isso: institui as diretrizes dessa filosofia e da doutrina especulativa como um todo, no corpo das teorias processuais e do organismo. Ademais atribui uma semântica e um estatuto específicos para esse novo sistema, entendido literalmente como filosofia especulativa e como cosmologia. O mesmo ocorre com Peirce. Não bastasse as contribuições imensas em quase todas as áreas do conhecimento, da lógica, da matemática e da metafísica à epistemologia, à cosmologia e à filosofia da linguagem, construiu a arquitetura de seu sistema integral dos signos e dos processos de significação em torno de um novo saber especulativo: a semiótica. A filosofia do organismo de Whitehead e a semiose infinita Peirce são as balizas especulativas mais poderosas de toda filosofia moderna e contemporânea e, em certo sentido, transformam alguns conceitos e operadores tais como objeto, sujeito, realismo e idealismo em dicotomias insuficientes e mesmo ineficazes para a compreensão e a construção de um novo regime de seres, eventos e mundos.
Em outra linha, Bruno, Leibniz e James podem ser entendidos como criadores de ontologias e de cosmologias pluralistas das mais potentes. A pluralidade de mundos e a dimensão desempenhada pelo infinito na obra de Bruno foi de tal maneira subdimensionada, que a modernidade pôde construir seus sistemas racionais e dedutivos como se nada houvesse acontecido. Leibniz demarca uma distinção clara entre criação e geração, entre novidade e natureza. Para a coerência de seu sistema racional, Deus seria o doador de toda novidade e de toda criatividade e por isso o pluralismo infinito das mônadas se condensa em um universo unificado pela intervenção divina. Embora não se possa falar em pluriversos em Leibniz, a monadologia é um sistema metafísico coeso que pressupõe um dos mais decisivos descolamentos entre as noções de substância e de substrato, entre o devir infinito das formas substanciais e as alterações essenciais que lhes ocorre a cada metamorfose. Por isso, incluindo não apenas a Protogeia, mas também a monadologia, o sistema da natureza de Leibniz em seu conjunto é um preâmbulo revelador dos mecanismos da seleção natural e da teoria da evolução de Darwin. Ontologia celular e processo corpuscular, a natureza é o conjunto policêntrico desses nanotijolos metafísicos chamados mônadas que, sendo simples, compõem todos os níveis da complexidade, em uma previsão da teoria da informação, dos algoritmos e da inteligência artificial. Em consonância com esse pluralismo policêntrico e com essa nova ontologia de pluriversos, a indiscernibilidade e a impossibilidade de reconstituição das condições iniciais dos sistemas é o golpe final perpetrado por Hume no castelo de cartas das filosofias da unidade, dos monismos, dos universalismos e dos transcendentalismos. Contudo, todos esses sistemas pluralistas dependem de uma dimensão paraconsistente que lhes confira efetividade e, ao mesmo tempo, inviabiliza quaisquer nostalgias de unidade, passada ou futura. Essa dimensão paraconsistente é a costura entre ontologia e infinito. E ela se revela na categoria de causalidade e de universo. Os estertores dessa reflexão pluralista radical, em seus desdobramentos na cosmologia e na ontologia, encontram-se na obra de um matemático do século XIX: Georg Cantor.
Transfinitos
Em paralelo à constituição desse campo entre a especulação e a ontologia que acabei de descrever, transcorre a evolução conceitual marginal de um conceito: o infinito. E a consolidação de um dos campos transdisciplinares mais instigantes e mais potentes dos séculos XX e XXI: a cosmologia. Como se verifica na obra de Meillassoux, o conceito de infinito é um conceito matriz e norteador de todo pensamento especulativo. E, por isso, Cantor é um autor-matriz para a evolução dessas relações entre infinito, cosmologia e especulação. Em linhas gerais, podemos dizer que, da Antiguidade ao século XIX, a filosofia sempre trabalhou com a noção de infinito potencial. E esse infinito potencial foi assimilado a Deus e a uma divindade, estabilizando a disfuncionalidade e a irracionalidade inerentes a este conceito. Como alternativa a este infinito potencial, Cantor propõe a seguinte possibilidade: se cruzarmos duas linhas de elementos de dois conjuntos igualmente infinitos, será gerada uma identificação completa entre os elementos de cada um destes conjuntos. Esse cruzamento gera algo inesperado: uma fração residual que não se encontra no cruzamento de ambos os conjuntos, mesmo sendo ambos os conjuntos infinitos. Isso nos revela dois problemas: não existe apenas um infinito e, mais do que isso, nesse cruzamento de linhas infinitas, existem infinitos maiores e menores uns em relação a outros. Cantor instaura assim quantificadores internos às séries infinitas e promove uma virtualização do infinito. E surgem aqui os transfinitos.
O conceito de cosmologia, por sua vez, pertence sobretudo às esferas da filosofia, da antropologia e da física teórica. Inscreve-se como uma metateoria capaz de imaginar, conceber e descrever modelos do cosmos. Na esfera da física teórica, entende-se cosmos como tudo o que existe, na acepção do cosmólogo brasileiro Mario Novello. Entretanto, um dos problemas nucleares da cosmologia ao longo do século XX diz respeito às contradições inerentes ao modelo hegemônico do big bang quando confrontado com a teoria da relatividade métrica. Enquanto explicado a partir das teorias da relatividade especial e geral, a imagem de um ponto inicial do universo atual adquire consistência. Entretanto, a teoria da relatividade métrica pressupõe uma multiplicidade de geometrias e de tempos, variando para cada corpo. Essa condição de variabilidade de geometrias nos obriga a adotar geometrias não-euclidianas e alternativas ao paradigma dominante da geometria de Minkowski. Essa variabilidade coloca em questão a universalidade das leis, que passam a ser pensadas como extrapolações das condições terrestres para o resto do cosmos. Também coloca em cheque o apriorismo de um tempo e de um espaço absolutos, vigente de Newton a Einstein. E essa variabilidade também recoloca o problema que foi denegado ao longo de todo século XX pela física e pela cosmologia: o problema do infinito. Como alternativa ao big bang, surge o modelo de um universo eterno e dinâmico cuja flutuação original, identificada como origem espaciotemporal das condições atuais, não seria uma singularidade, mas um ricochete (bouncing). E, por fim, se o universo é eterno e as leis dependem da variabilidade de geometrias, estas mesmas leis dependem das variabilidades e modificações do universo como um todo. Nesses termos, as leis da físicas estariam em relação de dependência de leis cósmicas, que não seriam passíveis de unificação e de verificabilidade completas. Diante de tudo que foi exposto até aqui, desenhando um percurso espiralado e em ziguezague, proponho levantar os principais conceitos, operadores, funções, regimes e mundos decorrentes da aplicação da filosofia especulativa às três grandes categorias do pensamento: tempo, espaço e causalidade.
Demarcação
A filosofia especulativa, como eu a concebo, é uma linha da mesologia, a teoria dos mesons-meios que tenho desenvolvido há alguns anos. Para a teoria dos mesons, tudo que existe, existe em emaranhados de pluriversos. A categoria fundamental da mesologia é o meio, entendido em sua perspectiva relacional radical. Os mesons são nesse sentido meios-mundos e meios-media, no sentido de que todo meio é um ambiente situado e ao mesmo tempo um feixe de relações-mediações entre uma multiplicidade infinita de seres entre si, bem como um feixe de relações desses mesmos seres e mundos com outros meios-mundos, atuais e virtuais. Um aspecto importante da mesologia é sua natureza radicalmente virtual. Em outras palavras, essas modalidades de meios não se restringem ao campo das atualizações. O vasto e infinito oceano das virtualidades também compõe uma multiplicidade infinita de meios. O que é uma virtualidade? A virtualidade é algo que existe em alguma esfera espaciotemporal, em alguma topologia transdimensional e nas intersecções de meios, mas que não se atualizou. O filho que não tive nunca se tornou uma entidade atual, mas mesmo assim existe. Os diversos meios e mundos transfinitos nos quais esses filho vive compõem a existência virtual deste filho. O simples fato de eu o mencionar neste ensaio é uma maneira de atualizá-lo. Entretanto, não consigo conter, nomear ou definir todas as infinitas linhas causais e os infinitos mundos possíveis contidos na linha de vida deste filho errante. A vastidão desse espaço-tempo, habitado por este meu protofilho, constitui mundos, combinações, deslizamentos, ambientes, realizações, promessas, desejos, objetos e tantas outras entidades virtuais e atuais que, por sua multiplicidade infinita, não podem ser determinados em toda sua extensão. Todas essas vidas existem em termos efetivos, mesmo se nunca forem atualizadas e conhecidas-percebidas por algum conhecedor-percipiente.
A mesologia trabalha então com algumas definições e demarcações conceituais de base. Uma delas diz respeito aos existentes e à existência. Os existentes são as atualizações do vasto oceano de entidades virtuais da existência. A existência é infinita, ilimitada, mas determinada. Os graus de indeterminação das entidades virtuais dizem respeito mais à perspectiva que as entidades atuais têm das entidades virtuais do que a uma ausência de determinações das unidades virtuais. Esse é um aspecto importante, pois nos protege da ideia de que o continente de entidades virtuais seja não-real e, portanto, não-racional. O processo de realização de todas as entidades engloba entidades atuais e virtuais. Contudo, um erro do pensamento durante milênios foi determinar as condições de possibilidade do real como sendo idênticas à aparente unidade das atualizações. Como veremos mais adiante, as atualizações não podem ser totalizadas. E, por conseguinte, muito menos as virtualizações. Por outro lado, se tudo é relacional e os mesons sempre são meios e mundos, os mundos e meios dessa esfera mais vasta da existência tampouco são abstrações. E muito menos são produtos da facticidade e das paixões tristes de seres finitos, absortos na temporalidade e penhorados pela morte, como querem algumas filosofias da existência. Esses meios-mundos, mesmo mergulhados em uma esfera de absoluta incomensurabilidade, são efetivos. Compõem essa imensa esfera concêntrica do real que é idêntico à existência. Existir é diferir. E existir é realizar. O infinito é o modo de realização da existência, em suas dimensões atuais e virtuais. E aqui temos outra definição radical da mesologia: a realidade é o modo de ser da existência, em suas atualizações e virtualizações. Esse modo de ser da existência se chama cosmos.
O cosmos é o conjunto atual e virtualmente infinito das relações e das realizações, dos mesons e das realidades. Por fim, mais uma definição radical da mesologia: não há distinção possível entre ser e forma, entre ser e relação, entre mundo e meio. Nesse sentido, as entidades atuais-virtuais, como meu protofilho para mim, e todas as escalas e esferas, dos microcosmos aos macrocosmos, do quântico e não-discreto às estruturas das galáxias e aos trilhões e trilhões de sois, sistemas, mundos, agentes e entidades: tudo isso é real e efetivo. Não há nenhuma exterioridade representacional absoluta que não seja a relatividade absoluta e a absoluta excentricidade dos pluriversos e dos transmundos transfinitos dentro de cada um e entre si. Isso nos conduz a mais um agregado para finalizar essa argumentação. Mesmo concebendo a existência como o oceano infinito das atualizações-virtualizações, não se pode privar de dignidade a irredutibilidade radical de cada existente em cada esfera intramundana. Isso quer dizer que o cosmos é sinônimo de existência, entendida como um todo aberto atual-virtual. Mas o cosmos também é o feixe infinito das existências singulares, flutuando no horizonte infinito da facticidade, da pluralidade preênsil e da experiência. Em outras palavras: o oceano atual-virtual da existência pode ser reduzido ao suspiro breve e contingente, ao gesto fugaz e à volatilidade do mais tenro e simples existente. Se a existência atual-virtual é uma efetividade, a efetividade é a realidade e a realidade é o conjunto infinito de todos os existentes atuais-virtuais. Nesse sentido, cada singularidade, por mais sutil, insignificante e delicada, possui o seu mundo. E no regime dos pluriversos, nenhum mundo pode ser reduzido a outro mundo, nenhum existente pode ser subsumido a outro existente, nenhuma vida pode ser permutada por outra vida.
Topologias Transdimensionais (TT)
Entretanto, o que seria a especulação? Qual o papel da filosofia especulativa no organismo da mesologia? Em termos sucintos, a filosofia especulativa é uma filosofia que tem um compromisso radical com a variabilidade do universo-espelho e com as virtualidades da existência. Para tanto, um dos eixos de orientação do pensamento especulativo é o que tenho denominado como Topologias Transdimensionais (TT). A transdimensionalidade se distingue da multi, da inter e da pluridimensionalidade. A multidimensionalidade pressupõe a justaposição de muitas dimensões, mas não necessariamente uma variação estrutural e fatorial das leis de cada dimensão, de acordo com as interações que mantenham entre si. A interdimensionalidade pressupõe alguns planos de intersecção, de cruzamentos e de interconexões entre universos-dimensões. Porém, como o prefixo inter insinua, esta dimensionalidade realça o que ocorre entre e não necessariamente o que decorre das metamorfoses estruturais, substanciais e essenciais dessas intersecções no que diz respeito a cada universo e a cada dimensão. Por seu turno, a pluridimensionalidade pressupõe uma implicação e um imbricação de diversas universos-dimensões. Constitui uma das primeiras emergências dos pluriversos em termos dos mesons. Mas podemos dizer que esse emaranhado pluridimensional de pluriversos inscritos em dimensões distintas, sendo uma primeira emergência, ainda não descreve a totalidade das simetrias entre transversais de todos os pluriversos e dimensões do cosmos e dos mesocosmos. E, por isso, que se torna imperativo recorrermos à quarta categoria: as topologias transdimensionais.
Estas topologias transdimensionais não se restringem ao estudo do espaço em suas diversas dimensionalidades, sejam elas euclidianas ou não-euclidianas. São projeções espaciotemporais dos vetores transfinitos. Concebem desse modo uma simetria das funções de espaço e tempo. Ou seja: não é apenas o tempo que é uma função do espaço, como em algumas doutrinas gnósticas, e tampouco é o espaço que é uma função do tempo, como na teoria einsteiniana. Ambos estabelecem uma relação de coimplicação de biunivocidade. As relações entre o espaço e o tempo se simetrizam e são equipolentes. Isso quer dizer que todas as modulações de estrutura do espaço alteram a essência do tempo e todas as variáveis do tempo reconfiguram e recodificam toda extensão do espaço. Como do ponto de vista da mesologia e da especulação o cosmos e os mesocosmos não são unidades holísticas e discretas, as topologias transdimensionais constituem uma heterogênese infinita de meios, de mundos, de universos, de pluriversos e de transversos cujas leis são absolutas para cada topologia, mas relativas do ponto de vista do horizonte de eventos de onde emergem todos os cosmos. Os pluriversos emergem justamente dessas interseções e dessas esferas de relacionalidade espaciotemporais As virtualidades descrevem topologias espaciotemporais não-euclidianas e não-lineares que englobam espacialidades e temporalidades transdimensionais. Também exige uma perspectiva diferencial em relação aos três grandes vetores do tempo: o passado, o presente e o futuro. Contudo, o método especulativo dedica uma atenção especial ao futuro.
Como ocorre a extrapolação na filosofia especulativa? Como pode ser definida dentro do espectro da mesologia? Podemos defini-la como uma Filosofia Orientada ao Futuro (Future-Oriented Philosophy). Ela se baseia em um conjunto de extrapolações das proposições, das propriedades, das substâncias, das experiências e dos conceitos passados e presentes. Não que o futuro nos reserve algo de muito distinto do que poderia nos proporcionar outras esferas da vida e da existência. Essa valorização vetorial do futuro diz respeito apenas a uma maneira de inspecionar e investigar as camadas mais abrangentes e mais opacas das virtualidades. Endereçar o pensamento ao futuro é escavar profundas placas tectônicas de virtualidades do presente e do passado. É promover uma atualização de entidades e existentes de éons e de mesocosmos imemoriais, ainda opacos à aferição presente e às nomeações passadas. Nesse sentido, a filosofia orientada ao futuro difere em termos radicais de uma Ontologia Orientada aos Objetos (OOO), pois esta permanece presa à pardacenta fatalidade da objetitude e aos cansativos dilemas conceituais oriundos desse compromisso, não menores do que os problemas apresentados pelas filosofias transcendentalistas e correlacionistas, centradas na intencionalidade e na personitude. Tampouco lhe interessa a fidelidade ao conceito de realismo e toda herança antinômica inerente ao conceito de real desde tempos imemoriais até hoje, causa de alguns dos mais nefastos erros categoriais ao longo da odisseia do sapiens. Uma filosofia orientada ao futuro não se orienta pela busca ingênua de um real preexiste ou perdido. Muito menos pela promessa futura de uma redenção de quaisquer idealizações ocultas nos interstícios dos pluriversos. Também não se demora em uma eterna hesitação diante dos dilemas entre sujeito e objeto. Por fim, uma filosofia orientada ao futuro tampouco se guia pelo que não existe. Trata-se de uma filosofia ocupada em investigar eventos futuros que podem se distender em eras e em éons de distância das ficções de nosso presente e das miragens de nosso passado, das quais nos alimentamos dia a dia. Advoga que o futuro não apenas existe como virtualidade e não preexiste como atualidade. O futuro nos é cristalino na esfera imanente que engloba todos os existentes. Uma filosofia orientada ao futuro é uma filosofia que, ao fim e ao cabo, é um pensamento transdimensional transfinito. Compromete-se em escavar e atualizar gigantescos estratos de virtualidades do presente e do passado, em um movimento que podemos definir como uma arqueologia dos futuros. Mencionei agora o termo futuro no plural. Justamente porque do ponto de vista da ontologia e da cosmologia pluralistas dos mesons e da filosofia especulativa, assim como o passado e o presente não foram, não são e nunca serão homogêneos, o futuro também não o é e não o será. E esse aspecto nos ilumina outro componente importante da mesologia e da filosofia especulativa: a identidade entre passado, presente e futuro do ponto de vista das esferas virtuais.
Especulação e Tempo
Mesmo sabendo da coimplicação de tempo e espaço nas topologias transdimensionais, vale a pena escandirmos cada uma dessas grandes matrizes para compreender como a filosofia especulativa, orientando-se em direção ao futuro, reformula cada uma delas. Comecemos pelo tempo. A ideia de que o presente e o passado se submetam a sistemas lineares de causalidade é uma redução de processos multilineares e pluricausais que não pertencem apenas ao futuro, mas também ao passado e ao presente. Essa abordagem reducionista pressupõe que dominemos o passado e o presente em sua totalidade, simplesmente porque temos acesso a fatos, a objetos e a eventos passados e presentes que se atualizaram. E, por conseguinte, inferimos que o futuro nos seja totalmente insondável, porque ainda não se atualizou. O futuro seria um quarto com as portas e a janelas fechadas, vedado ao entendimento, à percepção e à razão. Um arsenal de novidades inauditas, disruptivas, imprevistas e sempre misteriosas. Entretanto, por meio da filosofia especulativa, podemos conceber que as atualizações e virtualizações que constituem essas totalidades à primeira vista homogêneas que chamamos de passado e de presente dependem da contingência de algumas condições observacionais e de algumas variáveis apenas à primeira vista comensuráveis entre si. Em primeiro lugar, as camadas de passado se alteram na mesma medida em que o tempo passa. Isso não significa que tenhamos uma visão cada vez mais clara do passado: as catástrofes naturais, as deteriorações sociomateriais e mudanças de eixos de interesses, dentre tantos outros fenômenos, podem gerar verdadeiros pontos-cegos e verdadeiras zonas de indiscernibilidade de esferas do passado em relação ao nosso presente, pontos-cegos e zonas estas que, em outras épocas, podem ter sido absolutamente cristalinos. Isso significa que o passado é uma função do presente. O presente é um functor da condições e dos acessos à não-totalidade do passado. Outra variável decisiva é a definição de quais os enunciadores e reconstrutores do passado. Se essa eventual totalidade do passado depende de um continuum de atualizações, e se todas as atualizações pressupõem determinadas virtualizações, nunca o passado se atualiza em sua plenitude, nem se for restrito à reconstituição linear de apenas um agente de enunciação. Em outros palavras, a soma de infinitos agentes reconstrutores que atualizam o passado não pode fornecer a imagem de uma totalidade. Essa totalidade será sempre e para sempre parcial, pois em todos os processos a potência de virtualização é maior do que a potência de atualização. Por isso, outra variável que devemos levar em conta é a seguinte: se não há uma totalidade preexistente das virtualidades desse passado que poderia ter sido e se tampouco temos acesso à totalidade das atualizações, passadas e presentes, nem às infinitas linhas causais que performaram as unidades passadas, chegamos à conclusão de que no limite o passado é inacessível como um todo.
O mesmo mecanismo pode ser produzido quando indagamos o presente. Para começar, basta levarmos em consideração a pluralidade de ontologias, axiologias e cosmologias que povoam e se multiplicam no presente, de modo nômade e selvagem, em uma escritura errante que pode derivar ao infinito suas zonas de indeterminação e subdividir ao infinito suas unidades corpusculares. Essa mesma polifonia equipolente de unidades presentes não-discretas, ainda que homogeneizada em um corte sincrônico do tempo presente, continuaria a se capilarizar em sentidos espaciais, derivando e devindo em novas topologias e em regiões de cognoscibilidade-preensibilidade cada vez menores, cada vez mais sutis e cada vez mais indiscerníveis. Ademais, se projetarmos essa multiplicidade presente em um vetor em direção ao passado, procurando controlar as alterações, funções, variantes e sentidos de cada unidade não-discreta desse conjunto homogêneo de atualizações presentes, esse controle estaria fadado ao fracasso. E se, por fim, recuarmos ainda mais, procurando as constituições globais das linhas e a origem remota das unidade presentes, chegaremos fatalmente a esferas intersticiais do espaço-tempo de onde emergiram os primeiros esquemas relacionais e as primeiras combinações das entidades atuais presentes. Ora, essa cena original não possui nada de original. A origem nunca é um começo. Toda origem é no fundo nada mais nada menos do que um atestado de nosso fracasso. Essas origens são singularidades emergentes, estruturas relacionais em coevolução com outras singularidades, entidades e universos cujas demarcações iniciais e finais se encontram em constante flutuação e em uma radical instabilidade nos emaranhados de pluriversos coeternos. Uma origem assim concebida seria certamente apenas um limite na capacidade de recuo imaginativo e epistêmico. Não seria as condições iniciais do mundo presente. Seria apenas os limites cognitivos-percipientes deste mesmo mundo e, mais do que isso, os limites de apenas uma ou algumas linhas causais, linhas estas de apenas um sistema de coordenadas e de apenas uma ontologia, não a reconstituição global de todos as metaontologias existentes, virtuais e atuais, presentes e passadas. Finalmente, todas essas condições contingentes ilimitadas, extrapoladas em um recuo infinito em direção ao passado, também variam ao longo do tempo. Ou seja: todas as linhas causais que unificam essas duas enormes grandezas, a origem do cosmos e as origens das entidades presentes, se desvanecem e se temporalizam, pois mesmo as leis do cosmos possuem uma historicidade e uma topologia diferenciais a cada alteração de éon.
A despeito de todas essas evidências, nossa intuição nos conduz a acreditarmos em uma relativa homogeneidade do presente. Quando predicamos entidades que nos cercam, quando nomeamos objetos que nos cercam na esfera da empiria, quando tateamos nosso corpo e olhamos para o céu e a Terra: toda percepção requer unidade e nos conclama a fazer uma apologia da unidade. Sentimos as unidades celulares e temos a cada fração de segundo o testemunho granular de cada uma das gotas de experiência que constituem o fluxo vital de nosso corpo, de nosso sangue, de nossas fibras vivas e do mundo animado, vivo e imanente que nos cerca e nos habita. Toda experiência nos exige diferenciação. Mas tudo que envolve a vida e os organismos é uma ode à unidade. Contudo, para definirmos todas as entidades, agentes, seres e mundos que constituem esse presente homogêneo, precisamos demarcar quais as condições de possibilidade de conhecimento dessas mesmas entidades, agentes, seres e mundos que se unificam em nossa enunciação quando dizemos mundo e presente. Ora, fica claro que o presente como um todo é apenas uma fração do universo conhecido-percebido, entendendo-se aqui universo como uma redução da totalidade do que existe à experiência parcial da totalidade cognoscente-percipiente. Todo horizonte do desconhecido pode entrar nominalmente como hipótese em nossas formulações e funções. Mas as descrições nominais também estão submetidas aos limites contingentes do conhecido. Ou seja: as esferas concêntricas de registros e realidades cognoscentes-percipientes, mesmo quando estes são definidos como desconhecidos, ainda assim são esferas de um determinado conhecimento presente e mundano. Ademais, todo universo conhecido no presente pode ser definido apenas como o conjunto de atualidades preendidas por determinadas condições. A soma irrestrita desses conjuntos de atualizações e condições de possibilidade de atualização não perfaz nenhuma totalidade. Isso ocorre porque, como mencionei, para haver uma totalidade do presente seria preciso haver uma maneira de identificar e discriminar todas as atualidades e as virtualidade do presente em todas as condições globais dos existentes.
Esse problema relativo à inviabilidade da totalização do passado e do presente abre um problema nuclear. E configura um dos eixos da filosofia especulativa: os limites do conhecimento-percepção do passado são idênticos ao conhecimento-percepção do futuro. O que chamamos de presente não é nada mais do que o eixo de tensão entre esses dois vetores equipolentes passado-futuro. As ilusões do pensamento têm se concentrado sobretudo em presumir uma contingência radical do futuro em detrimento de uma contingência parcial do passado e do presente. Acredita-se que a capacidade de determinação e previsão do futuro dependem necessariamente dos desdobramentos de leis e linhas causais que ignoramos, porque elas ainda não se atualizaram. Entretanto, os graus de atualizações de entidades virtuais podem ser relativamente constantes no passado, no presente e no futuro. Ou seja: a impossibilidade de determinar os n-fatores que possam promover a emergência de algumas entidades em detrimento de outras, o surgimento de um mundo em detrimento de outro, não constituem uma impossibilidade restrita apenas ao futuro. Pertencem também a um passado imemorial onde as leis de atualizações-virtualizações dessas entidades-mundos emergiram, se constituíram e se constelaram em leis e em constantes que hoje são tomadas como universais, ou seja, extensivas à totalidade do cosmos.
Especulação e Espaço
Esta concepção nos conduz ao cerne da outra matriz conceitual da filosofia especulativa: o espaço. Quando concebemos o cosmos, o problema que emerge diz respeito a uma fissura interna ao conceito de cosmos. O cosmos não é a totalidade das atualizações tangíveis, empíricas e metaempíricas. O cosmos é a promessa de reconstituição de virtualizações passadas que desapareceram. E a expectativa de atualizações futuras que existem, mas não se atualizaram. O cosmos não é a totalidade dos entes, pois os entes são apenas as infinitas constelações, combinações e configurações de atualidades. O cosmos é a totalidade da existência. Ou seja: o horizonte global e o oceano infinito de atualidades e virtualidades. Ora, como existir é diferir, então o cosmos é uma totalidade sem totalização possível, em nenhuma das transdimensões dos pluriversos. Porque toda gênese dos meios e dos mundos que compõem esse horizonte atual-virtual que chamamos de cosmos promove a cada instante novas aberturas, novas fendas, novas potencialidades, novos enquadramentos mundanos e transmundanos. O que significa que podemos descrever o cosmos como uma totalidade aberta e mesmo assim apenas em termos nominais, pois a totalização de suas virtualidades-atualidades nunca foi, não é e nunca será passível de ser compreendida em todas as dimensões dos pluriversos. Em outras palavras: a existência nunca pode se reduzir ao conjunto dos existentes.
As condições de possibilidade iniciais dessas leis que passaram e continuam passando da existência aos existentes nos escapam hoje em um grau muito distinto de como nos escapavam há dois milhões de anos, quando os hominídeos se especiaram a partir dos primatas superiores. Entretanto essa variável de gradação não pode ser absolutizada ou convertida em uma variável de natureza. Isso ocorre porque cada entidade-mundo e cada meio-mundo podem ser o fio de recomposição e de reconfiguração de uma multiplicidade de mundos futuros. À medida que não detemos a ciência da totalidade dos processos e de todos os fluxos nele implicados, não podemos definir ao certo em que medida uma entidade e um mundo facticamente situado pode concorrer para a manutenção futura e para a coevolução de uma multiplicidade de mundos que, por sua vez, possam vir a ser efetivos e necessários para a sustentação de determinadas estruturas dos pluriversos. Por outro lado, esse processo de atualização-virtualização é recursivo e não obedece a uma escala de progressão linear. Ele pode ampliar nossa esfera cognoscente-percipiente do universo em uma escala cósmica, como o tem feito. Mas nada nos garante que camadas e estratos essenciais da existência possam ser obnubilados, esquecidos ou simplesmente apagados por meio dessas atualizações cada vez mais omnicompreensivas que virtualizam em si mundos, meios e continentes inteiros, mantendo-os submersos por éons e éons.
Por fim, o progresso do conhecimento está essencialmente vinculado ao conceito de infinito e ao processo de infinitização. Isso quer dizer que quanto mais o conhecimento extensivo se expande, mais se infinitiza e se virtualiza a intensividade desse mesmo universo, conhecido e concebido por essa mesma expansão ilimitada do conhecimento. O erro, segundo o qual o processo progressivo aumentaria o campo do conhecido e diminuiria o campo do desconhecido, deriva de uma falha de compreensão das categorias fundamentais: a realidade e a existência. A história da metafísica é a história de uma redução da existência ao real e do real às atualizações. O que significa isso? Significa que o pensamento se acostumou, foi domesticado de modo intuitivo a definir a totalidade do real como a totalidade das atualizações. Coube-lhe assim a tarefa de reduzir os pluriversos a universos atomizados ou à ideia de um universo uno, seja ele vetorial ou eterno. Entretanto, os pluriversos e a pluralidade dos mundos, mesmo em uma escala de trilhões e trilhões de galáxias, de sois e de sistemas, como a que conhecemos hoje, ainda são apenas um conjunto de atualizações de infinitas esferas de metacosmos mais vastos: o oceano de todas as virtualizações que não se realizaram, que ainda podem se realizar, que nunca se realizarão, que nunca se virtualizarão ou que se virtualizaram justamente por meio da atualização desses mesmos pluriversos tangentes que se atualizaram e que definimos como sendo a unidade racional do real.
Especulação e Causalidade
Esse emaranhado de pluriversos se distribui em regimes de biunivocidade entre o espaço e o tempo. Ademais, também demanda um regime inaudito de plurivocidade de todos os universos entre si. Mediante este regime, as leis integrais de cada universo são parciais em relação a pluriversos paralelos. Variam de acordo com as mudanças da transdimensionalidade e de acordo com a relatividade global de todos os universos coimplicados e emergentes do horizonte de eventos infinito. Isso significa: os vetores e as funções das leis de cada universo apenas adquirem consistência se cotejados, relacionados e relativizados a partir das leis paraconsistentes dos pluriversos. Ora, esse regime altera de modo substancial as relações de causalidade, incidindo inclusive sobre os sistemas pluricausais. Porque não se trata apenas de dizer que é impossível abstrair leis gerais da inferência indutiva. Afinal, essa passagem das condições contingentes às leis gerais ainda pode gerar uma insuficiência dos sistemas de predicação que aspiram à universalidade. Mas esse problema pode ser dirimido quando imaginamos que esses sistemas, mesmo quando não são universais, são extrapolações pragmaticamente eficientes e descrevem regimes causais que são, ao mesmo tempo, contingentes e globais. Ou seja: por mais que o conceito de linha geométrica possa ter sido inferido de processos abstrativos de linhas empíricas e por mais que a lei da gravitação universal possa ser uma extrapolação de conjuntos de induções e de qualidades primárias presentes na atmosfera da Terra, ainda assim a linha e a gravitação têm uma validade pragmática que exorbita o lugar de sua constituição e gera modelos metaempíricos efetivos para a compreensão da estruturado de um mundo e de um universo. Isso entretanto não significa que a gravitação não tenha também uma historicidade e não se transforme ao longo das eras, submetida ao devir e aos vetores internos a um mesmo universo. Essa seria uma boa explicação: um continuum complementar e não-dualista entre a entropia e a neguentropia pode ser concebido nesses termos por meio dos sistemas fora de equilíbrio cujas valências positiva-negativa se embaralharam.
Mesmo a unificação entre a reductio ad absurdum e a reductio ab origine, descrito pela inviabilidade de rastrearmos as condições iniciais de nenhum sistema, pode ser considerada um problema menor dentro da constelação de vetores e eixos de orientação do pensamento especulativo e da mesologia. Isso ocorre porque mesmo diante da inviabilidade de se reconstruir as condições iniciais, o imperativo relacional e a concepção segunda a qual as virtualidades são infinitamente maiores do que as atualizações, a reconstrução das condições iniciais passadas se torna tão irreal quanto a reconstrução das condições presentes e das condições finais de quaisquer sistemas. Em outras palavras, o problema da incomensurabilidade não está alocado em um ponto não-discreto de processos passados não-totalizáveis. O problema se situa em uma assimetria entre as potências de atualização e as potências de virtualização. Se essa assimetria é uma invariável que coordenada uma multidão de variáveis, a possibilidade de reduzirmos as virtualidades às atualidades e de termos consciência-percepção de todas as virtualidades implicadas em um processo, em um ser ou em uma entidade, os mais simples que sejam, é quase zero. Nesse sentido, o grande problema que se coloca não é tanto da inacessibilidade das condições iniciais e em que medida elas produzem a incomensurabilidade de um mesmo universo, destruindo a segurança de suas leis. O problema é que, mesmo se trabalharmos com a ideia de que essas leis possuem uma universalidade contingente, baseada na efetividade de sua extensão e não em algum eventual substrato das diversas substâncias que descrevem, ainda assim não solucionaremos o problema do panlegalismo. Ou seja: o problema da multiplicidade de leis que atravessam todas as topologias transdimensionais, se equilibram e se harmonizam, se combatem e se digladiam, se consomem e se subdividem, se justapõem e se destroem e, por fim, se complementam e se anulam, em direção à excentricidade infinita do horizonte de eventos.
O problema causal começa a se fazer mais intrincado nesse momento. As causas não podem ser depreendidas de leis, pois toda lei emerge de um espaço de incomensurabilidade entre as inferências, as substâncias e as predicações. As causas tampouco podem dar origem a leis à medida que o hiato entre duas entidades, entre dois seres e entre dois eventos repousa sobre a indiscernibilidade relacional, flutuante e irredutível de que é composta a experiência, tecido do universo. Por outro lado, as leis mesmas não podem ser deduzidas nem induzidas de condições observacionais imanentes à esfera intramundana. Toda lei pode ser o sucedâneo de metaleis transversais aos mundos, aos universos e mesmo ao cosmos. À medida que toda determinação e toda legalidade repousam sobre implicações e explicitações de alguns estratos dos pluriversos e à medida que todo conhecimento-percipiente decorre de observações contingentes, estando subordinado à facticidade de um feixe de pluriversos, não se tem acesso à totalidade das topologias transdimensionais. E, ainda que o tivéssemos, não seria possível aceder a uma indução ou a uma dedução do conjunto de virtualizações que constituem os pluriversos ainda não acessados, em direção à excentricidade radical do horizonte de eventos. Pode-se supor que toda legalidade possui ao menos um ponto cego. Esse ponto cego nunca pode ser aferido dos sistemas causais internos a um mundo e a um universo. E tampouco pode-se imaginar que haja uma completude no sistema relacional dos pluriversos e das metaleis. Supor isso seria supor a possibilidade de um ou mais mundos, universos, entidades ou leis unificarem os demais mundos, universos, entidades ou leis. Por fim, se todo esse regime intramundano da ontogênese das leis depende de regimes extramundanos que dotem de consistência essas mesmas leis, o mesmo decorre se extrapolarmos essas variações, não mais em direção aos pluriversos e a suas estruturas fundamentais, mas em direção ao passado, ao presente e ao futuro, de acordo com as transdimensionalidade que mencionei acima. Desse ponto de vista, a doutrina da causalidade adquiriria não apenas um contorno inaudito. Ela se revelaria em uma completa e luminosa novidade. Pois as determinações causais passariam a ser geradas nos intervalos suspensos entre passado, presente e futuro. Mais do que isso: tampouco seria possível determinar em qual emaranhado de pluriversos ocorreu a causação de um evento, de uma entidade ou de um ser. Se as topologias transdimensionais operam em um emaranhado de planos e de estratos temporais e espaciais que se cruzam, se multiplicam e se alteram mutuamente, o mesmo ocorreria em relação às leis causais. Nesses mundos intersticiais, o filho que não tive não apenas existe. Eu que não existo senão em um universo paraconsistente que esse meu filho virtual não pode acessar. A necessidade de unificar esses diversos planos, estratos, topologias e dimensões em um todo deve vir a ser considerada em breve como o momento de maior ingenuidade de que um ser vivo foi capaz ao longo da narrativa do cosmos. Essa demanda de unidade é uma das maiores ilusões que o sapiens foi capaz de acalentar. Esse sonho o transformou em um construtor e colonizador de mundos e, em breve, de galáxias, e, paradoxalmente, reduziu-o à condição de uma bactéria inconsciente da própria insignificância.
Em linhas gerais, quando definimos o cosmos como tudo o que existe, estamos nos referindo mais ao estudo de camadas virtuais desse cosmos do que a suas atualizações. Durante muito tempo, o conceito de existência se identificou ao de atualização. Acreditamos durante muito tempo que as atualizações, sejam elas reais ou imaginativas, pouco importa, são o conjunto global do que definimos como realidade. O corolário desse erro foi conceber Deus como repositório infinito de virtualidades, sendo que na verdade Deus não passa de uma entidade atual em meio a entidades atuais, contingente e parcial, real e contingente como qualquer ser real. A tarefa da filosofia especulativa tem uma dupla articulação. Em primeiro lugar, o objeto da filosofia especulativa é o cosmos entendido como sinônimo de existência e como horizonte emergente de tudo o que existe. Entretanto, o sistema especulativo acredita que as atualizações são uma pequena membrana e uma breve espuma flutuando no oceano de virtualizações. Os seres existentes e reais são o conjunto infinito de todas as atualidades e de todas as virtualidades que compõem a existência. A existência não é uma totalidade porque a existência não é uma entidade nem um ser. A existência é o conjunto das atualizações-virtualizações de todos os existentes. Esse conjunto é infinito porque não foi, não é e nunca será possível aceder a um conhecimento-percepção de todo processo das atualizações-virtualizações que constituem o cosmos, ou seja, tudo que existe. O trabalho dos sistemas metafísicos até hoje seguiu três imperativos. Primeiro: submeter o virtual ao atual. Segundo: definir o conjunto das atualidades como sendo idêntico ao real. Terceiro: compreender o real como sinônimo de tudo que existe. Especular é inverter todos esses vetores. Especular é submeter as atualidades às virtualidades. Especular é conceber que a esfera global da realidade é apenas um conjunto de atualizações. Especular é investigar a existência como a dinâmica complexa de atualizações-virtualizações que emergem do oceano sem fundo e sem fim das existências. Especular é investigar os espelhamentos infinitos e os planos transfinitos de pluriversos inscritos em topologias transdimensionais. Estas topologias compõem os diversos tecidos espaciotemporais e a multiplicidade de leis causais do cosmos e de todos os existentes, sejam eles passados, presentes e futuros.